JORNAL PUBLICO: Ferreira do Amaral me fez

30-10-2000
marcar artigo

09/09/95

Ferreira do Amaral me fez

Luís Miguel Viana

Hoje é a vez da CREL, a Circular Exterior Regional de Lisboa. Dentro de uma semana será a ponte do Freixo, no Porto, e a finalização da auto-estrada Porto-Amarante. E há outras miudezas pelo meio. Enquanto formalmente não começa a campanha eleitoral, Ferreira do Amaral queima os últimos cartuchos, mostrando "obra feita". Outros ministros seguem-lhe as pisadas, num hábito bem português de inaugurar para eleitor ver. Um hábito extensivo a todos os partidos, aliás, como aqui se recorda. Mas como é que se consegue ser um inaugurador de sucesso? Em primeiro lugar, é bom ter obras em andamento. Não havendo dinheiro, isso só se consegue tendo o voluntarismo de as lançar, levando os outros a liquidar as contas com a força da popularidade obreirista que entretanto se conquistou. Ganha-se popularidade eleitoral com a fama de ter força no Governo e vice-versa. Durante cinco anos foi esta a receita do ministro das Obras Públicas.

Quando Ferreira do Amaral tomou posse como ministro das Obras Públicas, Tansportes e Comunicações no início do ano de 1990 o sector levou, logo nos tempos seguintes, uma volta como a que o diabo deu às cabras. Todo o sector? Não. A Habitação esteve no esquecimento até finais de 1993, a história das telecomunicações foi fértil em engulhos, a TAP e a CP não constituiram propriamente modelos de empresas que um Ministério gosta de ter, os efeitos da tutela do Metro só agora começam a ter influência na vida de Lisboa.

O que de novo surgiu no MOPTC já foi mais cantado e recantado do que a casa da mariquinhas: as obras públicas e, mais propriamente, a vertiginosa subida da quantidade de lançamentos e adjudicações, a muito razoável constância com que as infraestruturas entretanto construídas foram entrando ao serviço ao longo das legislaturas e - ponto importante, apesar da dita regularidade das inaugurações - os "ramalhetes" de novas obras que Ferreira do Amaral conseguiu exibir tanto nas vésperas das legislativas de 91 como na presente pré-campanha eleitoral.

Qual é o segredo deste ministro a quem já se chamou "a lebre dos governos de Cavaco Silva". Qual foi a alquimia que lhe permitiu brilhar onde tantos passaram despercebidos? A resposta habitual dos críticos é que ele foi o principal beneficiário do fluxo de verbas comunitárias. Só que tal resposta não explica tudo, não justifica o essencial. Apesar de importante a comparticipação de Bruxelas nas obras públicas portuguesas não foi nem será decisiva. Durante o I Quadro Comunitário de Apoio (1989-94) a UE só pagou à volta de 15 do orçamento geral do Ministério. Quanto às previsões para o II QCA, calcula-se que a comparticipação suba para os 20, um quinto.

Qual é, então, o segredo de Ferreira do Amaral. Ao que parece não é um, são dois: sustentar o seu voluntarismo obreirista (quer dizer, político) com uma gestão financeira de risco (o que também quer dizer, política); e conseguir alimentar a imagem (e logo a influência) no Governo com a imagem (e logo a popularidade) junto do eleitorado e vice-versa, sempre vice-versa, como as pescadinhas de rabo na boca.

As portagens que pagam as obras

O melhor é recorrer a exemplos. Quando Ferreira do Amaral chega ao Ministério tinha o Plano Rodoviário Nacional concluido. Neste, a Circular Regional Externa de Lisboa (CREL) que hoje se inaugura estava a cargo da Junta Autónoma de Estradas. O problema era que a JAE, para além de ser uma máquina pesada e lenta, não tinha meios humanos e materiais para ter prontos estes 34,4 quilómetros muito caros (uma média de 1,5 milhões de contos por quilómetro devido ao preço das expropriações e aos custos de trabalhar em terrenos urbanos) antes de, na melhor das hipóteses, 2000 ou 2001.

O Estado não tinha dinheiro para antecipar a obra para 1995... a não ser que mudasse as cartas na mesa. O ministro das Obras Públicas mudou-as. Em 20 de Agosto de 1991 era publicado em Diário da República o decreto-Lei que aprovava as novas bases de concessão da Brisa - e nela já vinha incluida a CREL. Ou seja, o que só poderia ser construído com dinheiro do Orçamento de Estado passou a ser financiado por empréstimos bancários assumidos pela empresa, os quais, a partir de hoje, começarão a ser pagos com a cobrança das portagens.

