Oficial das Letras

06-03-2000
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Combateu nas três frentes da guerra em África. E por actos de coragem e heroísmo nos campos de batalha foi condecorado, em circunstâncias e momentos diferentes, com duas Cruzes de Guerra de 1.ª classe - uma em Moçambique, outra na Guiné. Oficial de Cavalaria, no activo, Carlos Matos Gomes, com o actual posto de coronel, participou activamente em todas as acções do Movimento dos Capitães, que levou à queda da ditadura. Tal como outros oficiais, que acreditaram no sonho da mudança das mentalidades e na construção de uma sociedade mais justa, envolveu-se com entusiasmo em todas as fases da Revolução, o que de algum modo lhe valeu prejuízos próprios. Beneficiando, porém, da enorme experiência do seu passado de combatente, e vasta cultura, Carlos Matos Gomes - ou Carlos Vale Ferraz - escreveu vários livros sobre a guerra colonial, designadamente «Nó Cego». Acaba de publicar «O Livro das Maravilhas»

TINHA 20 anos, apenas, em 1966, era o orgulho dos pais que o miravam, fardado com garbo e rigor, quando completou o curso de Cavalaria numa das instituições de ensino mais elitistas e prestigiadas do Estado Novo, a Academia Militar. Estudou para a guerra e, coerente com os sonhos que lhe marcaram a adolescência, fez questão de a travar em todas as frentes em que o seu Portugal de então estava, se bem que «teimosamente só», envolvido: Moçambique primeiro, Angola depois, a Guiné, finalmente. Guerreiro convicto e ansioso por poder servir, cada vez melhor, a sua dama, fez-se «comandante» entre os próprios Comandos - tidos como os servidores mais fiéis e encarniçados do velho e caduco regime colonial - para entrar, como entrou, na almejada galeria dos «heróis» distinguidos na praça pública com a Cruz de Guerra. E arrecadou duas, à sua conta. Curiosamente, porém, bastaram seis anos - ou três comissões, para utilizar uma linguagem mais militar -, vividos intensamente no campo de batalha, para transformar o jovem cruzado ao serviço da trilogia «Deus, Pátria, Família» num conspirador eficaz do Movimento dos Capitães que levou à morte e enterrou o colonial-fascismo de Salazar e Caetano. Hoje, mais de 30 anos volvidos e ainda no activo, perseguidor incansável de uma harmonia ética com que a paixão pela Filosofia o faz, de há muito, sonhar, Carlos Matos Gomes tornou-se especialista noutras guerras, as das letras, mais precisamente, transferindo as suas frentes de combate, agora mais pessoais, para os romances e as novelas. Mas, afinal, quem é o homem que se oculta por detrás do pseudónimo Carlos Vale Ferraz, com que assina O Livro das Maravilhas - Anais dos Tristes Acontecimentos do Milénio, a sua última obra, dada à estampa o mês passado?

O jovem Carlos Matos Gomes, nos primeiros anos do liceu, quando era interno no Colégio Nun'Álvares

Aparentemente, é um sujeito normalíssimo, de cara redonda e cabelo já branco cortado muito curto, que sai de casa pelas nove, todas as manhãs, e volta ao cair da tarde, findo o trabalho, para junto da mulher e da filha, única, do casal, a frequentar o último ano de um curso de Comunicação Social. Carlos Matos Gomes, coronel de Cavalaria, nascido há 53 anos em Vila Nova da Barquinha, Santarém, faz desde há cinco o mesmo trajecto diário, em direcção ao Estado-Maior do Exército, em Lisboa, onde está colocado desde a sua última promoção. Como oficial de carreira, e enquanto a idade para a Reserva não chega, vive aí uma das suas últimas grandes batalhas profissionais: a criação de uma unidade, inédita, de aviação dentro do próprio Exército. «O projecto está bem encaminhado», diz ele, depois de enumerar alguns dos principais objectivos da unidade. «Já formámos as nossas próprias equipas, tanto de pilotos como de mecânicos, e é provável que, até ao fim do ano, possamos vir a adquirir os helicópteros ligeiros com que a unidade deverá estar equipada, inicialmente.» Reservado, quanto basta, no que respeita à sua vida pessoal, refere-se aos pais assinalando a circunstância de terem nascido «a 20 mil quilómetros de distância» um do outro. O pai, militar também, é natural da Beira Baixa, enquanto a mãe nasceu californiana, filha de emigrantes açorianos, mais precisamente do Faial, que se estabeleceram no Vale de San Joaquin no início deste século.

