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09-03-2001
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Não que o ministro não tivesse continuado a dar a imagem pública de estar interessado em resolver alguns dos problemas mais candentes que condicionam a segurança e defesa de Portugal. Mas a impressão que, todo este tempo depois, se tem é a de que algo se opõe à sua vontade, bloqueia o andamento dos processos, atrasa as decisões, e mantém a lastimável situação em que nos encontrávamos nos princípios de 2000. Como o empastelamento dos problemas arrasta outros problemas, além da ansiedade e falta de confiança que provoca, a verdade é que, nos inícios de 2001 a segurança e defesa de Portugal se encontram, lamentavelmente, bem pior do que nessa altura.

Tudo isto ao mesmo tempo que se sucedem comportamentos por parte de alguns dos principais protagonistas do poder político que revelam serem complicadas as suas relações com as Forças Armadas. Desde declarações a despropósito, que, objectivamente, humilham os militares, até uma metodologia inexplicável no processo de consultas que a lei determina para a nomeação de um chefe de estado-maior, que desembocou num braço-de-ferro do Governo com o Exército, do qual se saiu, como deve ser numa democracia, na imposição do chefe, pelo poder democrático, contra a vontade institucional expressa, o que aconteceu pela primeira vez desde que os militares e os civis de 74 e 75 estabeleceram o actual regime em Portugal.

Vejamos.

Continuamos sem um verdadeiro e útil conceito estratégico de defesa nacional, portanto sem saber quais as ameaças e riscos a que devemos responder, e quais os cenários para que devemos estar preparados.

Aliás, a própria lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, elaborada em 1982, portanto com lacunas que na data eram justificadas, mantém-se praticamente inalterada no essencial, apesar de ser hoje opinião generalizada, a começar pelo professor Freitas do Amaral, seu principal autor, de que necessita de alterações urgentes, quer no que respeita à articulação do Estado português para a segurança e defesa, quer no que se refere aos direitos que a lei permite aos militares, cuja desactualização é manifesta, como reconhecem todas as forças políticas.

Basta atentar na composição e missões do Conselho Superior de Defesa Nacional, no papel do Presidente da República, no silêncio legal quanto à configuração de situações de crise, na inexistência de órgãos de staff apropriados, nos problemas que se têm colocado quanto ao direito de expressão, de participação política e de associação dos militares, donde se infere a clara falta de sintonia entre os responsáveis políticos e os chefes militares, dando a sensação de que não existem instruções concretas dos primeiros aos segundos, ou, então, que há chefes usando a letra da lei para provocarem, objectivamente, a tutela política.

Em termos de financiamento das Forças Armadas, para que elas possam levar a efeito com dignidade e profissionalismo (o que é seu timbre) as tarefas que o Estado lhes entrega, verificou-se uma excepção que merece ser devidamente assinalada. Quando o orçamento de funcionamento da Defesa para 2001 foi aumentado em sete por cento, o que foi quase único no conjunto dos sectores do Estado e por isso mais digno de realce.

Mas continua-se à espera, desde 1999, da concretização de um plano que actualize os vencimentos dos militares, promessa que consta do decreto-lei que estabeleceu, naquela data, uma revisão intercalar de remunerações, promessa repetidas vezes reafirmada publicamente pelo ministro da Defesa, de que um virtual grupo interministerial para o seu estudo há muito tempo deveria estar a tratar.

Veremos como este assunto evoluirá. Satisfazendo a vontade dos nossos responsáveis políticos, os militares recorrem com frequência à Internet e, mesmo que não queiram, enquanto em Portugal se não usarem os mesmos métodos da China, tomam conhecimento das actualizações de vencimentos que os governos dos nossos parceiros da NATO vêm decretando...

A proposta de lei de programação militar que se encontra em cima da mesa (segundo a comunicação social) revela que poderá fracassar a estratégia seguida por Castro Caldas, tentando adquirir equipamento não só de primeira mas também de segunda prioridade. Chega mesmo a estar prevista a obtenção de material de utilização menos provável, antes daquele de que estamos a precisar em cada dia que passa, nas missões de paz e humanitárias.

Por outro lado, é utilizado um processo de financiamento que transforma a lei de programação numa operação que só termina para as calendas. Nos outros países, São raros os programas que se desenvolvem por prazos superiores a 10/15 anos (quando, aí, não se limitam a comprar, mas a produzir o seu próprio equipamento). É como se as caravelas que Vasco da Gama conduziu para a Índia tivessem sido acabadas de pagar por D. João III...