Assim se antecipou uma obra cinco anos. Mas Ferreira do Amaral conseguiu outra coisa: com os mais de 50 milhões que deixou de ter de gastar na CREL, a JAE pode lançar várias outras obras, mais pequenas mas mais rápidas, que corresponderam a outras tantas inaugurações, umas a ocorrerem a meio das legislaturas e outras, como é notório, com a sua abertura apontada para os períodos eleitorais.

Na lógica da CREL, Ferreira do Amaral sabe ainda explorar como ninguém os três "momentos políticos" das obras: o anúncio, a adjudicação e a abertura. Por isso há dias voltou a ter um gesto com a "lógica da CREL". Foi quando retirou à JAE o pesado encargo de alargar ou duplicar o IP5 (Aveiro-Vilar Formoso) e o transferiu para as portagens de um trajecto que, por ser a principal saída para a Europa, será fatalmente rentável.

Estar em dívida para receber

Com Metropolitano de Lisboa as coisas foram um pouco diferentes. Mal chegou ao MOPTC Ferreira do Amaral terminou abruptamente com as "conversações" entre o Gabinete de Estudos e Planeamento e o Metro, ignorou o Gabinete e aprovou sem delongas a solução proposta pela empresa através de um despacho. Não havia dinheiro, nem do Orçamento de Estado nem do Feder.

Mesmo assim Ferreira do Amaral avançou. Jogou na sua imagem no Conselho de Ministros e na população, alimentando uma com a outra. Duas coisas se revelaram fundamentais neste caso como, no futuro, em tantos outros: a capacidade de divulgar pela comunicação social toda "a grande revolução da expansão da rede do Metro", conseguindo que essa realidade virtual passasse já por realidade; e, depois de criar "a necessidade" na opinião pública, arrancar de imediato com o projecto, o concurso e a adjudicação da primeira obra (no caso a desconexão da Rotunda). Tudo suportado pelo endividamento do Metropolitano à banca.

Ferreira do Amaral tinha arriscado o que podia, ganhando apenas a imagem pública de ministro empreendedor. Mas foi com ela que pode esgrimir com os seus colegas de Executivo, sobretudo com o ministro das Finanças, para que o erário público assumisse dívidas da empresa e para que a parte dos encaixes das privatizações não absorvidas pela dívida pública pudessem ter as Obras Públicas como destino prioritário. Como, apesar de não ter nenhuma fatia de Feder, o Metro tinha conseguido aprovar os seus projectos em Bruxelas, pode ainda beneficiar do dinheiro destinado a Portugal que certos projectos não conseguiram gastar. "Somos as esponjas, "os enxugas", dos dinheiros europeus", afirma o secretário de Estado dos Transportes e Comunicações.

Lançar as obras antes de ter o dinheiro, trabalhar em "over-booking", ter sempre facturas a apresentar a qualquer fonte de financiamento, nacional ou comunitária, que tenha uma momentânea disponibilidade, e depois de ter as coisas a andar, convenientemente divulgadas, anunciadas e exaltadas com a valorização da sua imagem, pressionar as Finanças e o Planeamento, seduzir o primeiro-ministro, conseguir que a melhor fatia das privatizações reverta para o MOPTC. É esta a marca de cinco anos de "ferreirismo".

"Ficámos delirantes quando o ministro das Finanças conseguiu vender toda a participação do Estado no Banco Português do Atlântico", recorda-se no Ministério. Com boa parte dela se pagaram dívidas, se liquidaram empréstimos, se sanearam empresas transportadoras. Os proventos da privatização da Portugal Telecom, outro exemplo, ficaram literalmente em casa. Noutros ministérios, como é natural, nunca foi levado a bem ter este parceiro useiro e vezeiro na táctica do facto consumado (a dívida contraída) para conseguir dinheiro.

O resultado desta forma heterodoxa de governar - que não seria admitida em países do centro da Europa - é ter posto em andamento um número de obras muito superior ao que era habitual. E, se é da própria natureza desta gestão de risco ter um ritmo de execução constante, isso não obsta a que se possa inaugurar muito antes das eleições. Porque assim se desejou. Porque se consegiu antecipar as obras. Ou simplesmente, como no caso da auto-estrada Penafiel-Amarante, porque os empreiteiros se atrasaram.

