VISTO
Brutal e Belo
Por ADELINO GOMES
Quinta-feira, 21 de Junho de 2001
São seis profissionais de saúde do Instituto de Oncologia de Coimbra. Cada um deles fala virado para a câmara, virado para nós. Falam de sofrimento físico, de desamparo psicológico, do desespero terminal do doente de cancro.
As palavras chegam-nos sussurradas, como se quem as profere se impedisse de dizer alto o que é para ser testemunhado apenas na privacidade de uma profissão que assiste à mais íntima das experiências do ser humano, a morte.
Deles, nada ou quase nada, tão só o vislumbre de um perfil, de uma veia, de uma lágrima. E no entanto é com eles, os doentes, que nunca deixamos de estar, do primeiro ao último segundo desta exemplar reportagem que a SIC apresentou anteontem à noite, na primeira parte do programa "Esta Semana", de Margarida Marante.
O pudor com que tudo é filmado, o casamento singelo de imagens e música (porquê aquela insistência no zoom electrónico, que pretende sublinhar frases mas cujo "ziiiip" sonoro apenas distrai o espectador?) colocam em inescapável primeiro plano a palavra do entrevistado.
Uma médica recorda o prazer de andar de baloiço confiante no braço forte do pai e de como se coloca hoje de pé, sorridente, à cabeceira da cama do doente cujo fim se aproxima, certa de que o gesto aprendido na infância oferece amparo àquele a quem a vida abandona.
Uma enfermeira conta como entoou noite fora as notas de uma composição de Grieg satisfazendo a última vontade de um moribundo. E lembra a carta que outro lhe escreveu com a história da sua vida (profissões, viagens), como quem dizia: "Eu não sou só o que a senhora vê agora".
Estes depoimentos (os nomes, para que constem: médicos Margarida Teixeira, Maria Regina Guerreiro e Óscar Vilão; assistente social Margarida Pires; enfermeiras Sandra Antunes e Sofia Carneirinho; auxiliar de acção médica Maria do Céu Simões) deveriam figurar num manual hospitalar. Eles mostram que para lá dos remédios, do bisturi, das "químios", há um gesto, uma palavra, um afecto a dar antes da última lágrima, "quando mais nada há a fazer".
Na reportagem tudo é simples, tudo é claro, tudo é ao mesmo tempo brutal e belo, como sublinhou o convidado da segunda parte, o político e advogado Duarte Lima, ele próprio caído, de uma hora para a outra, no inferno físico e psicológico de uma leucemia aguda.
O autor, Augusto Madureira, provou uma vez mais que jornalismo é, antes e acima de tudo, histórias. E esta é a história verdadeira de gente como toda a gente a quem circunstâncias aleatórias fazem viver um dia uma situação limite de cuja "dor de alma" ninguém está livre.
Duarte Lima soube escapar-lhe mercê de uma enorme força interior. Mas também porque encontrou na Oncologia de Lisboa profissionais de saúde como estes de Coimbra - "almas aladas que souberam decantar aquilo que o sofrimento tem de pior".
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Brutal e Belo
Por ADELINO GOMES
Quinta-feira, 21 de Junho de 2001
São seis profissionais de saúde do Instituto de Oncologia de Coimbra. Cada um deles fala virado para a câmara, virado para nós. Falam de sofrimento físico, de desamparo psicológico, do desespero terminal do doente de cancro.
As palavras chegam-nos sussurradas, como se quem as profere se impedisse de dizer alto o que é para ser testemunhado apenas na privacidade de uma profissão que assiste à mais íntima das experiências do ser humano, a morte.
Deles, nada ou quase nada, tão só o vislumbre de um perfil, de uma veia, de uma lágrima. E no entanto é com eles, os doentes, que nunca deixamos de estar, do primeiro ao último segundo desta exemplar reportagem que a SIC apresentou anteontem à noite, na primeira parte do programa "Esta Semana", de Margarida Marante.
O pudor com que tudo é filmado, o casamento singelo de imagens e música (porquê aquela insistência no zoom electrónico, que pretende sublinhar frases mas cujo "ziiiip" sonoro apenas distrai o espectador?) colocam em inescapável primeiro plano a palavra do entrevistado.
Uma médica recorda o prazer de andar de baloiço confiante no braço forte do pai e de como se coloca hoje de pé, sorridente, à cabeceira da cama do doente cujo fim se aproxima, certa de que o gesto aprendido na infância oferece amparo àquele a quem a vida abandona.
Uma enfermeira conta como entoou noite fora as notas de uma composição de Grieg satisfazendo a última vontade de um moribundo. E lembra a carta que outro lhe escreveu com a história da sua vida (profissões, viagens), como quem dizia: "Eu não sou só o que a senhora vê agora".
Estes depoimentos (os nomes, para que constem: médicos Margarida Teixeira, Maria Regina Guerreiro e Óscar Vilão; assistente social Margarida Pires; enfermeiras Sandra Antunes e Sofia Carneirinho; auxiliar de acção médica Maria do Céu Simões) deveriam figurar num manual hospitalar. Eles mostram que para lá dos remédios, do bisturi, das "químios", há um gesto, uma palavra, um afecto a dar antes da última lágrima, "quando mais nada há a fazer".
Na reportagem tudo é simples, tudo é claro, tudo é ao mesmo tempo brutal e belo, como sublinhou o convidado da segunda parte, o político e advogado Duarte Lima, ele próprio caído, de uma hora para a outra, no inferno físico e psicológico de uma leucemia aguda.
O autor, Augusto Madureira, provou uma vez mais que jornalismo é, antes e acima de tudo, histórias. E esta é a história verdadeira de gente como toda a gente a quem circunstâncias aleatórias fazem viver um dia uma situação limite de cuja "dor de alma" ninguém está livre.
Duarte Lima soube escapar-lhe mercê de uma enorme força interior. Mas também porque encontrou na Oncologia de Lisboa profissionais de saúde como estes de Coimbra - "almas aladas que souberam decantar aquilo que o sofrimento tem de pior".