O estaleiro da utopia

14-12-2000
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Uma missa solene, a que assistiram diversas personalidades italianas de vulto, celebrou a reabertura da recuperada Basílica de São Francisco de Assis

«Foi um autêntico trabalho de paciência de chinês, a que se associou a electrónica». Para Costantino Centroni, superintendente da região da Úmbria, onde se encontra a basílica, não há outra forma de descrever o restauro. A menos que se recorra à palavra «milagre», a mais usada na generalidade da imprensa italiana.

A missão dos especialistas em arte e dos voluntários que os acompanharam nesta difícil reconstituição, obedeceu a um plano de trabalho ultra-rigoroso, que se dividiu em várias fases.

Além da recolha e limpeza das pedras, foi preciso catalogar os milhares de fragmentos minúsculos que caíram de uma altura de 20 metros, procurando voltar a encontrar-lhes a harmonia das curvas admiradas há séculos.

«Com muita paciência e apoiados por alta tecnologia, fomos capazes de recuperar a figura de oito santos»

A metodologia tem outro restauro como precedente. Quando uma bomba dos aliados reduziu a fragmentos o fresco de Lorenzo de Viterbo, O casamento da Virgem, um dos mais belos da igreja de Santa Maria da Verdade de Viterbo, todos julgaram impossível a sua reconstituição. Recorda Massimiliano Capati, historiador da arte contactado pelo EXPRESSO: «Cesare Brandi, então director do Instituto Central de Restauro, decidiu juntar pacientemente os fragmentos baseando-se em fotografias. Apesar da tecnologia ser mais rudimentar e a superfície pictórica ser muito inferior, o processo foi essencialmente o mesmo. Sucessivamente decidiram colar os fragmentos às paredes, deixando nas zonas irremediavelmente perdidas um esboço a água num tom único que evocasse as linhas do fresco original sem, porém, o pintar de modo arbitrário». Um ensinamento que ainda pode servir de exemplo para os frescos de Assis.

A verdadeira aposta, agora, é «a recomposição das figuras de São Jerónimo e São Mateus, divididas em 150.000 fragmentos», admite Antonio Paolucci, comissário ministerial da basílica. «Não os podemos arquivar todos. Temos é de tentar reconstruir as figuras».

E «cada fragmento é indispensável para a reconstrução dos frescos», sublinha Giuseppe Basile, ao recordar o que aconteceu com dois turistas brasileiros: «Tinham levado para casa alguns pedacinhos da igreja como recordação e decidiram devolvê-los após terem visto uma reportagem na televisão».

Encontrar uma solução para os bocados dos frescos que não se conseguiram recuperar era outro problema. A grande dúvida dos historiadores de arte era se deveriam copiar e voltar a pintar aquilo que faltava - correndo o risco de modificar o fresco -, ou reconstruir a imagem virtualmente e projectar um «slide» simulando o desenho original. «A solução pode parecer simples, mas a superfície curva de muitas paredes dificultava a nossa ideia. Com muitos cálculos matemáticos conseguimos deformar a imagem e ganhar o efeito desejado», garante Basile. «Um método acessível, que não interfere com os outros frescos e que servirá até se encontrar uma solução definitiva».

A obra já feita, exposta aos olhares públicos desde domingo, foi apresentada com honras de cerimónia solene. Reunidos na Basílica para assistir à missa celebrada pelo Cardeal Ângelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, estiveram o Presidente da República Carlo Azeglio e um bom punhado de ministros e outras individualidades políticas.

Apesar disso, a ocasião não recolheu apenas manifestações de júbilo. As mais de 10 mil pessoas que continuam a viver em espaços improvisados, à espera que o Governo conceda os fundos necessários para a reconstrução das suas casas, destruídas no mesmo terramoto, lamentam que a arte e os interesses turísticos tenham sido a prioridade. Entre os contestatários contam-se as monjas clarissas que, em virtude do sismo, tiveram de abandonar o convento do século XVII onde residiam, quebrando a clausura para se juntar ao coro de protestos.

No entanto - críticas à parte - quem estiver interessado em conhecer os pormenores da «operação-milagre» deste restauro, que envolveu mais de setecentas pessoas, pode satisfazer a curiosidade nos oito cadernos editados pelo Comissariado para os Bens Culturais da Região Úmbria e Marche. Neles está descrita cada etapa desta tarefa já baptizada: Estaleiro da Utopia.