09/09/95

Ferreira do Amaral me fez

Luís Miguel Viana

Hoje é a vez da CREL, a Circular Exterior Regional de Lisboa. Dentro de uma semana será a ponte do Freixo, no Porto, e a finalização da auto-estrada Porto-Amarante. E há outras miudezas pelo meio. Enquanto formalmente não começa a campanha eleitoral, Ferreira do Amaral queima os últimos cartuchos, mostrando "obra feita". Outros ministros seguem-lhe as pisadas, num hábito bem português de inaugurar para eleitor ver. Um hábito extensivo a todos os partidos, aliás, como aqui se recorda. Mas como é que se consegue ser um inaugurador de sucesso? Em primeiro lugar, é bom ter obras em andamento. Não havendo dinheiro, isso só se consegue tendo o voluntarismo de as lançar, levando os outros a liquidar as contas com a força da popularidade obreirista que entretanto se conquistou. Ganha-se popularidade eleitoral com a fama de ter força no Governo e vice-versa. Durante cinco anos foi esta a receita do ministro das Obras Públicas.

Quando Ferreira do Amaral tomou posse como ministro das Obras Públicas, Tansportes e Comunicações no início do ano de 1990 o sector levou, logo nos tempos seguintes, uma volta como a que o diabo deu às cabras. Todo o sector? Não. A Habitação esteve no esquecimento até finais de 1993, a história das telecomunicações foi fértil em engulhos, a TAP e a CP não constituiram propriamente modelos de empresas que um Ministério gosta de ter, os efeitos da tutela do Metro só agora começam a ter influência na vida de Lisboa.

O que de novo surgiu no MOPTC já foi mais cantado e recantado do que a casa da mariquinhas: as obras públicas e, mais propriamente, a vertiginosa subida da quantidade de lançamentos e adjudicações, a muito razoável constância com que as infraestruturas entretanto construídas foram entrando ao serviço ao longo das legislaturas e - ponto importante, apesar da dita regularidade das inaugurações - os "ramalhetes" de novas obras que Ferreira do Amaral conseguiu exibir tanto nas vésperas das legislativas de 91 como na presente pré-campanha eleitoral.

Qual é o segredo deste ministro a quem já se chamou "a lebre dos governos de Cavaco Silva". Qual foi a alquimia que lhe permitiu brilhar onde tantos passaram despercebidos? A resposta habitual dos críticos é que ele foi o principal beneficiário do fluxo de verbas comunitárias. Só que tal resposta não explica tudo, não justifica o essencial. Apesar de importante a comparticipação de Bruxelas nas obras públicas portuguesas não foi nem será decisiva. Durante o I Quadro Comunitário de Apoio (1989-94) a UE só pagou à volta de 15 do orçamento geral do Ministério. Quanto às previsões para o II QCA, calcula-se que a comparticipação suba para os 20, um quinto.

Qual é, então, o segredo de Ferreira do Amaral. Ao que parece não é um, são dois: sustentar o seu voluntarismo obreirista (quer dizer, político) com uma gestão financeira de risco (o que também quer dizer, política); e conseguir alimentar a imagem (e logo a influência) no Governo com a imagem (e logo a popularidade) junto do eleitorado e vice-versa, sempre vice-versa, como as pescadinhas de rabo na boca.

As portagens que pagam as obras

O melhor é recorrer a exemplos. Quando Ferreira do Amaral chega ao Ministério tinha o Plano Rodoviário Nacional concluido. Neste, a Circular Regional Externa de Lisboa (CREL) que hoje se inaugura estava a cargo da Junta Autónoma de Estradas. O problema era que a JAE, para além de ser uma máquina pesada e lenta, não tinha meios humanos e materiais para ter prontos estes 34,4 quilómetros muito caros (uma média de 1,5 milhões de contos por quilómetro devido ao preço das expropriações e aos custos de trabalhar em terrenos urbanos) antes de, na melhor das hipóteses, 2000 ou 2001.

O Estado não tinha dinheiro para antecipar a obra para 1995... a não ser que mudasse as cartas na mesa. O ministro das Obras Públicas mudou-as. Em 20 de Agosto de 1991 era publicado em Diário da República o decreto-Lei que aprovava as novas bases de concessão da Brisa - e nela já vinha incluida a CREL. Ou seja, o que só poderia ser construído com dinheiro do Orçamento de Estado passou a ser financiado por empréstimos bancários assumidos pela empresa, os quais, a partir de hoje, começarão a ser pagos com a cobrança das portagens.

