Organização Regional do Porto

07-03-2001
marcar artigo

Aconteceu um destes dias quando procurava estacionar na vizinhança do Hospital de S. João. Vivia a angústia tumultuosa da doença de um familiar próximo. Felizmente ás sete horas daquele fim de tarde a rua fronteira ao IPO Norte estava com inúmeros espaços vagos para estacionamento. Fosse outra a hora e os espaços disponíveis rareariam. Mesmo assim, omnipresente na sua presença e impositivo na sua «função» lá estava o arrumador de automóveis, o popular «melga».

Não sinto qualquer simpatia por estes modernos salteadores urbanos incomodando- me a sua presença pelo que significa de actividade ilegal, inútil e tolerada. E junto de estabelecimentos hospitalares, onde a doença, a dor e a vulnerabilidade humana são penosas realidades e o homem se revela imensamente pequeno quando confrontado com o seu destino, a sua presença pareceu-me profanação. E a antipatia virou irritação, náusea, mesmo intolerância.

Compreende-se portanto que a presença do arrumador de automóveis naquele fim de tarde me indispôs. Após estacionar aguardei contrariado que ele desse uma corridinha grotesca em busca da moeda, o cumprir do ritual degradante. Era a segunda moeda do dia no mesmo local. Aqui chegado, o «melga» (não deve ofender chamar-lhe «melga», pois não?) num tom imperioso disparou:

- Encoste mais para trás.

E com gestos orientadores de pseudo agente do trânsito, acrescentou:

- Vá, venha! Venha!

Obviamente não lhe fiz a vontade (queria que eu aproveitasse a sombra de uma árvore ás 19h!). Prestes a explodir, ainda não recomposto da irracionalidade da situação, ouvi então do «melga» a frase ameaçadora:

- Feche essa frincha da janela. Nunca se sabe quem por cá passa. No outro dia um carro ali em baixo tinha a janela aberta, via-se um casaco no banco de trás...foi uma tentação... por acaso nem tinha valores.

O episódio é breve mas ilustrativo. Retrata a realidade das ruas das nossas cidades e de muitos jovens que transformaram o asfalto em selva.

Eles vêm das margens da sociedade, dos bairros degradados da cidade, alheios a princípios, doutrinas ou moralidades. Transportam consigo a ausência de perspectivas e de projectos e uma violência (contida) irracional. A sua presença tem sido tolerada. O espaço público foi impunemente usurpado.

As forças tradicionais do poder, tão ciosas de um direito de propriedade ilimitado e sacro santo, são claramente permissivas para com a usurpação. Se fossem estruturas organizadas revolucionárias portadoras de projecto que questionasse a sociedade, outro galo cantaria. Mas não. O «imposto» de rua dos maltrapilhos e toxicodependentes atinge sobretudo as grandes maiorias e não as privilegiadas minorias. O próprio fenómeno da toxicodependência engorda e muito alguns ricos e depaupera vastíssimas camadas populares. Alienante, não favorece qualquer «perigosa» dinâmica de consciencialização, não é?.

Sente-se alguma falta de vontade em enfrentar o problema. Que não tem sido sentido pelo poder como seu. O actual postal ilustrado para turista e nacional ver não tem sensibilizado o poder político e as forças da ordem. No Porto o projecto camarário de identificação e reinserção dos arrumadores ruiu ás primeiras dificuldades. Fernando Gomes iniciou aí uma trajectória até aí insuspeita de dificuldades em acertar no exercício dos cargos públicos.

Alguns dirão que todo o homem é meu irmão. Apelarão á clemência cristã, reivindicarão a tolerância para com os excluídos sociais. Admitirão talvez como natural ou mesmo como inevitável o quadro presente. Uma juventude sem educação, cultura ou profissão, sem auto- estima á cata da triste ilusão das moedinhas no mundo em que não vê saídas. É preciso contrariar este desenvolvimento negativo para que as soluções contemplativas conduzem. E alertar para um futuro em que um poder com carácter mais violento, munido de botas cardadas, mais cedo ou mais tarde terminará o que na altura será considerado como a invasão inaceitável das ratazanas do sistema.

