EXPRESSO: Opinião

01-02-2002
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Olho vivo, pois é

«O roseiral é uma categoria indefinida, muito parecida com o cavaquismo terminal. Pura e simplesmente, a maioria das pessoas deixou de aturar a combinação entre grau zero de política, campelismo e fusão entre Estado, partido e sistema de favores. Um número crescente de portugueses percebeu que eles já só lá estavam em cima para se aguentarem lá em cima. E não gostaram do filme.»

«Nada de mais normal»

Jorge Coelho, comentando a candidatura de Jaime Gama

OS RESULTADOS já lá vão, as consequências é que não.

O primeiro passo é perceber o que aconteceu e porque aconteceu.

Aconteceu uma mutação política em profundidade no sentido da direita. Esse sentido manifestou-se na passagem de câmaras PS para a direita e de câmaras CDU para o PS. Ambos os acontecimentos são parte integrante de um só movimento. Um não tem causas nacionais e o outro explicações locais. Ambos têm de ambas.

O esgotamento e desnorte da governação rosa, há muito patentes, influenciaram a queda de vários municípios PS, em particular nas áreas metropolitanas. Mas tal poderia ter sido evitado ou minorado se boa parte das gestões autárquicas socialistas não pertencessem, já, ao mundo do roseiral. O roseiral é uma categoria indefinida, muito parecida com o cavaquismo terminal. Pura e simplesmente, a maioria das pessoas deixou de aturar a combinação entre grau zero de política, campelismo e fusão entre Estado, partido e sistema de favores. Um número crescente de portugueses percebeu que eles já só lá estavam em cima para se aguentarem lá em cima. E não gostaram do filme.

Sucede que isto não explica a discrepância de resultados locais. A factura de Daniel Campelo, que agora não tem governo nem terá fábrica de queijo — e é bem feito —, não se distribuiu igualmente pelo universo da rosa. A factura foi maior nas maiores concentrações, aí onde a complexidade da política urbana exige da política outra exigência. É verdade que vários dirigentes do PSD ganharam câmaras sem saberem ler ou escrever. Mas os socialistas que perderam devem perceber porque tal lhes aconteceu. Eles instalaram-se, demonstraram sobranceria e arrogância e recusaram-se ao debate sobre o futuro das suas cidades. António Guterres e Daniel Campelo têm costas largas, mas convém repartir.

A perda das câmaras CDU, algumas com elevado grau de injustiça, também não tem apenas causas locais. Em rigor se poderia formular a tese inversa: muitas só se aguentaram por factores locais. A quebra de hegemonia autárquica do PCP está intimamente ligada ao progressivo esgotamento do seu modelo de gestão, à dificuldade de gerar novos quadros e à incapacidade de renovar as práticas sociais a partir do aparelho de Estado. Como está ligada a um processo de balcanização de cada município e à total incapacidade de pensar o poder local fora das estreitas margens em que ele é obrigado a funcionar. O PCP há muito desistiu de dar combate ou reflectir sobre políticas de solos, integração de políticas ou novos modelos de participação popular. Ou seja, apenas resistindo, vem desistindo de alterar as «regras do jogo» em nome das posições conquistadas. O resultado é que, de autárquicas em autárquicas, as praças-fortes vão caindo.

O que une os dois movimentos — queda do PS para o PSD e da CDU para o PS — é, para lá da conjuntura política ou das políticas específicas dos dois partidos, uma tendência sociológica: as bases eleitorais destes dois partidos estão a envelhecer mais rapidamente do que o país, e as esquerdas tradicionais estão a perder o contacto com os sectores mais dinâmicos da sociedade. O que o PS ganha em Évora à CDU é o que Santana Lopes ganha em Lisboa a João Soares — os mais jovens, os assalariados mais qualificados e uma parte dos eleitores com maiores exigências culturais e ambientais. É extraordinário, mas é verdade: em várias das principais disputas, os candidatos à direita do espectro de disputa argumentaram contra a esquerda no poder com as razões que esse mesmo poder havia metido na gaveta.

Desta hipótese decorre a consequência: é forte a possibilidade de o roseiral se transformar, já em Março, num novo laranjal. Porque o tempo político escasseia e porque a renovação das relações entre a esquerda política e o país carece de um outro tempo. O mapa político de Março depende, contudo, de factores que ainda não são claros. Será o PS capaz de tirar lições do seu campelismo direitista, inflectindo à esquerda — ou, pelo contrário, em nome do centro confirmará o guterrismo sem Guterres? E, à sua esquerda, será o PCP capaz de travar mais do que um combate pela sobrevivência ou será possível que as diferentes componentes da esquerda caminhem separadas mas saibam atacar juntas e, simultaneamente, colocar na agenda a urgência da sua própria modernização?