Assim se antecipou uma obra cinco anos. Mas Ferreira do Amaral conseguiu outra coisa: com os mais de 50 milhões que deixou de ter de gastar na CREL, a JAE pode lançar várias outras obras, mais pequenas mas mais rápidas, que corresponderam a outras tantas inaugurações, umas a ocorrerem a meio das legislaturas e outras, como é notório, com a sua abertura apontada para os períodos eleitorais.

Na lógica da CREL, Ferreira do Amaral sabe ainda explorar como ninguém os três "momentos políticos" das obras: o anúncio, a adjudicação e a abertura. Por isso há dias voltou a ter um gesto com a "lógica da CREL". Foi quando retirou à JAE o pesado encargo de alargar ou duplicar o IP5 (Aveiro-Vilar Formoso) e o transferiu para as portagens de um trajecto que, por ser a principal saída para a Europa, será fatalmente rentável.

Estar em dívida para receber

Com Metropolitano de Lisboa as coisas foram um pouco diferentes. Mal chegou ao MOPTC Ferreira do Amaral terminou abruptamente com as "conversações" entre o Gabinete de Estudos e Planeamento e o Metro, ignorou o Gabinete e aprovou sem delongas a solução proposta pela empresa através de um despacho. Não havia dinheiro, nem do Orçamento de Estado nem do Feder.

Mesmo assim Ferreira do Amaral avançou. Jogou na sua imagem no Conselho de Ministros e na população, alimentando uma com a outra. Duas coisas se revelaram fundamentais neste caso como, no futuro, em tantos outros: a capacidade de divulgar pela comunicação social toda "a grande revolução da expansão da rede do Metro", conseguindo que essa realidade virtual passasse já por realidade; e, depois de criar "a necessidade" na opinião pública, arrancar de imediato com o projecto, o concurso e a adjudicação da primeira obra (no caso a desconexão da Rotunda). Tudo suportado pelo endividamento do Metropolitano à banca.

Ferreira do Amaral tinha arriscado o que podia, ganhando apenas a imagem pública de ministro empreendedor. Mas foi com ela que pode esgrimir com os seus colegas de Executivo, sobretudo com o ministro das Finanças, para que o erário público assumisse dívidas da empresa e para que a parte dos encaixes das privatizações não absorvidas pela dívida pública pudessem ter as Obras Públicas como destino prioritário. Como, apesar de não ter nenhuma fatia de Feder, o Metro tinha conseguido aprovar os seus projectos em Bruxelas, pode ainda beneficiar do dinheiro destinado a Portugal que certos projectos não conseguiram gastar. "Somos as esponjas, "os enxugas", dos dinheiros europeus", afirma o secretário de Estado dos Transportes e Comunicações.

Lançar as obras antes de ter o dinheiro, trabalhar em "over-booking", ter sempre facturas a apresentar a qualquer fonte de financiamento, nacional ou comunitária, que tenha uma momentânea disponibilidade, e depois de ter as coisas a andar, convenientemente divulgadas, anunciadas e exaltadas com a valorização da sua imagem, pressionar as Finanças e o Planeamento, seduzir o primeiro-ministro, conseguir que a melhor fatia das privatizações reverta para o MOPTC. É esta a marca de cinco anos de "ferreirismo".

"Ficámos delirantes quando o ministro das Finanças conseguiu vender toda a participação do Estado no Banco Português do Atlântico", recorda-se no Ministério. Com boa parte dela se pagaram dívidas, se liquidaram empréstimos, se sanearam empresas transportadoras. Os proventos da privatização da Portugal Telecom, outro exemplo, ficaram literalmente em casa. Noutros ministérios, como é natural, nunca foi levado a bem ter este parceiro useiro e vezeiro na táctica do facto consumado (a dívida contraída) para conseguir dinheiro.

O resultado desta forma heterodoxa de governar - que não seria admitida em países do centro da Europa - é ter posto em andamento um número de obras muito superior ao que era habitual. E, se é da própria natureza desta gestão de risco ter um ritmo de execução constante, isso não obsta a que se possa inaugurar muito antes das eleições. Porque assim se desejou. Porque se consegiu antecipar as obras. Ou simplesmente, como no caso da auto-estrada Penafiel-Amarante, porque os empreiteiros se atrasaram.

marcar artigo