No mesmo estabelecimento de ensino, por ocasião de um sarau pelos respectivos alunos. É o segundo a contar da esquerda

Pai e mãe conheceram-se quando o primeiro, no decurso da II Guerra Mundial, foi colocado numa unidade no ilhéu das Formigas, junto ao Faial onde, entretanto, a família da mãe regressara finda a aventura americana. Casaram-se no final da guerra e Carlos Matos Gomes foi o primeiro, e o único rapaz, dos três filhos do casal. Passou uma infância tranquila e despreocupada, na vila à beira Tejo, entretido entre mergulhos e pescarias no rio, com os rapazes da sua idade, antes de os pais o mandarem, interno, para o Colégio Nun'Álvares, em Tomar. Jogava hóquei - a cidade do Nabão tinha, à época, tradições na modalidade - e futebol, é claro, nos intervalos dos estudos, sempre levados muito a sério. As férias de Verão passava-as, normalmente, na quinta de um tio do seu pai, a quinta do Vale Ferraz, nos arredores de Cernache de Bomjardim. «Era um fabuloso contador de histórias, esse tio, um homem que tinha viajado imenso e com um extraordinário sentido de humor», lembra o oficial. «Não havia televisão e passava serões inteiros a ouvi-lo. Se há alguém a quem devo esta capacidade de contar histórias, é a ele, sem dúvida. E o pseudónimo literário que escolhi reflecte essa admiração que guardo por ele.» Aos 17 anos, com um misto de inevitável tristeza e muito orgulho, os pais preparam-lhe as malas e despacham-no para Lisboa, agora para a prestigiada Academia Militar. Três anos de cadete aplicado permitiram-lhe concluir o curso aos 20 anos, em 1966.

Na Academia Militar (é o primeiro da esquerda)

Quando, no início do ano seguinte, já como alferes do Quadro Permanente, parte para a primeira comissão em Moçambique, Carlos Matos Gomes é um dos mais jovens oficiais do Exército presentes numa das três frentes de combate em que as forças armadas portuguesas estavam envolvidas, em África. É colocado em Meponde, no Niassa, como adjunto do comando da Companhia de Cavalaria 1601, entregue ao então capitão Mário Tomé. A guerra desencadeada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) no norte da antiga colónia portuguesa do Índico levava três anos já e prometia alastrar a todo o território. E esse primeiro ano de envolvimento e participação directas no palco da guerra iria, naturalmente, marcá-lo, em profundidade. «Para além de uma componente de aventura, que tem sempre, sobretudo para um jovem como eu era então, descobri que a guerra é, afinal, uma actividade colectiva que devemos procurar levar a cabo com os melhores companheiros e a maior eficácia possíveis, em nome da segurança de todos», resume Carlos Matos Gomes. Esta era uma descoberta importante até porque o jovem oficial sabia que estava destinado, com a experiência colhida directamente no terreno, a tornar-se instrutor uma vez regressado a Portugal depois de terminada a primeira aventura de guerra africana.

