A reforma incompleta

08-01-2000
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A proposta orçamental para 1999 criou algum cepticismo, porque podia ter ido mais longe

Uma navegação à esquerda, que será reforçada com as opções políticas do orçamento de 1999, cujas prioridades passam pela acção social, que atinge os 151,4 milhões de contos, e pelo Rendimento Mínimo Garantido (RMG), que ascende a 37,5 milhões de contos. Recusando eleitoralismos, Ferro Rodrigues afirmou ao EXPRESSO que «será um orçamento de consolidação no combate à exclusão e de reforço da integração social».

De facto, o aumento das dotações daquelas duas áreas é significativo, atingindo, respectivamente, 23 milhões de contos na acção social e sete milhões no rendimento mínimo, em comparação com a previsão de execução do presente exercício orçamental. E acentua a aposta da equipa do Ministério do Trabalho e Solidariedade em privilegiar as políticas destinadas aos mais desfavorecidos à medida que os quatro anos de governação se aproximam do fim. Acresce que, passados três anos sobre a implementação do rendimento mínimo, uma das bandeiras políticas de António Guterres, o Governo pode hoje chamar a atenção para as previsões de catástrofe orçamental que, nessa ocasião, foram apresentadas pelo maior partido da oposição, o PSD.

De resto, Eduardo Ferro Rodrigues não vê «áreas de risco» no orçamento do próximo ano, considerando que foi elaborado de forma «prudente e cautelosa, nomeadamente na previsão de receitas de contribuições, que crescem 4,9 por cento face à execução deste ano, de acordo com a evolução da própria economia». A denominada «eficiência» da máquina da Segurança Social continuará a dar resultados em 1999, pois é esperada a recuperação de 60 milhões de contos de dívidas ao sistema, reflectindo, grosso modo, a regularização de dívidas através dos pagamentos a prestações de contribuintes individuais e empresas, ao abrigo do decreto-lei 124/96, também conhecido por «Plano Mateus».

Ainda assim, a verdade é que o reforço de verbas para o rendimento mínimo e para a acção social tem duas «virtudes originais», confirmadas na proposta de Orçamento para o próximo ano: por um lado, esta será a quarta vez em quatro anos que a Lei de Bases da Segurança Social é cumprida, isto é, o Orçamento do Estado transferiu para as contas da Previdência as verbas necessárias ao pagamento dos encargos dos regimes não contributivo ou escassamente contributivo. Em 1999, atingirão os 379,7 milhões de contos, mais sete por cento do que a previsão de execução deste ano. Por outro lado, em consequência, o regime geral da Segurança Social - aquele que é financiado apenas pelos descontos dos trabalhadores e das respectivas entidades patronais - tem apresentado sucessivamente excedentes suficientemente importantes e, até, impensáveis há quatro anos.

Desta forma, os excedentes garantem a continuação do reforço da componente de capitalização do sistema público de protecção social, através da transferência de dinheiro para o Fundo de Estabilização Financeira, sem qualquer impacto negativo, ou seja, a «custo zero» para o saldo global do Sector Público Administrativo (SPA). De facto, um sinal negativo nas contas da Segurança Social corresponde a um sinal positivo no sub-sector dos Fundos e Serviços Autónomos, onde aquele fundo se integra. E, feitas as contas, os excedentes apurados inicialmente mantêm-se e fazem diminuir o défice do sub-sector Estado, ajudando à consolidação orçamental.

A proposta de Orçamento da Segurança Social reflecte, a um outro nível, as modificações e a estratégia dos «pequenos passos» naquela área. Os aumentos das dotações para pensões, para o subsídio familiar a crianças e jovens, para a doença e para o desemprego espelham o alargamento da cobertura das respectivas prestações, algumas das quais ainda em fase de discussão em sede de Concertação Estratégica. A revisão do subsídio de desemprego, privilegiando as carreiras contributivas mais longas, por exemplo, está nas mãos dos parceiros sociais, mas o orçamento do próximo ano aponta para um reforço de 12 milhões de contos face à execução de 1998, atingindo os 146,250 milhões de contos, «motivado essencialmente pelo alargamento da cobertura daquela prestação», assegurou o ministro da tutela. Isto porque não é de esperar o disparar do nível de desemprego em 1999.