E-mail: miguel.portas@netc.pt

Olho vivo, pois é

«O roseiral é uma categoria indefinida, muito parecida com o cavaquismo terminal. Pura e simplesmente, a maioria das pessoas deixou de aturar a combinação entre grau zero de política, campelismo e fusão entre Estado, partido e sistema de favores. Um número crescente de portugueses percebeu que eles já só lá estavam em cima para se aguentarem lá em cima. E não gostaram do filme.»

«Nada de mais normal»

Jorge Coelho, comentando a candidatura de Jaime Gama

OS RESULTADOS já lá vão, as consequências é que não.

O primeiro passo é perceber o que aconteceu e porque aconteceu.

Aconteceu uma mutação política em profundidade no sentido da direita. Esse sentido manifestou-se na passagem de câmaras PS para a direita e de câmaras CDU para o PS. Ambos os acontecimentos são parte integrante de um só movimento. Um não tem causas nacionais e o outro explicações locais. Ambos têm de ambas.

O esgotamento e desnorte da governação rosa, há muito patentes, influenciaram a queda de vários municípios PS, em particular nas áreas metropolitanas. Mas tal poderia ter sido evitado ou minorado se boa parte das gestões autárquicas socialistas não pertencessem, já, ao mundo do roseiral. O roseiral é uma categoria indefinida, muito parecida com o cavaquismo terminal. Pura e simplesmente, a maioria das pessoas deixou de aturar a combinação entre grau zero de política, campelismo e fusão entre Estado, partido e sistema de favores. Um número crescente de portugueses percebeu que eles já só lá estavam em cima para se aguentarem lá em cima. E não gostaram do filme.

Sucede que isto não explica a discrepância de resultados locais. A factura de Daniel Campelo, que agora não tem governo nem terá fábrica de queijo — e é bem feito —, não se distribuiu igualmente pelo universo da rosa. A factura foi maior nas maiores concentrações, aí onde a complexidade da política urbana exige da política outra exigência. É verdade que vários dirigentes do PSD ganharam câmaras sem saberem ler ou escrever. Mas os socialistas que perderam devem perceber porque tal lhes aconteceu. Eles instalaram-se, demonstraram sobranceria e arrogância e recusaram-se ao debate sobre o futuro das suas cidades. António Guterres e Daniel Campelo têm costas largas, mas convém repartir.

A perda das câmaras CDU, algumas com elevado grau de injustiça, também não tem apenas causas locais. Em rigor se poderia formular a tese inversa: muitas só se aguentaram por factores locais. A quebra de hegemonia autárquica do PCP está intimamente ligada ao progressivo esgotamento do seu modelo de gestão, à dificuldade de gerar novos quadros e à incapacidade de renovar as práticas sociais a partir do aparelho de Estado. Como está ligada a um processo de balcanização de cada município e à total incapacidade de pensar o poder local fora das estreitas margens em que ele é obrigado a funcionar. O PCP há muito desistiu de dar combate ou reflectir sobre políticas de solos, integração de políticas ou novos modelos de participação popular. Ou seja, apenas resistindo, vem desistindo de alterar as «regras do jogo» em nome das posições conquistadas. O resultado é que, de autárquicas em autárquicas, as praças-fortes vão caindo.

O que une os dois movimentos — queda do PS para o PSD e da CDU para o PS — é, para lá da conjuntura política ou das políticas específicas dos dois partidos, uma tendência sociológica: as bases eleitorais destes dois partidos estão a envelhecer mais rapidamente do que o país, e as esquerdas tradicionais estão a perder o contacto com os sectores mais dinâmicos da sociedade. O que o PS ganha em Évora à CDU é o que Santana Lopes ganha em Lisboa a João Soares — os mais jovens, os assalariados mais qualificados e uma parte dos eleitores com maiores exigências culturais e ambientais. É extraordinário, mas é verdade: em várias das principais disputas, os candidatos à direita do espectro de disputa argumentaram contra a esquerda no poder com as razões que esse mesmo poder havia metido na gaveta.

Desta hipótese decorre a consequência: é forte a possibilidade de o roseiral se transformar, já em Março, num novo laranjal. Porque o tempo político escasseia e porque a renovação das relações entre a esquerda política e o país carece de um outro tempo. O mapa político de Março depende, contudo, de factores que ainda não são claros. Será o PS capaz de tirar lições do seu campelismo direitista, inflectindo à esquerda — ou, pelo contrário, em nome do centro confirmará o guterrismo sem Guterres? E, à sua esquerda, será o PCP capaz de travar mais do que um combate pela sobrevivência ou será possível que as diferentes componentes da esquerda caminhem separadas mas saibam atacar juntas e, simultaneamente, colocar na agenda a urgência da sua própria modernização?

E-mail: miguel.portas@netc.pt

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