Espaço Público

01-11-2001
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Daniel Campelo

Quinta-feira, 30 de Maio de 2001 António Lobo Xavier destaque: Quando Daniel Campelo diz que é uma vítima do cumprimento da palavra, (...) quer confundir propositadamente os espíritos, sugerindo uma identificação absoluta entre a promessa e o método do seu cumprimento: é claro que jurou defender os interesses do Alto Minho. (...) Ora sucede que o partido não lhe censura a promessa, mas a forma que escolheu para a cumprir. Perguntei a mim próprio, antes de escrever, o que vale ainda o chamado "caso Campelo" - quero dizer, o "caso" em toda a sua "complexidade", incluindo o voto favorável do último Orçamento, a decisão do órgão jurisdicional do CDS e as "alegações de recurso" apresentadas em público pelo autor com grande sentido comunicativo. É claro que não ignoro o valor facial do voto - o valor de um certo voto que dá lugar a uma surpreendente maioria absoluta -, que esse é muito alto, bem o sei. O problema é que o episódio não é exaltante, e suponho que já foi dito quase tudo, de mau e de bom, sobre o gesto do presidente da Câmara de Ponte de Lima e sobre as respectivas consequências. Se escrevo, é mais por obrigação. Ao longo de cerca de 25 anos, percorri com Daniel Campelo um percurso político com muitos pontos comuns, embora não esteja seguro de que isso para ele constitua um motivo de orgulho. Ambos temos uma militância no CDS com uma antiguidade muito próxima: passámos o "freitismo", o "pirismo", o "adrianismo" e o "monteirismo", e fomos sendo um pouco tudo isso, com mais ou menos fervor. Eu, pelo menos, fui sendo. Cada um de nós deu ao CDS um bom bocado da sua vida: talvez a minha parte tenha sido mais fácil; a parte do Daniel Campelo foi com certeza mais duradoura, e os seus êxitos são seguramente mais expressivos, até porque - ninguém pode disputar-lhe isso - foram mais directamente avaliados por essa medida implacável da democracia. Não tendo palavras de aprovação para lhe transmitir, poderia talvez calar-me, "que os assuntos do partido são para ser discutidos dentro do partido" - tantas vezes ouvi esse dogma sem sentido. Ou poderia sussurrar-lhe a minha opinião num breve encontro, em segredo, como terão feito outros, segundo ele próprio denunciou. Mas o assunto já estava ostensivamente na rua... A verdade é que o próprio Daniel Campelo se encarregou de dispensar os meus escrúpulos. Como é óbvio, sempre pensei que se defenderia, invocando o seu círculo e a sua vinculação, com uma argumentação bem ao gosto da concepção dominante sobre a relação entre os eleitos e os eleitores. Mas também o imaginava a assumir os seus actos; era capaz de jurar que lhe não seria difícil reconhecer que, independentemente das motivações, aquele gesto tinha prejudicado o CDS e o seu grupo parlamentar. Jamais poderia antecipar, contudo, a rábula da vítima. E, no entanto, ouvi-o, sem sombra de dúvida: que o partido usara métodos que ele julgava existirem apenas nos outros (era do PCP que falava, já se vê); que era uma vítima do cumprimento da palavra; que só o povo poderia decidir se ele deve ou não ser candidato em Ponte de Lima; que irá até aos tribunais comuns para mostrar que nada fez de errado. Já não tenho ilusões: quatro pinceladas coloridas sobre um pequeno rebelde local que enfrenta o directório do partido dão um quadro que pode disputar alguns minutos àquilo que as televisões hoje chamam "a ficção nacional". Sei que as pessoas são complacentes com esta argumentação demagógica, para dizer o menos. Penso, aliás, que seriam ainda mais complacentes, se as circunstâncias do "caso" não se encarregassem de o tornar na sua própria caricatura, e se a comunicação social tivesse resistido à atracção pelos títulos sensacionalistas - "um voto por um queijo!". Mas que métodos particularmente odiosos terá usado o partido? Pelo que vi, perante uma flagrante contradição estratégica, assumida conscientemente sobre um tema da mais alta importância - e depois de repetidos apelos para que reconsiderasse -, moveu-lhe um processo disciplinar, com todas as garantias. O significado do voto de Daniel Campelo não se confinava, aliás, ao CDS. Como muitos salientaram à época, tratava-se de um acto que atingia a credibilidade do Governo e do próprio sistema político. Alguém podia esperar que as coisas seguissem outro curso? Lembro inclusivamente que alguns chegaram a sugerir que havia conivência entre o autarca e a direcção do CDS e que o primeiro jamais enfrentaria um processo com consequências palpáveis. Quando Daniel Campelo diz que é uma vítima do cumprimento da palavra, pode ser que algumas almas piedosas se enterneçam. O certo é que quer confundir propositadamente os espíritos, sugerindo uma identificação absoluta entre a promessa e o método do seu cumprimento: é claro que jurou defender os interesses do Alto Minho; mas nunca disse que, para servir tal fim, estava disposto a perder a alma. Ora sucede que o partido não lhe censura a promessa, mas a forma que escolheu para a cumprir. É sintomático o modo como Daniel Campelo fala no povo ou nos eleitores, ao mesmo tempo que ignora os seus colegas de partido e o seu grupo parlamentar, os quais não recebem sequer as migalhas de um discurso justificativo, arrogante e populista. É de tal forma egoísta esta ideia de representação que só a poderíamos compreender num sistema em que fossem admitidos partidos regionais. Era melhor que Daniel Campelo poupasse os juízes e os advogados. Se lhes vai perguntar se tinha o direito de votar como entendesse, dir-lhe-ão que tem razão, razão de mais, como no epigrama de Bocage. É evidente que o problema é político, e bem simples, por sinal: trata-se apenas de saber se, sendo-se deputado da oposição, é legítimo proteger os interesses do círculo eleitoral votando com o Governo, ainda que as matérias em causa sejam aquelas em que a diferença é elemento essencial da ideologia e da estratégia políticas. Ora esse juízo já todos o fizemos há muito. Paulo Portas merece, sem dúvida, a última palavra. Num tempo em que se prepara um assédio generalizado aos presidentes de câmara, prescinde de uma parte significativa do seu magro quinhão, em nome de princípios. Era fácil deixar o tempo correr e ensaiar uma nova história do filho pródigo - muitos apostaram num epílogo deste género. Em termos políticos, nem Paulo Portas nem o CDS ganham alguma coisa com esta crise. É por isso que me orgulho de que as coisas se tenham passado assim. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Uma Constituição não é um programa

