Suplemento Economia

13-11-2000
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O Local do Poder

Segunda-feira, 13 de Novembro de 2000

Toda a gente sabe que o que era para ter sido passou à história. De nada serve olhar para o que acontece à luz dos padrões e dos pressupostos que durante décadas marcaram e enquadraram o ritmo dos acontecimentos mas que hoje pouco querem dizer nos novos caminhos que o poder e a criação de riqueza estão a tomar. Não é nada de novo dizer que o actual sistema político, os partidos, os círculos dos deputados, as autarquias e os respectivos poderes não dizem mais respeito ao país que é este, que está aí, que existe e se preocupa.

Ao contrário do que durante toda a passada semana foi apresentado na generalidade dos media, a posição que o deputado de Ponte de Lima assumiu no debate sobre o Orçamento do Estado é muito mais típica de uma padrão em emergência do que uma excepção ao modo presente e futuro de fazer as coisas.

Quando um Orçamento do Estado é ou não é aprovado por decisão de um único deputado, escusado será dizer que o problema não é esse deputado mas o sistema em que esse mesmo deputado exerce as suas escolhas e o seu voto. É esse sistema que hoje não responde às realidades que se constituíram no curso dos acontecimentos, e cujo contexto histórico em nada indica que venham a regredir, antes pelo contrário.

O contexto fundamental desta história assenta no facto de o Estado não ser mais o actor por excelência do poder político. O chamado poder local e as redes de empresas são hoje entidades que cada vez mais importantes para decisões no que respeita à afectação de recursos e ao desenvolvimento das regiões. Os factores que determinam o desenvolvimento de cada país, ou melhor será dizer de cada região ou local, são cada vez menos directamente influenciáveis pelos governos.

A abertura dos mercados e o derrube de todo o tipo de barreiras à circulação planetária dos recursos é a causa fundamental de uma tendência de fundo de esvaziamento substancial dos poderes tradicionais do Estado.

A deslocalização de poderes historicamente concentrados no Estado está a fazer-se não num mas em três sentidos: para cima, entidades supra-estatais, como a ONU, a UE, a OMC, a NATO, etc., estão a ganhar poderes políticos, fiscais, comerciais, monetários e militares, que historicamente o Estado reservava para si próprio; para o lado, novas entidades, como as empresas transnacionais e as organizações não governamentais estão a tomar o papel anteriormente atribuído ao Estado na criação de emprego, na segurança social, na realização profissional e pessoal; para baixo, entidades infra-estatais, como as regiões, as cidades, as câmaras municipais, estão a exigir e a ganhar poderes que anteriormente eram inegociáveis pelo Estado central, como por exemplo nas questões sociais, na habitação, na educação, em iniciativas culturais diversas. A proximidade, a melhor percepção e uma maior rapidez de actuação, proporcionam mais eficácia e mais eficiência, facilitando a capacidade de gerar recursos.

A ascensão do poder das regiões e do local está no entanto a obedecer a padrões diversos dos do passado. O que agora está em cima da mesa é a capacidade de criar riqueza e de atrair os melhores. As regiões tendem a abandonar os folclores e a protagonizar o principal papel na construção da coesão social. Há quatro anos, o jornal "Le Monde" surgiu com uma nova secção no corpo principal do jornal: "regiões". Não se analisam factos pretensamente menores, mas antes se trata da questão vital dos anos que correm: competitividade, criação de riqueza, localização de empresas, emprego, educação, bem-estar, etc.

Os novos líderes regionais debruçam-se sobre o bem-estar das populações, procuram soluções para os problemas do emprego, para a educação e para a imigração, recusando a discricionariedade dos macromodelos. Sentem-se melhor colocados do que os Governos centrais, cuja máquina administrativa se tornou, com o passar do tempo, ela mesma, um problema.

"O Estado é pequeno demais para as grandes coisas e grande demais para as pequenas coisas" (Daniel Bell). Hoje, a economia e a fiscalidade são grandes demais para qualquer Estado, e os transportes, o trânsito, a nova escola, os espaços verdes, a instalação de novas empresas, são tarefas pequenas demais para esse mesmo Estado - já nos anos 60 de Gaulle questionava: "Como é que se pode governar um país que tem 246 variedades de queijo?"