Já com a patente de alferes, em Vila Cabral (Moçambique), em 1967. Era a sua primeira comissão na guerra em África

O regresso aconteceu em 1968, ano em que é colocado na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, praticamente ao lado da casa onde nascera e vivera toda a infância. Nesse mesmo ano oferece-se voluntariamente para os Comandos. Em Abril do ano seguinte, já como tenente, parte, mais determinado ainda, para a segunda comissão em África, desta vez em Angola, onde é colocado no Centro de Instrução de Comandos, em Luanda. Mantém-se aí até Outubro desse ano. Em fins de 1969 recebe guia de marcha, de novo, para Moçambique, desta feita investido de responsabilidades no comando da primeira companhia de Comandos que se forma, directamente, naquela província ultramarina e onde irá permanecer até Junho de 1971. A guerra de libertação conduzida pelo movimento nacionalista fundado pelo médico Eduardo Mondlane (e que viria a ser assassinado, na vizinha Tanzânia, através de uma encomenda armadilhada hoje assumidamente enviada pela PIDE, a polícia política do antigo regime) alastrara até ao centro do território e os comandos africanos são chamados a participar num número crescente de operações, seja em Mueda, no Norte, seja em Tete, mais a Sul. Aqui, nomeadamente, uma das primeiras grandes operações militares em que participa tem como objectivo a protecção dos trabalhos de construção da barragem de Cahora-Bassa, no rio Zambeze, uma das maiores de África e do Mundo. Desempenha, igualmente, um papel determinante na preparação e execução da operação Nó Górdio, que visava a destruição das grandes bases da Frelimo no planalto central de Moçambique.

Na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém

«As bases eram cercadas por tropas regulares e assaltadas, depois, por unidades especiais, pára-quedistas, fuzileiros e comandos», explica. Ganha, nesse período, a primeira das duas cruzes de guerra com que viria a ser condecorado, ao mesmo tempo que se descobre, cada vez mais, como «um homem de afectividades e de amizades», como gosta de se definir. As grandes experiências da guerra, e que irão constituir, no futuro, a matéria-prima essencial dos seus primeiros romances - a Nó Cego, um fresco sobre a guerra colonial que António-Pedro de Vasconcelos quis, sem êxito, levar para o cinema e hoje considerado já um texto clássico, seguir-se-á ASP, De Passo Trocado e Os Lobos Não Usam Coleira -, vão-se concentrando em torno de duas situações: «a morte de quem está ao nosso lado e a morte dos que estão do lado de lá», nas suas próprias palavras. «Nos grandes momentos de confronto, os combatentes têm muito pouco tempo para pensar. Não há tempo, sequer, para ter medos, só para reagir conforme se está treinado para o fazer», adianta o coronel. «Ao fim e ao cabo, no campo de batalha, os guerreiros estão sozinhos, sozinhos e confrontados com a sua própria ética, e daí que o campo de batalha seja um lugar quase sagrado», explica-se. Regressa a Portugal em 1971 para ser colocado, desta feita, como instrutor de cadetes na mesma Academia Militar em que se formara, cinco anos antes. Agora, porém, começa a ganhar corpo, dentro de si, a convicção de que a guerra colonial não tinha justificação nem viabilidade. «Por mais forças que se colocassem no terreno, andávamos a correr atrás de alguém que corria, sempre, mais do que nós...»

Condecorado com a segunda Cruz de Guerra, pelo general Spínola, em 10 de Junho de 73, na Guiné