A dificuldade de contestação das políticas de Ferro Rodrigues por parte da oposição não resulta apenas da política orçamental de «esquerda», mas também da proposta de nova Lei de Bases do sistema. Apesar de tardia, representa um passo em frente face à lei actual, revendo os mecanismos de financiamento.

A reforma da Segurança Social será mais difícil de concretizar se a proposta de Orçamento de Estado para 1999 for aprovada sem alterações. Esta é a primeira reacção dos especialistas à matéria orçamental consagrada ao Ministério de Ferro Rodrigues. No entanto, as análises em causa oscilam entre os mais radicais, que consideram mesmo que o Governo já não vai efectuar uma mudança profunda no sistema de pensões públicas (antes das eleições), e os mais moderados, que admitem que essa reforma - ou, pelo menos, a capitalização e o «plafonamento» - será dificultada pelas medidas fiscais do OE para 1999. No cerne das críticas estão as alterações que o Governo pretende introduzir nos benefícios fiscais, com a dedução à colecta dos Planos de Poupança Reforma (PPR). Além do facto de o texto não consagrar sequer a primeira grande reforma (forçando a discussão partidária com vista ao consenso entre os três modelos de reforma levados ao Parlamento).

Trata-se de um «grão» numa engrenagem que parecia começar a andar bem. Mas mesmo assim nenhuma das críticas ao OE para 1999 condena as prioridades consagradas em matéria de política social, na lógica das medidas avulsas que já foram anunciadas durante 1998. É o caso da flexibilização da idade de reforma, do alargamento do período relevante para determinar o rendimento de referência no cálculo das pensões, da diferenciação positiva das taxas de substituição a favor dos beneficiários com mais baixos rendimentos, da melhoria extraordinária das pensões em função da carreira contributiva e da idade dos pensionistas, e ainda o caso da variação das taxas contributivas em função da natureza das entidades contribuintes ou da situação dos beneficiários (com taxas mais favoráveis para quem não tem entidade empregadora, ou a própria consagração temporária de isenções contributivas).

Mesmo que Ferro Rodrigues e o seu secretário de Estado, Ribeiro Mendes, tenham excelentes intenções de concretizar a reforma do sistema - a proposta do OE para 1999 até consagra uma verba de 120 mil contos para desenvolver o processo de reforma da Segurança Social, tal como anteriormente se fez para pagar os trabalhos da Comissão do Livro Branco, para além de continuar a consignar o IVA social e reforçar o Fundo de Estabilização Financeira -, o certo é que a proposta orçamental para 1999 criou algum cepticismo, porque podia ter ido mais longe.

E essa falta de «ambição» foi notória nos mínimos pormenores. Veja-se que as críticas são quase unânimes em considerar que até nas alterações fiscais propostas não houve o cuidado de salvaguardar o enquadramento de instrumentos de poupança que poderiam funcionar como bases dos complementos individuais de reforma. Bagão Félix, responsável pela seguradora Bonança, considera interessante a adopção da dedução à colecta em vez da dedução à matéria colectável, «embora só faça sentido se for integrada numa reforma fiscal global e aplicada em áreas eminentemente sociais, designadamente na habitação e na educação». Mas este modelo aplicado sem gradualismo à poupança para a reforma determina, «na prática, que quem pode poupar deixa de ter incentivos, enquanto quem não consegue poupar passa a ter incentivos para isso», observa Bagão Félix, alertando para outro tipo de injustiça: «Eu próprio, que sou tributado a 40 por cento, para obter em 1998 uma poupança fiscal de 107 contos com um PPR terei de aplicar 267 contos, enquanto em 1999 para poupar os mesmos 107 contos apenas terei de aplicar 107 contos».