OPINIÃO

Daniel Campelo

Um dia ainda seremos todos sociais-democratas...

Descarga de autoclismo

O FIO DO HORIZONTE

No táxi

CARTAS AO DIRECTOR

O PCP e a manifestação junto ao patriarcado em 1975

Samuel Lina e o Bloco Democrático

Pesadelo na estrada

Citações

O PÚBLICO ERROU

Errata

Daniel Campelo

Quinta-feira, 30 de Maio de 2001 António Lobo Xavier destaque: Quando Daniel Campelo diz que é uma vítima do cumprimento da palavra, (...) quer confundir propositadamente os espíritos, sugerindo uma identificação absoluta entre a promessa e o método do seu cumprimento: é claro que jurou defender os interesses do Alto Minho. (...) Ora sucede que o partido não lhe censura a promessa, mas a forma que escolheu para a cumprir. Perguntei a mim próprio, antes de escrever, o que vale ainda o chamado "caso Campelo" - quero dizer, o "caso" em toda a sua "complexidade", incluindo o voto favorável do último Orçamento, a decisão do órgão jurisdicional do CDS e as "alegações de recurso" apresentadas em público pelo autor com grande sentido comunicativo. É claro que não ignoro o valor facial do voto - o valor de um certo voto que dá lugar a uma surpreendente maioria absoluta -, que esse é muito alto, bem o sei. O problema é que o episódio não é exaltante, e suponho que já foi dito quase tudo, de mau e de bom, sobre o gesto do presidente da Câmara de Ponte de Lima e sobre as respectivas consequências. Se escrevo, é mais por obrigação. Ao longo de cerca de 25 anos, percorri com Daniel Campelo um percurso político com muitos pontos comuns, embora não esteja seguro de que isso para ele constitua um motivo de orgulho. Ambos temos uma militância no CDS com uma antiguidade muito próxima: passámos o "freitismo", o "pirismo", o "adrianismo" e o "monteirismo", e fomos sendo um pouco tudo isso, com mais ou menos fervor. Eu, pelo menos, fui sendo. Cada um de nós deu ao CDS um bom bocado da sua vida: talvez a minha parte tenha sido mais fácil; a parte do Daniel Campelo foi com certeza mais duradoura, e os seus êxitos são seguramente mais expressivos, até porque - ninguém pode disputar-lhe isso - foram mais directamente avaliados por essa medida implacável da democracia. Não tendo palavras de aprovação para lhe transmitir, poderia talvez calar-me, "que os assuntos do partido são para ser discutidos dentro do partido" - tantas vezes ouvi esse dogma sem sentido. Ou poderia sussurrar-lhe a minha opinião num breve encontro, em segredo, como terão feito outros, segundo ele próprio denunciou. Mas o assunto já estava ostensivamente na rua... A verdade é que o próprio Daniel Campelo se encarregou de dispensar os meus escrúpulos. Como é óbvio, sempre pensei que se defenderia, invocando o seu círculo e a sua vinculação, com uma argumentação bem ao gosto da concepção dominante sobre a relação entre os eleitos e os eleitores. Mas também o imaginava a assumir os seus actos; era capaz de jurar que lhe não seria difícil reconhecer que, independentemente das motivações, aquele gesto tinha prejudicado o CDS e o seu grupo parlamentar. Jamais poderia antecipar, contudo, a rábula da vítima. E, no entanto, ouvi-o, sem sombra de dúvida: que o partido usara métodos que ele julgava existirem apenas nos outros (era do PCP que falava, já se vê); que era uma vítima do cumprimento da palavra; que só o povo poderia decidir se ele deve ou não ser candidato em Ponte de Lima; que irá até aos tribunais comuns para mostrar que nada fez de errado. Já não tenho ilusões: quatro pinceladas coloridas sobre um pequeno rebelde local que enfrenta o directório do