É uma convicção que não é o único a alimentar. Longe disso, constata. Decide que sairia da instituição militar mas, coerente com o seu próprio percurso e os seus valores, quis evitar que o pudessem acusar de cobardia. «Havia uma terceira frente da guerra colonial que eu não conhecia, a da Guiné e onde o general Spínola tentava uma solução diferente para o conflito na qual eu gostaria de participar, isto embora eu não fosse, propriamente, um spinolista. E ofereci-me. Acho mesmo que fui dos poucos oficiais portugueses que se ofereceram para a Guiné.» Parte em 1972 e integra-se no Batalhão de Comandos Africanos, tutelado pelo então major João de Almeida Bruno, um dos braços direitos do general do monóculo. Ao longo dos quase dois anos de comissão na Guiné - «dois anos de grande riqueza e de intenso debate de ideias», gosta de lembrar -, participa numa outra operação especial, designada por Ametista Real, e que visava libertar do cerco apertado a que estava sujeita pelo PAIGC a guarnição de Guidage, no norte do território, junto à fronteira com o Senegal, onde ele e os seus homens entram clandestinamente para desempenhar a quota-parte da missão que lhes cabia. O seu desempenho na operação valer-lhe-ia, entretanto, uma segunda Cruz de Guerra de 1ª Classe, imposta pelo próprio António de Spínola. Não esquece, porém, o dia da missão: 20 de Maio de 1973. E tem razões para o lembrar: 13 companheiros mortos e 50 feridos, precisamente. Mas o tempo passado na Guiné ficou marcado, também, por recordações positivas: o casamento com Céu Lickfold (descendente de um engenheiro inglês que, vindo de Manchester no início do século, ajudou a montar as primeiras fábricas de têxteis no Norte de Portugal), que conhecera num concurso hípico, nas Pedras Salgadas, alguns anos antes, e o início da contestação activa ao regime colonial.

Durante uma sessão pública, no quadro da dinamização cultural do MFA

«Em 1973 preparava-se, no Porto, um Congresso dos Combatentes que deveria funcionar como manifestação de apoio ao regime mas para o qual não tínhamos, nós, os oficiais que combatíamos na Guiné, mandatado absolutamente ninguém para nos representar», recorda. Do abaixo-assinado de protesto negando representatividade à iniciativa a que a situação deu origem, à carta dirigida por cerca de 40 oficiais ao ministro do Exército protestando contra o decreto que este acabara de assinar, equiparando oficiais de carreira a milicianos, estava lançado, imparável, o embrião do Movimento dos Capitães que iria pôr fim a 48 anos de ditadura. É capitão, quando regressa a Portugal depois do 25 de Abril e é colocado no Batalhão de Comandos, na Amadora, liderado por Jaime Neves, seu companheiro de armas em Moçambique mas, agora, posicionado «do outro lado da barricada» no combate político que marcou a vida do país nos primeiros anos que se seguiram à revolução de 74. «A circunstância de ser militar nunca me inibiu nem a cidadania nem a capacidade de pensar», diz Carlos Matos Gomes. Em nome de uma e de outra, e na sequência do 25 de Novembro de 1975, esteve na «prateleira» até 1978, altura em que regressa à Escola Prática de Cavalaria, como major. É promovido a tenente-coronel em 1990 e a coronel em 1994. Vinte e cinco anos depois da revolução dos cravos, admite que a grande conquista de Abril foi «a conquista da liberdade, a disponibilização da liberdade que tornou os portugueses cidadãos da Europa, cidadãos do Mundo». No pólo oposto, ainda hoje lhe custa «assistir às grandes pressões corporativistas que marcam a sociedade portuguesa e que tentam abocanhar, o mais possível, um conjunto de bens que deveriam ser colectivos, em prejuízo dos mais fracos e dos mais débeis». Textos de FERNANDO GASPAR

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Militares na literatura

Mil anos de história

Combateu nas três frentes da guerra em África. E por actos de coragem e heroísmo nos campos de batalha foi condecorado, em circunstâncias e momentos diferentes, com duas Cruzes de Guerra de 1.ª classe - uma em Moçambique, outra na Guiné. Oficial de Cavalaria, no activo, Carlos Matos Gomes, com o actual posto de coronel, participou activamente em todas as acções do Movimento dos Capitães, que levou à queda da ditadura. Tal como outros oficiais, que acreditaram no sonho da mudança das mentalidades e na construção de uma sociedade mais justa, envolveu-se com entusiasmo em todas as fases da Revolução, o que de algum modo lhe valeu prejuízos próprios. Beneficiando, porém, da enorme experiência do seu passado de combatente, e vasta cultura, Carlos Matos Gomes - ou Carlos Vale Ferraz - escreveu vários livros sobre a guerra colonial, designadamente «Nó Cego». Acaba de publicar «O Livro das Maravilhas»