António Costa e J.F. Palma-Ferreira

A proposta orçamental para 1999 criou algum cepticismo, porque podia ter ido mais longe

Uma navegação à esquerda, que será reforçada com as opções políticas do orçamento de 1999, cujas prioridades passam pela acção social, que atinge os 151,4 milhões de contos, e pelo Rendimento Mínimo Garantido (RMG), que ascende a 37,5 milhões de contos. Recusando eleitoralismos, Ferro Rodrigues afirmou ao EXPRESSO que «será um orçamento de consolidação no combate à exclusão e de reforço da integração social».

De facto, o aumento das dotações daquelas duas áreas é significativo, atingindo, respectivamente, 23 milhões de contos na acção social e sete milhões no rendimento mínimo, em comparação com a previsão de execução do presente exercício orçamental. E acentua a aposta da equipa do Ministério do Trabalho e Solidariedade em privilegiar as políticas destinadas aos mais desfavorecidos à medida que os quatro anos de governação se aproximam do fim. Acresce que, passados três anos sobre a implementação do rendimento mínimo, uma das bandeiras políticas de António Guterres, o Governo pode hoje chamar a atenção para as previsões de catástrofe orçamental que, nessa ocasião, foram apresentadas pelo maior partido da oposição, o PSD.

De resto, Eduardo Ferro Rodrigues não vê «áreas de risco» no orçamento do próximo ano, considerando que foi elaborado de forma «prudente e cautelosa, nomeadamente na previsão de receitas de contribuições, que crescem 4,9 por cento face à execução deste ano, de acordo com a evolução da própria economia». A denominada «eficiência» da máquina da Segurança Social continuará a dar resultados em 1999, pois é esperada a recuperação de 60 milhões de contos de dívidas ao sistema, reflectindo, grosso modo, a regularização de dívidas através dos pagamentos a prestações de contribuintes individuais e empresas, ao abrigo do decreto-lei 124/96, também conhecido por «Plano Mateus».

Ainda assim, a verdade é que o reforço de verbas para o rendimento mínimo e para a acção social tem duas «virtudes originais», confirmadas na proposta de Orçamento para o próximo ano: por um lado, esta será a quarta vez em quatro anos que a Lei de Bases da Segurança Social é cumprida, isto é, o Orçamento do Estado transferiu para as contas da Previdência as verbas necessárias ao pagamento dos encargos dos regimes não contributivo ou escassamente contributivo. Em 1999, atingirão os 379,7 milhões de contos, mais sete por cento do que a previsão de execução deste ano. Por outro lado, em consequência, o regime geral da Segurança Social - aquele que é financiado apenas pelos descontos dos trabalhadores e das respectivas entidades patronais - tem apresentado sucessivamente excedentes suficientemente importantes e, até, impensáveis há quatro anos.

Desta forma, os excedentes garantem a continuação do reforço da componente de capitalização do sistema público de protecção social, através da transferência de dinheiro para o Fundo de Estabilização Financeira, sem qualquer impacto negativo, ou seja, a «custo zero» para o saldo global do Sector Público Administrativo (SPA). De facto, um sinal negativo nas contas da Segurança Social corresponde a um sinal positivo no sub-sector dos Fundos e Serviços Autónomos, onde aquele fundo se integra. E, feitas as contas, os excedentes apurados inicialmente mantêm-se e fazem diminuir o défice do sub-sector Estado, ajudando à consolidação orçamental.

A proposta de Orçamento da Segurança Social reflecte, a um outro nível, as modificações e a estratégia dos «pequenos passos» naquela área. Os aumentos das dotações para pensões, para o subsídio familiar a crianças e jovens, para a doença e para o desemprego espelham o alargamento da cobertura das respectivas prestações, algumas das quais ainda em fase de discussão em sede de Concertação Estratégica. A revisão do subsídio de desemprego, privilegiando as carreiras contributivas mais longas, por exemplo, está nas mãos dos parceiros sociais, mas o orçamento do próximo ano aponta para um reforço de 12 milhões de contos face à execução de 1998, atingindo os 146,250 milhões de contos, «motivado essencialmente pelo alargamento da cobertura daquela prestação», assegurou o ministro da tutela. Isto porque não é de esperar o disparar do nível de desemprego em 1999.