13 de Outubro de 2000

Aconteceu um destes dias quando procurava estacionar na vizinhança do Hospital de S. João. Vivia a angústia tumultuosa da doença de um familiar próximo. Felizmente ás sete horas daquele fim de tarde a rua fronteira ao IPO Norte estava com inúmeros espaços vagos para estacionamento. Fosse outra a hora e os espaços disponíveis rareariam. Mesmo assim, omnipresente na sua presença e impositivo na sua «função» lá estava o arrumador de automóveis, o popular «melga».

Não sinto qualquer simpatia por estes modernos salteadores urbanos incomodando- me a sua presença pelo que significa de actividade ilegal, inútil e tolerada. E junto de estabelecimentos hospitalares, onde a doença, a dor e a vulnerabilidade humana são penosas realidades e o homem se revela imensamente pequeno quando confrontado com o seu destino, a sua presença pareceu-me profanação. E a antipatia virou irritação, náusea, mesmo intolerância.

Compreende-se portanto que a presença do arrumador de automóveis naquele fim de tarde me indispôs. Após estacionar aguardei contrariado que ele desse uma corridinha grotesca em busca da moeda, o cumprir do ritual degradante. Era a segunda moeda do dia no mesmo local. Aqui chegado, o «melga» (não deve ofender chamar-lhe «melga», pois não?) num tom imperioso disparou:

- Encoste mais para trás.

E com gestos orientadores de pseudo agente do trânsito, acrescentou:

- Vá, venha! Venha!

Obviamente não lhe fiz a vontade (queria que eu aproveitasse a sombra de uma árvore ás 19h!). Prestes a explodir, ainda não recomposto da irracionalidade da situação, ouvi então do «melga» a frase ameaçadora:

- Feche essa frincha da janela. Nunca se sabe quem por cá passa. No outro dia um carro ali em baixo tinha a janela aberta, via-se um casaco no banco de trás...foi uma tentação... por acaso nem tinha valores.

O episódio é breve mas ilustrativo. Retrata a realidade das ruas das nossas cidades e de muitos jovens que transformaram o asfalto em selva.

Eles vêm das margens da sociedade, dos bairros degradados da cidade, alheios a princípios, doutrinas ou moralidades. Transportam consigo a ausência de perspectivas e de projectos e uma violência (contida) irracional. A sua presença tem sido tolerada. O espaço público foi impunemente usurpado.

As forças tradicionais do poder, tão ciosas de um direito de propriedade ilimitado e sacro santo, são claramente permissivas para com a usurpação. Se fossem estruturas organizadas revolucionárias portadoras de projecto que questionasse a sociedade, outro galo cantaria. Mas não. O «imposto» de rua dos maltrapilhos e toxicodependentes atinge sobretudo as grandes maiorias e não as privilegiadas minorias. O próprio fenómeno da toxicodependência engorda e muito alguns ricos e depaupera vastíssimas camadas populares. Alienante, não favorece qualquer «perigosa» dinâmica de consciencialização, não é?.

Sente-se alguma falta de vontade em enfrentar o problema. Que não tem sido sentido pelo poder como seu. O actual postal ilustrado para turista e nacional ver não tem sensibilizado o poder político e as forças da ordem. No Porto o projecto camarário de identificação e reinserção dos arrumadores ruiu ás primeiras dificuldades. Fernando Gomes iniciou aí uma trajectória até aí insuspeita de dificuldades em acertar no exercício dos cargos públicos.

Alguns dirão que todo o homem é meu irmão. Apelarão á clemência cristã, reivindicarão a tolerância para com os excluídos sociais. Admitirão talvez como natural ou mesmo como inevitável o quadro presente. Uma juventude sem educação, cultura ou profissão, sem auto- estima á cata da triste ilusão das moedinhas no mundo em que não vê saídas. É preciso contrariar este desenvolvimento negativo para que as soluções contemplativas conduzem. E alertar para um futuro em que um poder com carácter mais violento, munido de botas cardadas, mais cedo ou mais tarde terminará o que na altura será considerado como a invasão inaceitável das ratazanas do sistema.

13 de Outubro de 2000

marcar artigo