Além do mais, é transmitida para a opinião pública a imagem de gastos com a Defesa manifestamente exagerados, que só atingem estes valores por causa do método de financiamento utilizado, com os encargos financeiros inerentes, separando-os do conjunto dos restantes encargos da dívida pública, chamando a atenção da opinião pública para os custos dos equipamentos militares.

A este respeito, parece ser legítimo afirmar que o Governo não entendeu que o planeamento de forças deve ser gizado para um contexto estratégico temporal (que, na actualidade, ronda os 15 anos), dentro do qual devem ser definidos os objectivos de defesa a atingir (estratégia dos fins) e os meios adequados para os concretizar (estratégia dos meios). Isto a despeito de certos objectivos de forças terem início no decorrer de um certo período e terminarem durante o seguinte. E os meios terão que ser adequados aos fins, para o que, frequentemente, é necessário levar a efeito ajustamentos, ou nos meios, reforçando-os, ou nos fins, limitando-os. Se isto não acontecer, o País sujeita-se a, no contexto estratégico posterior, não ter capacidade para materializar os objectivos que lhe correspondam, pois ainda está a pagar os objectivos do período anterior, quantas vezes já inúteis ou profundamente alterados.

A coroar toda a situação já descrita, que se deve ao Governo, em especial à personalidade que a ele preside, verificou-se há dias uma querela entre o poder político e o Exército que bem retrata a forma como aqueles que deveriam ser responsáveis actuam.

Tem-se usado frequentes vezes o corporativismo militar "exagerado" dos vários ramos das Forças Armadas como justificação para a inacção governativa em assuntos de defesa. Queixam-se os governantes, muitas vezes, de que os Ramos não se entendem e portanto não é possível avançar tanto como eles pretenderiam. Esquecem-se que o corporativismo militar é um dos elementos essenciais das diversas componentes da instituição, estando na base do espírito de corpo que torna os militares orgulhosos de lhes pertencerem, sendo mesmo capazes de arriscar a vida para defenderem os valores que conjuntamente forjam. E que, em caso de não entendimento entre si, como é comum nas Forças Armadas dos países mais avançados do mundo, o poder político tem o dever de assumir as suas responsabilidades, decidindo, e assumindo assim o ónus e os benefícios de tais decisões.

O que parece é que o primeiro-ministro não faz nenhuma ideia do que é o corporativismo militar (não confundível com o de outras profissões), tendo mesmo chegado ao extremo de o anatemizar. Certamente não sabe que o espírito de corpo nas FA é um dos seus elementos vitais e, em democracia, significa obediência ao poder político, mas com dignidade, ou seja, sem subserviência.

Em democracia, a Instituição Militar conhece o que está em jogo, nas suas relações com o poder e, sem nunca o pôr em causa, apresenta frontal e lealmente a sua opinião. Não conspira, nem sequer no sótão. Em ditadura, é que o ideal dos caudilhos políticos é disporem de FA suficientemente ignorantes para serem subservientes.

O primeiro-ministro revelou desconhecer que, quando as FA perdem a sua dignidade perante o poder político, estão em vias de perdê-la no cumprimento das missões que este, legitimamente, lhes comete.

Sendo o primeiro-ministro, segundo se diz, um homem dado à História, talvez precise de dedicar mais atenção à história das relações entre o poder e as FA, em Portugal e em outros países, e observar com atenção o que a este respeito está a acontecer nos EUA, Reino Unido e França, só para citar algumas das democracias mais estáveis do Ocidente.

Espero que não pense que Eisenhower, Marshall e De Gaulle tenham sido perigosos corporativistas militares, e que Collin Powell também o seja...

A leitura de alguns clássicos é sempre aconselhável. Se ainda não o fez, comece por Samuel Huntington, Morris Janowitz e S. E. Finer, e pelos portugueses Fernando Pereira Marques, Vasco Pulido Valente e José Medeiros Ferreira. E, já agora, se puder, leia Charles Moskos* e Carl C. Hodge**, para ver o que os governos das principais democracias europeias já fizeram nos últimos anos, e o Governo português não fez.

A ignorância é atrevida.

No poder, é descarada.

E perigosa.

*Em Post-modern Military, Oxford University Press, 2000.

