Fracturar e facturar

07-09-2001
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OPINIÃO

Fracturar e Facturar

Por PEDRO MAGALHÃES

Quinta-feira, 3 de Maio de 2001 Há algumas semanas, foi-me feita a observação de que as sondagens só poderão reflectir devidamente o estado da opinião pública em Portugal quando passarem a exprimir as intenções de voto com valores negativos. Os resultados do estudo de opinião divulgados pelo PÚBLICO nos últimos dias dão pertinência à observação. Olhando para as intenções directas de voto, o PS perdeu nada menos que 10,4 por cento de eleitorado desde Janeiro, seguindo-se-lhe o PSD (-7,1%), o Bloco de Esquerda (-1,8%) e o PCP (-1,4%), com o CDS-PP a crescer uns meros 0,4 por cento. Para onde foi toda esta gente? Em Janeiro, quando convidados a manifestar uma intenção de voto em eleições legislativas, 26% dos inquiridos não indicava qualquer partido. Hoje, nada menos que 46% dos portugueses afirma não saber em quem votar, ou saber, simplesmente, que não votaria em ninguém. A distância entre futuras eleições e as preocupações quotidianas dos eleitores ajuda a explicar esta desmobilização "subterrânea". Mas não chega. Quarenta e um por cento descreve a actuação do Governo como "má" ou "muito má", seis pontos acima dos já maus resultados de Janeiro. Contudo, quando a 76 por cento dos portugueses não ocorre nenhum partido que pudesse fazer melhor que o PS, se estivesse no Governo, a desmobilização começa a ganhar explicações distintas. Nos anos derradeiros do cavaquismo, Soares e Guterres polarizaram o descontentamento dos eleitores, apontando a contradição entre o poder supostamente absoluto do PSD e os insucessos da governação. Hoje, com Sampaio indeciso sobre o que fazer ao imenso poder que lhe foi depositado em Janeiro, sem uma maioria absoluta à qual se possam atribuir inquestionáveis responsabilidades e enquanto os desvios das previsões de Pina Moura não passarem das casas decimais, a insatisfação dos portugueses tenderá provavelmente a desfocar-se para objectos mais difusos: a já elevada desconfiança nas instituições políticas e judiciais cresceu paulatinamente no último ano, e 75,8 por cento dos inquiridos afirmam-se hoje "pouco" ou "nada" satisfeitos "com a maneira como funciona a democracia em Portugal". Segundo dados do Eurobarómetro recentemente divulgados, em Dezembro do ano passado, essa percentagem era de "apenas" 50 por cento. Dito isto, seria de esperar que alguém retirasse alguns dividendos eleitorais desta insatisfação. Ao adoptar temas como os direitos dos imigrantes, a representação política das mulheres, a redução da idade de voto, os direitos e liberdades reprodutivas e sexuais e a "democracia participativa", o BE tem deslocado o debate político para a definição de cidadania e para o estatuto de quem participa nas decisões colectivas numa democracia. Por outras palavras, em vez de se discutirem os resultados do "sistema" (por exemplo, a distribuição de benefícios entre o capital e o trabalho), tratar-se-ia de discutir as próprias regras do seu funcionamento, um discurso político aparentemente capaz de apelar ao descontentamento difuso em relação à "democracia