Afinal, o safanão

04-01-2002
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EDITORIAL

Afinal, o Safanão

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2001

O imprevisível aconteceu. O povo falou, afluiu às urnas em percentagem superior ao normal e provocou exactamente aquilo que, na passada sexta-feira, eu próprio considerei improvável: um "cataclismo eleitoral". Sem ele, havia poucas probabilidades de ocorrer uma verdadeira "pedrada no charco" que ajudasse a desestabilizar a modorra política em que vivíamos. Acrescentava na altura, incrédulo, que das "eleições dificilmente sairá aquilo que muitos desejam: uma clarificação. Um safanão". Ora, concluía, o "país necessita realmente de um safanão. Uma pedrada no charco. Para não se afundar no pântano".

Enganei-me. Nunca esperei que, quando a noite já ia alta, António Guterres surgisse perante as televisões não para salvar os poucos cacos que poderia salvar numa noite de terramoto eleitoral, mas para retomar a ideia de que é necessário evitar que o país se afunde no tal pântano.

O homem de borracha, o governante que já vimos adaptar-se a todas as circunstâncias e explicar com o mesmo sorriso políticas opostas, assumiu a verticalidade. Percebeu que, depois da mais terrível noite eleitoral da sua carreira como líder do PS, só lhe restava a clarificação. Anunciou por isso que vai a Belém apresentar o seu pedido de demissão de primeiro-ministro. Fez bem, honra lhe seja prestada.

Formalmente, Guterres não tinha de se demitir: continua a dispor, no Parlamento, da mesma maioria de que dispunha no sábado passado. Mas politicamente a sua situação tinha-se tornado insustentável: se não tivesse remediado o seu Governo há apenas alguns meses, poderia tentar um novo recomeço; se não tivesse deixado erodir o seu capital de simpatia, poderia tentar o golpe de rins político; se lhe restasse dinheiro nos cofres do Estado, podia tentar umas flores para cativar o povo.

Mas não. Guterres afundou-se com os seus autarcas mais importantes porque, como eles, permitiu que o PS, o Governo, as autarquias, o aparelho de Estado, tudo fosse lentamente substituindo uma cultura de serviço público por uma postura de arrogância de quem se sente intocável. Sucessivas vitórias eleitorais - Guterres não conhecia o sabor da derrota em eleições locais, nacionais, europeias e presidenciais desde 1991 - criaram no partido do poder a cultura do "quero, posso e mando", fizeram grassar os hábitos de desresponsabilização, estimularam o recurso ao "ziguezague" político como forma de ultrapassar as dificuldades e sossegaram todas as inquietações: estava-se no poder e por aí se continuaria, sem castigo, sem dificuldade. Bastava contar com a fraqueza da oposição.

O que agora sucedeu foi que os eleitores, cansados e desiludidos, nalguns casos totalmente saturados da postura arrogante e pomposa de muitos autarcas socialistas, aproveitaram a circunstância de surgirem, nas listas da oposição, figuras suficientemente apresentáveis para desalojar do poder as rosas com mais espinhos.

Foi por isso que, numa dimensão que poucos esperavam, as eleições de ontem mostraram que o PS já não é dono do voto urbano. Que perdeu o voto jovem. Que já saturou as elites. E que só não perdeu totalmente o país porque o país não sabe ainda nos braços de quem se entregar. Para já, localmente, sempre que os partidos da oposição encontraram alternativas locais fortes e apresentaram candidatos credíveis, os eleitores não hesitaram em trocar de partido. Já estiveram muito mais longe de o fazer também a nível nacional.

Vamos assim entrar em 2002 - o único ano em que não se previa que ocorressem eleições... - com a perspectiva de irmos em breve às urnas. Porque não restará ao Presidente da República outra alternativa. Reconduzir António Guterres é correr o risco de tentar, pela enésima vez, o estafado "novo ciclo" que se esgota numa retórica que os eleitores já não entendem. Escolher outro primeiro-ministro é possível, mas faltará sempre a este as condições de estabilidade e legitimidade para conduzir o país numa curva difícil da sua história.

Teremos por isso de voltar a consultar o povo - e falar-lhe verdade: os tempos que aí vêm são difíceis. Não acreditem nos vendedores de ilusões e nos homens das promessas. Prefiram quem lhes fale verdade e lhes diga que os próximos tempos, com ou sem o partido da rosa no poder, terão muitos espinhos. Temos muito que trabalhar para ganhar o tempo que perdemos. Saibamos aproveitar o safanão, saibamos evitar o pântano. Olhemos para a crise como uma oportunidade: a nossa.