**Em Redefining European Security, Garland Publishing, Inc, London, 1999.

José Alberto Loureiro dos Santos é general

Não que o ministro não tivesse continuado a dar a imagem pública de estar interessado em resolver alguns dos problemas mais candentes que condicionam a segurança e defesa de Portugal. Mas a impressão que, todo este tempo depois, se tem é a de que algo se opõe à sua vontade, bloqueia o andamento dos processos, atrasa as decisões, e mantém a lastimável situação em que nos encontrávamos nos princípios de 2000. Como o empastelamento dos problemas arrasta outros problemas, além da ansiedade e falta de confiança que provoca, a verdade é que, nos inícios de 2001 a segurança e defesa de Portugal se encontram, lamentavelmente, bem pior do que nessa altura.

Tudo isto ao mesmo tempo que se sucedem comportamentos por parte de alguns dos principais protagonistas do poder político que revelam serem complicadas as suas relações com as Forças Armadas. Desde declarações a despropósito, que, objectivamente, humilham os militares, até uma metodologia inexplicável no processo de consultas que a lei determina para a nomeação de um chefe de estado-maior, que desembocou num braço-de-ferro do Governo com o Exército, do qual se saiu, como deve ser numa democracia, na imposição do chefe, pelo poder democrático, contra a vontade institucional expressa, o que aconteceu pela primeira vez desde que os militares e os civis de 74 e 75 estabeleceram o actual regime em Portugal.

Vejamos.

Continuamos sem um verdadeiro e útil conceito estratégico de defesa nacional, portanto sem saber quais as ameaças e riscos a que devemos responder, e quais os cenários para que devemos estar preparados.

Aliás, a própria lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, elaborada em 1982, portanto com lacunas que na data eram justificadas, mantém-se praticamente inalterada no essencial, apesar de ser hoje opinião generalizada, a começar pelo professor Freitas do Amaral, seu principal autor, de que necessita de alterações urgentes, quer no que respeita à articulação do Estado português para a segurança e defesa, quer no que se refere aos direitos que a lei permite aos militares, cuja desactualização é manifesta, como reconhecem todas as forças políticas.

Basta atentar na composição e missões do Conselho Superior de Defesa Nacional, no papel do Presidente da República, no silêncio legal quanto à configuração de situações de crise, na inexistência de órgãos de staff apropriados, nos problemas que se têm colocado quanto ao direito de expressão, de participação política e de associação dos militares, donde se infere a clara falta de sintonia entre os responsáveis políticos e os chefes militares, dando a sensação de que não existem instruções concretas dos primeiros aos segundos, ou, então, que há chefes usando a letra da lei para provocarem, objectivamente, a tutela política.

Em termos de financiamento das Forças Armadas, para que elas possam levar a efeito com dignidade e profissionalismo (o que é seu timbre) as tarefas que o Estado lhes entrega, verificou-se uma excepção que merece ser devidamente assinalada. Quando o orçamento de funcionamento da Defesa para 2001 foi aumentado em sete por cento, o que foi quase único no conjunto dos sectores do Estado e por isso mais digno de realce.

Mas continua-se à espera, desde 1999, da concretização de um plano que actualize os vencimentos dos militares, promessa que consta do decreto-lei que estabeleceu, naquela data, uma revisão intercalar de remunerações, promessa repetidas vezes reafirmada publicamente pelo ministro da Defesa, de que um virtual grupo interministerial para o seu estudo há muito tempo deveria estar a tratar.

Veremos como este assunto evoluirá. Satisfazendo a vontade dos nossos responsáveis políticos, os militares recorrem com frequência à Internet e, mesmo que não queiram, enquanto em Portugal se não usarem os mesmos métodos da China, tomam conhecimento das actualizações de vencimentos que os governos dos nossos parceiros da NATO vêm decretando...

A proposta de lei de programação militar que se encontra em cima da mesa (segundo a comunicação social) revela que poderá fracassar a estratégia seguida por Castro Caldas, tentando adquirir equipamento não só de primeira mas também de segunda prioridade. Chega mesmo a estar prevista a obtenção de material de utilização menos provável, antes daquele de que estamos a precisar em cada dia que passa, nas missões de paz e humanitárias.

Por outro lado, é utilizado um processo de financiamento que transforma a lei de programação numa operação que só termina para as calendas. Nos outros países, São raros os programas que se desenvolvem por prazos superiores a 10/15 anos (quando, aí, não se limitam a comprar, mas a produzir o seu próprio equipamento). É como se as caravelas que Vasco da Gama conduziu para a Índia tivessem sido acabadas de pagar por D. João III...