liberal" que já faz parte da cultura política de algumas fracções urbanas, instruídas e mais sofisticadas do eleitorado. Contudo, é precisamente no momento em que esse descontentamento atinge os níveis mais elevados desde as últimas eleições que o Bloco parece começar a perder algum do seu ímpeto. Pela primeira vez desde 1999, o BE desce nas intenções de voto. Como se explica este paradoxo? Em artigo recente, Miguel Vale de Almeida falava de "dois Portugais", um "moderno, cosmopolita, preocupado com os direitos das pessoas e com gosto pela promoção das diferenças", e outro onde grassa "o desconforto e a insegurança". Mas há também dois Blocos. Um é o da agenda da "nova esquerda". O outro revela-se nesta sondagem, em que nada menos que um terço do actual eleitorado do BE acha que "o Governo deve impedir a entrada de imigrantes enquanto não houver trabalho para todos os portugueses", e metade considera o agravamento das penas como condição necessária para a diminuição da criminalidade - ou seja, um BE nada "moderno", e bastante "desconfortável" e "inseguro". As consequências desta contradição eram já visíveis nas presidenciais. Na verdade, a suposta consolidação do eleitorado do BE representada pelo resultado de Fernando Rosas não passou de um puro artefacto da abstenção. A seguir a António Abreu, Rosas foi o candidato menos capaz de captar o eleitorado do seu próprio partido, e cujo discurso sobre as "conquistas de Abril" e "as relações historicamente injustas entre o capital e o trabalho", dirigido à metade "desconfortável" e "insegura" do BE, se arrisca a matar de tédio a outra metade. Como se isto não bastasse, o Bloco começa a ser vítima do seu próprio sucesso, mensurável na forma como alguns dos seus temas dominaram a agenda política dos últimos meses. Note-se que esse domínio foi conseguido com a prestimosa e nada desinteressada colaboração do PS. Ingenuamente, há quem sugira que a adopção de uma agenda "radical" e "fracturante" por parte do PS o levará a perder os votos de um putativo centro. Sucede que a dita agenda é, pelos vistos, muito pouco "radical", e tão ou mais "fracturante" para os outros partidos do que para o PS. Há dois meses, em sondagem do Cesop [Centro de Estudos e Sondagens de Opinião], a maioria dos portugueses manifestava-se favorável ou indiferente em relação às salas de chuto. E hoje, enquanto o mesmo sucede em relação à despenalização do consumo de drogas, às uniões de facto entre homossexuais e às quotas para as mulheres, o PSD vai sendo suavemente induzido a tomar o partido de posições aparentemente minoritárias não só entre a totalidade do eleitorado, mas também entre os seus próprios eleitores. Assim, o PS vai fracturando e facturando. E o Bloco? O risco é que, especialmente para a sua metade "moderna" e "cosmopolita", a aparência de um amável conúbio com o PS e a crescente disponibilidade para o negócio (veja-se o sistema eleitoral) o torne, no máximo, parte do problema e não da solução, e, no mínimo, dispensável. investigador do Instituto de Ciências Sociais e Universidade Católica Portuguesa OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Preocupação com o crime aumenta