O voto do deputado Daniel Campelo insere-se nesta nova lógica de poder. As tendências de fundo emergem de padrões de comportamentos, e não o contrário, e o padrão da emergência de um poder local mais forte e com novas competências é uma realidade por todo o lado. O que muito boa gente anda por aí a fazer é o contrário de entender o que se passa. São tentativas de fazer com que o que se passa caiba nos modelos que são tomados, eles mesmos, pela realidade. O voto de Campelo, inserido neste caudal da história, não é de resto um caso único na história parlamentar recente. Mais casos houve em que deputados colocaram outros interesses que não os do seu partido ou da sua bancada a determinar o seu sentido de voto. Trata-se de um problema de hierarquização pura de poderes. Trata-se de escolher o que é mais importante, mais relevante para a nossa vida, para a percepção que temos do fluir das decisões e dos acontecimentos. Nestas situações, o interesse do partido, por isso do Estado tal como seria suposto funcionar, tem sido relegado para segundo plano.

Nunca serviu de nada querer adaptar a realidade às nossas ideias ou aos nossos modelos. Só aquele que adapta a sua política ao correr dos tempos pode prosperar (Maquiavel). As ideias que contam são as da própria época que corre. Neste novo mundo, a subsidiariedade radical está a tornar-se a aproximação por defeito a qualquer problemática. Só o que não possa ser gerido e decidido por cada um de nós individualmente é que sobre ao nível seguinte. O que não puder ser tratado no bairro ou na freguesia passa para a câmara municipal. O que a cidade não puder resolver passa para a região. O que a região não tiver capacidade para gerir passa para o país. O que o país não puder resolver passa para a UE, para a ONU, para a OMC ou para a NATO.

As coisas são como são, mas manda quem pode. Por isso, como as mais variadas teorias organizacionais explicam, a mudança de sistema não é fácil. Ela contém em si mesma um paradoxo: em qualquer situação, quem tem mais poder para iniciar uma mudança é quem tem mais a perder com o êxito dessa mesma mudança.

ilharco@tananet.com

O Local do Poder

Segunda-feira, 13 de Novembro de 2000

Toda a gente sabe que o que era para ter sido passou à história. De nada serve olhar para o que acontece à luz dos padrões e dos pressupostos que durante décadas marcaram e enquadraram o ritmo dos acontecimentos mas que hoje pouco querem dizer nos novos caminhos que o poder e a criação de riqueza estão a tomar. Não é nada de novo dizer que o actual sistema político, os partidos, os círculos dos deputados, as autarquias e os respectivos poderes não dizem mais respeito ao país que é este, que está aí, que existe e se preocupa.

Ao contrário do que durante toda a passada semana foi apresentado na generalidade dos media, a posição que o deputado de Ponte de Lima assumiu no debate sobre o Orçamento do Estado é muito mais típica de uma padrão em emergência do que uma excepção ao modo presente e futuro de fazer as coisas.

Quando um Orçamento do Estado é ou não é aprovado por decisão de um único deputado, escusado será dizer que o problema não é esse deputado mas o sistema em que esse mesmo deputado exerce as suas escolhas e o seu voto. É esse sistema que hoje não responde às realidades que se constituíram no curso dos acontecimentos, e cujo contexto histórico em nada indica que venham a regredir, antes pelo contrário.

O contexto fundamental desta história assenta no facto de o Estado não ser mais o actor por excelência do poder político. O chamado poder local e as redes de empresas são hoje entidades que cada vez mais importantes para decisões no que respeita à afectação de recursos e ao desenvolvimento das regiões. Os factores que determinam o desenvolvimento de cada país, ou melhor será dizer de cada região ou local, são cada vez menos directamente influenciáveis pelos governos.

A abertura dos mercados e o derrube de todo o tipo de barreiras à circulação planetária dos recursos é a causa fundamental de uma tendência de fundo de esvaziamento substancial dos poderes tradicionais do Estado.