EDITORIAL

Afinal, o Safanão

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2001

O imprevisível aconteceu. O povo falou, afluiu às urnas em percentagem superior ao normal e provocou exactamente aquilo que, na passada sexta-feira, eu próprio considerei improvável: um "cataclismo eleitoral". Sem ele, havia poucas probabilidades de ocorrer uma verdadeira "pedrada no charco" que ajudasse a desestabilizar a modorra política em que vivíamos. Acrescentava na altura, incrédulo, que das "eleições dificilmente sairá aquilo que muitos desejam: uma clarificação. Um safanão". Ora, concluía, o "país necessita realmente de um safanão. Uma pedrada no charco. Para não se afundar no pântano".

Enganei-me. Nunca esperei que, quando a noite já ia alta, António Guterres surgisse perante as televisões não para salvar os poucos cacos que poderia salvar numa noite de terramoto eleitoral, mas para retomar a ideia de que é necessário evitar que o país se afunde no tal pântano.

O homem de borracha, o governante que já vimos adaptar-se a todas as circunstâncias e explicar com o mesmo sorriso políticas opostas, assumiu a verticalidade. Percebeu que, depois da mais terrível noite eleitoral da sua carreira como líder do PS, só lhe restava a clarificação. Anunciou por isso que vai a Belém apresentar o seu pedido de demissão de primeiro-ministro. Fez bem, honra lhe seja prestada.

Formalmente, Guterres não tinha de se demitir: continua a dispor, no Parlamento, da mesma maioria de que dispunha no sábado passado. Mas politicamente a sua situação tinha-se tornado insustentável: se não tivesse remediado o seu Governo há apenas alguns meses, poderia tentar um novo recomeço; se não tivesse deixado erodir o seu capital de simpatia, poderia tentar o golpe de rins político; se lhe restasse dinheiro nos cofres do Estado, podia tentar umas flores para cativar o povo.

Mas não. Guterres afundou-se com os seus autarcas mais importantes porque, como eles, permitiu que o PS, o Governo, as autarquias, o aparelho de Estado, tudo fosse lentamente substituindo uma cultura de serviço público por uma postura de arrogância de quem se sente intocável. Sucessivas vitórias eleitorais - Guterres não conhecia o sabor da derrota em eleições locais, nacionais, europeias e presidenciais desde 1991 - criaram no partido do poder a cultura do "quero, posso e mando", fizeram grassar os hábitos de desresponsabilização, estimularam o recurso ao "ziguezague" político como forma de ultrapassar as dificuldades e sossegaram todas as inquietações: estava-se no poder e por aí se continuaria, sem castigo, sem dificuldade. Bastava contar com a fraqueza da oposição.

O que agora sucedeu foi que os eleitores, cansados e desiludidos, nalguns casos totalmente saturados da postura arrogante e pomposa de muitos autarcas socialistas, aproveitaram a circunstância de surgirem, nas listas da oposição, figuras suficientemente apresentáveis para desalojar do poder as rosas com mais espinhos.

Foi por isso que, numa dimensão que poucos esperavam, as eleições de ontem mostraram que o PS já não é dono do voto urbano. Que perdeu o voto jovem. Que já saturou as elites. E que só não perdeu totalmente o país porque o país não sabe ainda nos braços de quem se entregar. Para já, localmente, sempre que os partidos da oposição encontraram alternativas locais fortes e apresentaram candidatos credíveis, os eleitores não hesitaram em trocar de partido. Já estiveram muito mais longe de o fazer também a nível nacional.

Vamos assim entrar em 2002 - o único ano em que não se previa que ocorressem eleições... - com a perspectiva de irmos em breve às urnas. Porque não restará ao Presidente da República outra alternativa. Reconduzir António Guterres é correr o risco de tentar, pela enésima vez, o estafado "novo ciclo" que se esgota numa retórica que os eleitores já não entendem. Escolher outro primeiro-ministro é possível, mas faltará sempre a este as condições de estabilidade e legitimidade para conduzir o país numa curva difícil da sua história.

Teremos por isso de voltar a consultar o povo - e falar-lhe verdade: os tempos que aí vêm são difíceis. Não acreditem nos vendedores de ilusões e nos homens das promessas. Prefiram quem lhes fale verdade e lhes diga que os próximos tempos, com ou sem o partido da rosa no poder, terão muitos espinhos. Temos muito que trabalhar para ganhar o tempo que perdemos. Saibamos aproveitar o safanão, saibamos evitar o pântano. Olhemos para a crise como uma oportunidade: a nossa.

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