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Portugueses confiam mais nas autarquias do que no Governo

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Por PEDRO MAGALHÃES

Quinta-feira, 3 de Maio de 2001 Há algumas semanas, foi-me feita a observação de que as sondagens só poderão reflectir devidamente o estado da opinião pública em Portugal quando passarem a exprimir as intenções de voto com valores negativos. Os resultados do estudo de opinião divulgados pelo PÚBLICO nos últimos dias dão pertinência à observação. Olhando para as intenções directas de voto, o PS perdeu nada menos que 10,4 por cento de eleitorado desde Janeiro, seguindo-se-lhe o PSD (-7,1%), o Bloco de Esquerda (-1,8%) e o PCP (-1,4%), com o CDS-PP a crescer uns meros 0,4 por cento. Para onde foi toda esta gente? Em Janeiro, quando convidados a manifestar uma intenção de voto em eleições legislativas, 26% dos inquiridos não indicava qualquer partido. Hoje, nada menos que 46% dos portugueses afirma não saber em quem votar, ou saber, simplesmente, que não votaria em ninguém. A distância entre futuras eleições e as preocupações quotidianas dos eleitores ajuda a explicar esta desmobilização "subterrânea". Mas não chega. Quarenta e um por cento descreve a actuação do Governo como "má" ou "muito má", seis pontos acima dos já maus resultados de Janeiro. Contudo, quando a 76 por cento dos portugueses não ocorre nenhum partido que pudesse fazer melhor que o PS, se estivesse no Governo, a desmobilização começa a ganhar explicações distintas. Nos anos derradeiros do cavaquismo, Soares e Guterres polarizaram o descontentamento dos eleitores, apontando a contradição entre o poder supostamente absoluto do PSD e os insucessos da governação. Hoje, com Sampaio indeciso sobre o que fazer ao imenso poder que lhe foi depositado em Janeiro, sem uma maioria absoluta à qual se possam atribuir inquestionáveis responsabilidades e enquanto os desvios das previsões de Pina Moura não passarem das casas decimais, a insatisfação dos portugueses tenderá provavelmente a desfocar-se para objectos mais difusos: a já elevada desconfiança nas instituições políticas e judiciais cresceu paulatinamente no último ano, e 75,8 por cento dos inquiridos afirmam-se hoje "pouco" ou "nada" satisfeitos "com a maneira como funciona a democracia em Portugal". Segundo dados do Eurobarómetro recentemente divulgados, em Dezembro do ano passado, essa percentagem era de "apenas" 50 por cento. Dito isto, seria de esperar que alguém retirasse alguns dividendos eleitorais desta insatisfação. Ao adoptar temas como os direitos dos imigrantes, a representação política das mulheres, a redução da idade de voto, os direitos e liberdades reprodutivas e sexuais e a "democracia participativa", o BE tem deslocado o debate político para a definição de cidadania e para o estatuto de quem participa nas decisões colectivas numa democracia. Por outras palavras, em vez de se discutirem os resultados do "sistema" (por exemplo, a distribuição de benefícios entre o capital e o trabalho), tratar-se-ia de discutir as próprias regras do seu funcionamento, um discurso político aparentemente capaz de apelar ao descontentamento difuso em relação à "democracia liberal" que já faz parte da cultura política de algumas fracções urbanas, instruídas e mais sofisticadas do eleitorado. Contudo, é precisamente no momento em que esse descontentamento atinge os níveis mais elevados desde as últimas eleições que o Bloco parece começar a perder algum do seu ímpeto. Pela primeira vez desde 1999, o BE desce nas intenções de voto. Como se explica este paradoxo? Em artigo recente, Miguel Vale de Almeida falava de "dois Portugais", um "moderno, cosmopolita, preocupado com os direitos das pessoas e com gosto pela promoção das diferenças", e outro onde grassa "o desconforto e a insegurança". Mas há também dois Blocos. Um é o da agenda da "nova esquerda". O outro revela-se nesta sondagem, em que nada menos que um terço do actual eleitorado do BE acha que "o Governo deve impedir a entrada de imigrantes enquanto não houver trabalho para todos os portugueses", e metade considera o agravamento das penas como condição necessária para a diminuição da criminalidade - ou seja, um BE nada "moderno", e bastante "desconfortável" e "inseguro". As consequências desta contradição eram já visíveis nas presidenciais. Na verdade, a suposta consolidação do eleitorado do BE representada pelo resultado de Fernando Rosas não passou de um puro artefacto da abstenção. A seguir a António Abreu, Rosas foi o candidato menos capaz de captar o eleitorado do seu próprio partido, e cujo discurso sobre as "conquistas de Abril" e "as relações historicamente injustas entre o capital e o trabalho", dirigido à metade "desconfortável" e "insegura" do BE, se arrisca a matar de tédio a outra metade. Como se isto não bastasse, o Bloco começa a ser vítima do seu próprio sucesso, mensurável na forma como alguns dos seus temas dominaram a agenda política dos últimos meses. Note-se que esse domínio foi conseguido com a prestimosa e nada desinteressada colaboração do PS. Ingenuamente, há quem sugira que a adopção de uma agenda "radical" e "fracturante" por parte do PS o levará a perder os votos de um putativo centro. Sucede que a dita agenda é, pelos vistos, muito pouco "radical", e tão ou mais "fracturante" para os outros partidos do que para o PS. Há dois meses, em sondagem do Cesop [Centro de Estudos e Sondagens de Opinião], a maioria dos portugueses manifestava-se favorável ou indiferente em relação às salas de chuto. E hoje, enquanto o mesmo sucede em relação à despenalização do consumo de drogas, às uniões de facto entre homossexuais e às quotas para as mulheres, o PSD vai sendo suavemente induzido a tomar o partido de posições aparentemente minoritárias não só entre a totalidade do eleitorado, mas também entre os seus próprios eleitores. Assim, o PS vai fracturando e facturando. E o Bloco? O risco é que, especialmente para a sua metade "moderna" e "cosmopolita", a aparência de um amável conúbio com o PS e a crescente disponibilidade para o negócio (veja-se o sistema eleitoral) o torne, no máximo, parte do problema e não da solução, e, no mínimo, dispensável. investigador do Instituto de Ciências Sociais e Universidade Católica Portuguesa OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Preocupação com o crime aumenta

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