Além do mais, é transmitida para a opinião pública a imagem de gastos com a Defesa manifestamente exagerados, que só atingem estes valores por causa do método de financiamento utilizado, com os encargos financeiros inerentes, separando-os do conjunto dos restantes encargos da dívida pública, chamando a atenção da opinião pública para os custos dos equipamentos militares.

A este respeito, parece ser legítimo afirmar que o Governo não entendeu que o planeamento de forças deve ser gizado para um contexto estratégico temporal (que, na actualidade, ronda os 15 anos), dentro do qual devem ser definidos os objectivos de defesa a atingir (estratégia dos fins) e os meios adequados para os concretizar (estratégia dos meios). Isto a despeito de certos objectivos de forças terem início no decorrer de um certo período e terminarem durante o seguinte. E os meios terão que ser adequados aos fins, para o que, frequentemente, é necessário levar a efeito ajustamentos, ou nos meios, reforçando-os, ou nos fins, limitando-os. Se isto não acontecer, o País sujeita-se a, no contexto estratégico posterior, não ter capacidade para materializar os objectivos que lhe correspondam, pois ainda está a pagar os objectivos do período anterior, quantas vezes já inúteis ou profundamente alterados.

A coroar toda a situação já descrita, que se deve ao Governo, em especial à personalidade que a ele preside, verificou-se há dias uma querela entre o poder político e o Exército que bem retrata a forma como aqueles que deveriam ser responsáveis actuam.

Tem-se usado frequentes vezes o corporativismo militar "exagerado" dos vários ramos das Forças Armadas como justificação para a inacção governativa em assuntos de defesa. Queixam-se os governantes, muitas vezes, de que os Ramos não se entendem e portanto não é possível avançar tanto como eles pretenderiam. Esquecem-se que o corporativismo militar é um dos elementos essenciais das diversas componentes da instituição, estando na base do espírito de corpo que torna os militares orgulhosos de lhes pertencerem, sendo mesmo capazes de arriscar a vida para defenderem os valores que conjuntamente forjam. E que, em caso de não entendimento entre si, como é comum nas Forças Armadas dos países mais avançados do mundo, o poder político tem o dever de assumir as suas responsabilidades, decidindo, e assumindo assim o ónus e os benefícios de tais decisões.

O que parece é que o primeiro-ministro não faz nenhuma ideia do que é o corporativismo militar (não confundível com o de outras profissões), tendo mesmo chegado ao extremo de o anatemizar. Certamente não sabe que o espírito de corpo nas FA é um dos seus elementos vitais e, em democracia, significa obediência ao poder político, mas com dignidade, ou seja, sem subserviência.

Em democracia, a Instituição Militar conhece o que está em jogo, nas suas relações com o poder e, sem nunca o pôr em causa, apresenta frontal e lealmente a sua opinião. Não conspira, nem sequer no sótão. Em ditadura, é que o ideal dos caudilhos políticos é disporem de FA suficientemente ignorantes para serem subservientes.

O primeiro-ministro revelou desconhecer que, quando as FA perdem a sua dignidade perante o poder político, estão em vias de perdê-la no cumprimento das missões que este, legitimamente, lhes comete.

Sendo o primeiro-ministro, segundo se diz, um homem dado à História, talvez precise de dedicar mais atenção à história das relações entre o poder e as FA, em Portugal e em outros países, e observar com atenção o que a este respeito está a acontecer nos EUA, Reino Unido e França, só para citar algumas das democracias mais estáveis do Ocidente.

Espero que não pense que Eisenhower, Marshall e De Gaulle tenham sido perigosos corporativistas militares, e que Collin Powell também o seja...

A leitura de alguns clássicos é sempre aconselhável. Se ainda não o fez, comece por Samuel Huntington, Morris Janowitz e S. E. Finer, e pelos portugueses Fernando Pereira Marques, Vasco Pulido Valente e José Medeiros Ferreira. E, já agora, se puder, leia Charles Moskos* e Carl C. Hodge**, para ver o que os governos das principais democracias europeias já fizeram nos últimos anos, e o Governo português não fez.

A ignorância é atrevida.

No poder, é descarada.

E perigosa.

*Em Post-modern Military, Oxford University Press, 2000.

**Em Redefining European Security, Garland Publishing, Inc, London, 1999.

José Alberto Loureiro dos Santos é general

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