A deslocalização de poderes historicamente concentrados no Estado está a fazer-se não num mas em três sentidos: para cima, entidades supra-estatais, como a ONU, a UE, a OMC, a NATO, etc., estão a ganhar poderes políticos, fiscais, comerciais, monetários e militares, que historicamente o Estado reservava para si próprio; para o lado, novas entidades, como as empresas transnacionais e as organizações não governamentais estão a tomar o papel anteriormente atribuído ao Estado na criação de emprego, na segurança social, na realização profissional e pessoal; para baixo, entidades infra-estatais, como as regiões, as cidades, as câmaras municipais, estão a exigir e a ganhar poderes que anteriormente eram inegociáveis pelo Estado central, como por exemplo nas questões sociais, na habitação, na educação, em iniciativas culturais diversas. A proximidade, a melhor percepção e uma maior rapidez de actuação, proporcionam mais eficácia e mais eficiência, facilitando a capacidade de gerar recursos.

A ascensão do poder das regiões e do local está no entanto a obedecer a padrões diversos dos do passado. O que agora está em cima da mesa é a capacidade de criar riqueza e de atrair os melhores. As regiões tendem a abandonar os folclores e a protagonizar o principal papel na construção da coesão social. Há quatro anos, o jornal "Le Monde" surgiu com uma nova secção no corpo principal do jornal: "regiões". Não se analisam factos pretensamente menores, mas antes se trata da questão vital dos anos que correm: competitividade, criação de riqueza, localização de empresas, emprego, educação, bem-estar, etc.

Os novos líderes regionais debruçam-se sobre o bem-estar das populações, procuram soluções para os problemas do emprego, para a educação e para a imigração, recusando a discricionariedade dos macromodelos. Sentem-se melhor colocados do que os Governos centrais, cuja máquina administrativa se tornou, com o passar do tempo, ela mesma, um problema.

"O Estado é pequeno demais para as grandes coisas e grande demais para as pequenas coisas" (Daniel Bell). Hoje, a economia e a fiscalidade são grandes demais para qualquer Estado, e os transportes, o trânsito, a nova escola, os espaços verdes, a instalação de novas empresas, são tarefas pequenas demais para esse mesmo Estado - já nos anos 60 de Gaulle questionava: "Como é que se pode governar um país que tem 246 variedades de queijo?"

O voto do deputado Daniel Campelo insere-se nesta nova lógica de poder. As tendências de fundo emergem de padrões de comportamentos, e não o contrário, e o padrão da emergência de um poder local mais forte e com novas competências é uma realidade por todo o lado. O que muito boa gente anda por aí a fazer é o contrário de entender o que se passa. São tentativas de fazer com que o que se passa caiba nos modelos que são tomados, eles mesmos, pela realidade. O voto de Campelo, inserido neste caudal da história, não é de resto um caso único na história parlamentar recente. Mais casos houve em que deputados colocaram outros interesses que não os do seu partido ou da sua bancada a determinar o seu sentido de voto. Trata-se de um problema de hierarquização pura de poderes. Trata-se de escolher o que é mais importante, mais relevante para a nossa vida, para a percepção que temos do fluir das decisões e dos acontecimentos. Nestas situações, o interesse do partido, por isso do Estado tal como seria suposto funcionar, tem sido relegado para segundo plano.

Nunca serviu de nada querer adaptar a realidade às nossas ideias ou aos nossos modelos. Só aquele que adapta a sua política ao correr dos tempos pode prosperar (Maquiavel). As ideias que contam são as da própria época que corre. Neste novo mundo, a subsidiariedade radical está a tornar-se a aproximação por defeito a qualquer problemática. Só o que não possa ser gerido e decidido por cada um de nós individualmente é que sobre ao nível seguinte. O que não puder ser tratado no bairro ou na freguesia passa para a câmara municipal. O que a cidade não puder resolver passa para a região. O que a região não tiver capacidade para gerir passa para o país. O que o país não puder resolver passa para a UE, para a ONU, para a OMC ou para a NATO.

As coisas são como são, mas manda quem pode. Por isso, como as mais variadas teorias organizacionais explicam, a mudança de sistema não é fácil. Ela contém em si mesma um paradoxo: em qualquer situação, quem tem mais poder para iniciar uma mudança é quem tem mais a perder com o êxito dessa mesma mudança.

ilharco@tananet.com

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