A dificuldade de contestação das políticas de Ferro Rodrigues por parte da oposição não resulta apenas da política orçamental de «esquerda», mas também da proposta de nova Lei de Bases do sistema. Apesar de tardia, representa um passo em frente face à lei actual, revendo os mecanismos de financiamento.

A reforma da Segurança Social será mais difícil de concretizar se a proposta de Orçamento de Estado para 1999 for aprovada sem alterações. Esta é a primeira reacção dos especialistas à matéria orçamental consagrada ao Ministério de Ferro Rodrigues. No entanto, as análises em causa oscilam entre os mais radicais, que consideram mesmo que o Governo já não vai efectuar uma mudança profunda no sistema de pensões públicas (antes das eleições), e os mais moderados, que admitem que essa reforma - ou, pelo menos, a capitalização e o «plafonamento» - será dificultada pelas medidas fiscais do OE para 1999. No cerne das críticas estão as alterações que o Governo pretende introduzir nos benefícios fiscais, com a dedução à colecta dos Planos de Poupança Reforma (PPR). Além do facto de o texto não consagrar sequer a primeira grande reforma (forçando a discussão partidária com vista ao consenso entre os três modelos de reforma levados ao Parlamento).

Trata-se de um «grão» numa engrenagem que parecia começar a andar bem. Mas mesmo assim nenhuma das críticas ao OE para 1999 condena as prioridades consagradas em matéria de política social, na lógica das medidas avulsas que já foram anunciadas durante 1998. É o caso da flexibilização da idade de reforma, do alargamento do período relevante para determinar o rendimento de referência no cálculo das pensões, da diferenciação positiva das taxas de substituição a favor dos beneficiários com mais baixos rendimentos, da melhoria extraordinária das pensões em função da carreira contributiva e da idade dos pensionistas, e ainda o caso da variação das taxas contributivas em função da natureza das entidades contribuintes ou da situação dos beneficiários (com taxas mais favoráveis para quem não tem entidade empregadora, ou a própria consagração temporária de isenções contributivas).

Mesmo que Ferro Rodrigues e o seu secretário de Estado, Ribeiro Mendes, tenham excelentes intenções de concretizar a reforma do sistema - a proposta do OE para 1999 até consagra uma verba de 120 mil contos para desenvolver o processo de reforma da Segurança Social, tal como anteriormente se fez para pagar os trabalhos da Comissão do Livro Branco, para além de continuar a consignar o IVA social e reforçar o Fundo de Estabilização Financeira -, o certo é que a proposta orçamental para 1999 criou algum cepticismo, porque podia ter ido mais longe.

E essa falta de «ambição» foi notória nos mínimos pormenores. Veja-se que as críticas são quase unânimes em considerar que até nas alterações fiscais propostas não houve o cuidado de salvaguardar o enquadramento de instrumentos de poupança que poderiam funcionar como bases dos complementos individuais de reforma. Bagão Félix, responsável pela seguradora Bonança, considera interessante a adopção da dedução à colecta em vez da dedução à matéria colectável, «embora só faça sentido se for integrada numa reforma fiscal global e aplicada em áreas eminentemente sociais, designadamente na habitação e na educação». Mas este modelo aplicado sem gradualismo à poupança para a reforma determina, «na prática, que quem pode poupar deixa de ter incentivos, enquanto quem não consegue poupar passa a ter incentivos para isso», observa Bagão Félix, alertando para outro tipo de injustiça: «Eu próprio, que sou tributado a 40 por cento, para obter em 1998 uma poupança fiscal de 107 contos com um PPR terei de aplicar 267 contos, enquanto em 1999 para poupar os mesmos 107 contos apenas terei de aplicar 107 contos».

António Costa e J.F. Palma-Ferreira

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