partido dão um quadro que pode disputar alguns minutos àquilo que as televisões hoje chamam "a ficção nacional". Sei que as pessoas são complacentes com esta argumentação demagógica, para dizer o menos. Penso, aliás, que seriam ainda mais complacentes, se as circunstâncias do "caso" não se encarregassem de o tornar na sua própria caricatura, e se a comunicação social tivesse resistido à atracção pelos títulos sensacionalistas - "um voto por um queijo!". Mas que métodos particularmente odiosos terá usado o partido? Pelo que vi, perante uma flagrante contradição estratégica, assumida conscientemente sobre um tema da mais alta importância - e depois de repetidos apelos para que reconsiderasse -, moveu-lhe um processo disciplinar, com todas as garantias. O significado do voto de Daniel Campelo não se confinava, aliás, ao CDS. Como muitos salientaram à época, tratava-se de um acto que atingia a credibilidade do Governo e do próprio sistema político. Alguém podia esperar que as coisas seguissem outro curso? Lembro inclusivamente que alguns chegaram a sugerir que havia conivência entre o autarca e a direcção do CDS e que o primeiro jamais enfrentaria um processo com consequências palpáveis. Quando Daniel Campelo diz que é uma vítima do cumprimento da palavra, pode ser que algumas almas piedosas se enterneçam. O certo é que quer confundir propositadamente os espíritos, sugerindo uma identificação absoluta entre a promessa e o método do seu cumprimento: é claro que jurou defender os interesses do Alto Minho; mas nunca disse que, para servir tal fim, estava disposto a perder a alma. Ora sucede que o partido não lhe censura a promessa, mas a forma que escolheu para a cumprir. É sintomático o modo como Daniel Campelo fala no povo ou nos eleitores, ao mesmo tempo que ignora os seus colegas de partido e o seu grupo parlamentar, os quais não recebem sequer as migalhas de um discurso justificativo, arrogante e populista. É de tal forma egoísta esta ideia de representação que só a poderíamos compreender num sistema em que fossem admitidos partidos regionais. Era melhor que Daniel Campelo poupasse os juízes e os advogados. Se lhes vai perguntar se tinha o direito de votar como entendesse, dir-lhe-ão que tem razão, razão de mais, como no epigrama de Bocage. É evidente que o problema é político, e bem simples, por sinal: trata-se apenas de saber se, sendo-se deputado da oposição, é legítimo proteger os interesses do círculo eleitoral votando com o Governo, ainda que as matérias em causa sejam aquelas em que a diferença é elemento essencial da ideologia e da estratégia políticas. Ora esse juízo já todos o fizemos há muito. Paulo Portas merece, sem dúvida, a última palavra. Num tempo em que se prepara um assédio generalizado aos presidentes de câmara, prescinde de uma parte significativa do seu magro quinhão, em nome de princípios. Era fácil deixar o tempo correr e ensaiar uma nova história do filho pródigo - muitos apostaram num epílogo deste género. Em termos políticos, nem Paulo Portas nem o CDS ganham alguma coisa com esta crise. É por isso que me orgulho de que as coisas se tenham passado assim. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Uma Constituição não é um programa

OPINIÃO

Daniel Campelo

Um dia ainda seremos todos sociais-democratas...

Descarga de autoclismo

O FIO DO HORIZONTE

No táxi

CARTAS AO DIRECTOR

O PCP e a manifestação junto ao patriarcado em 1975

Samuel Lina e o Bloco Democrático

Pesadelo na estrada

Citações

O PÚBLICO ERROU

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