Vittoria Di Lelio, correspondente em Roma

Uma missa solene, a que assistiram diversas personalidades italianas de vulto, celebrou a reabertura da recuperada Basílica de São Francisco de Assis

«Foi um autêntico trabalho de paciência de chinês, a que se associou a electrónica». Para Costantino Centroni, superintendente da região da Úmbria, onde se encontra a basílica, não há outra forma de descrever o restauro. A menos que se recorra à palavra «milagre», a mais usada na generalidade da imprensa italiana.

A missão dos especialistas em arte e dos voluntários que os acompanharam nesta difícil reconstituição, obedeceu a um plano de trabalho ultra-rigoroso, que se dividiu em várias fases.

Além da recolha e limpeza das pedras, foi preciso catalogar os milhares de fragmentos minúsculos que caíram de uma altura de 20 metros, procurando voltar a encontrar-lhes a harmonia das curvas admiradas há séculos.

«Com muita paciência e apoiados por alta tecnologia, fomos capazes de recuperar a figura de oito santos»

A metodologia tem outro restauro como precedente. Quando uma bomba dos aliados reduziu a fragmentos o fresco de Lorenzo de Viterbo, O casamento da Virgem, um dos mais belos da igreja de Santa Maria da Verdade de Viterbo, todos julgaram impossível a sua reconstituição. Recorda Massimiliano Capati, historiador da arte contactado pelo EXPRESSO: «Cesare Brandi, então director do Instituto Central de Restauro, decidiu juntar pacientemente os fragmentos baseando-se em fotografias. Apesar da tecnologia ser mais rudimentar e a superfície pictórica ser muito inferior, o processo foi essencialmente o mesmo. Sucessivamente decidiram colar os fragmentos às paredes, deixando nas zonas irremediavelmente perdidas um esboço a água num tom único que evocasse as linhas do fresco original sem, porém, o pintar de modo arbitrário». Um ensinamento que ainda pode servir de exemplo para os frescos de Assis.

A verdadeira aposta, agora, é «a recomposição das figuras de São Jerónimo e São Mateus, divididas em 150.000 fragmentos», admite Antonio Paolucci, comissário ministerial da basílica. «Não os podemos arquivar todos. Temos é de tentar reconstruir as figuras».

E «cada fragmento é indispensável para a reconstrução dos frescos», sublinha Giuseppe Basile, ao recordar o que aconteceu com dois turistas brasileiros: «Tinham levado para casa alguns pedacinhos da igreja como recordação e decidiram devolvê-los após terem visto uma reportagem na televisão».

Encontrar uma solução para os bocados dos frescos que não se conseguiram recuperar era outro problema. A grande dúvida dos historiadores de arte era se deveriam copiar e voltar a pintar aquilo que faltava - correndo o risco de modificar o fresco -, ou reconstruir a imagem virtualmente e projectar um «slide» simulando o desenho original. «A solução pode parecer simples, mas a superfície curva de muitas paredes dificultava a nossa ideia. Com muitos cálculos matemáticos conseguimos deformar a imagem e ganhar o efeito desejado», garante Basile. «Um método acessível, que não interfere com os outros frescos e que servirá até se encontrar uma solução definitiva».

A obra já feita, exposta aos olhares públicos desde domingo, foi apresentada com honras de cerimónia solene. Reunidos na Basílica para assistir à missa celebrada pelo Cardeal Ângelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, estiveram o Presidente da República Carlo Azeglio e um bom punhado de ministros e outras individualidades políticas.

Apesar disso, a ocasião não recolheu apenas manifestações de júbilo. As mais de 10 mil pessoas que continuam a viver em espaços improvisados, à espera que o Governo conceda os fundos necessários para a reconstrução das suas casas, destruídas no mesmo terramoto, lamentam que a arte e os interesses turísticos tenham sido a prioridade. Entre os contestatários contam-se as monjas clarissas que, em virtude do sismo, tiveram de abandonar o convento do século XVII onde residiam, quebrando a clausura para se juntar ao coro de protestos.

No entanto - críticas à parte - quem estiver interessado em conhecer os pormenores da «operação-milagre» deste restauro, que envolveu mais de setecentas pessoas, pode satisfazer a curiosidade nos oito cadernos editados pelo Comissariado para os Bens Culturais da Região Úmbria e Marche. Neles está descrita cada etapa desta tarefa já baptizada: Estaleiro da Utopia.

Vittoria Di Lelio, correspondente em Roma

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