TINHA 20 anos, apenas, em 1966, era o orgulho dos pais que o miravam, fardado com garbo e rigor, quando completou o curso de Cavalaria numa das instituições de ensino mais elitistas e prestigiadas do Estado Novo, a Academia Militar. Estudou para a guerra e, coerente com os sonhos que lhe marcaram a adolescência, fez questão de a travar em todas as frentes em que o seu Portugal de então estava, se bem que «teimosamente só», envolvido: Moçambique primeiro, Angola depois, a Guiné, finalmente. Guerreiro convicto e ansioso por poder servir, cada vez melhor, a sua dama, fez-se «comandante» entre os próprios Comandos - tidos como os servidores mais fiéis e encarniçados do velho e caduco regime colonial - para entrar, como entrou, na almejada galeria dos «heróis» distinguidos na praça pública com a Cruz de Guerra. E arrecadou duas, à sua conta. Curiosamente, porém, bastaram seis anos - ou três comissões, para utilizar uma linguagem mais militar -, vividos intensamente no campo de batalha, para transformar o jovem cruzado ao serviço da trilogia «Deus, Pátria, Família» num conspirador eficaz do Movimento dos Capitães que levou à morte e enterrou o colonial-fascismo de Salazar e Caetano. Hoje, mais de 30 anos volvidos e ainda no activo, perseguidor incansável de uma harmonia ética com que a paixão pela Filosofia o faz, de há muito, sonhar, Carlos Matos Gomes tornou-se especialista noutras guerras, as das letras, mais precisamente, transferindo as suas frentes de combate, agora mais pessoais, para os romances e as novelas. Mas, afinal, quem é o homem que se oculta por detrás do pseudónimo Carlos Vale Ferraz, com que assina O Livro das Maravilhas - Anais dos Tristes Acontecimentos do Milénio, a sua última obra, dada à estampa o mês passado?

O jovem Carlos Matos Gomes, nos primeiros anos do liceu, quando era interno no Colégio Nun'Álvares

Aparentemente, é um sujeito normalíssimo, de cara redonda e cabelo já branco cortado muito curto, que sai de casa pelas nove, todas as manhãs, e volta ao cair da tarde, findo o trabalho, para junto da mulher e da filha, única, do casal, a frequentar o último ano de um curso de Comunicação Social. Carlos Matos Gomes, coronel de Cavalaria, nascido há 53 anos em Vila Nova da Barquinha, Santarém, faz desde há cinco o mesmo trajecto diário, em direcção ao Estado-Maior do Exército, em Lisboa, onde está colocado desde a sua última promoção. Como oficial de carreira, e enquanto a idade para a Reserva não chega, vive aí uma das suas últimas grandes batalhas profissionais: a criação de uma unidade, inédita, de aviação dentro do próprio Exército. «O projecto está bem encaminhado», diz ele, depois de enumerar alguns dos principais objectivos da unidade. «Já formámos as nossas próprias equipas, tanto de pilotos como de mecânicos, e é provável que, até ao fim do ano, possamos vir a adquirir os helicópteros ligeiros com que a unidade deverá estar equipada, inicialmente.» Reservado, quanto basta, no que respeita à sua vida pessoal, refere-se aos pais assinalando a circunstância de terem nascido «a 20 mil quilómetros de distância» um do outro. O pai, militar também, é natural da Beira Baixa, enquanto a mãe nasceu californiana, filha de emigrantes açorianos, mais precisamente do Faial, que se estabeleceram no Vale de San Joaquin no início deste século.

No mesmo estabelecimento de ensino, por ocasião de um sarau pelos respectivos alunos. É o segundo a contar da esquerda

Pai e mãe conheceram-se quando o primeiro, no decurso da II Guerra Mundial, foi colocado numa unidade no ilhéu das Formigas, junto ao Faial onde, entretanto, a família da mãe regressara finda a aventura americana. Casaram-se no final da guerra e Carlos Matos Gomes foi o primeiro, e o único rapaz, dos três filhos do casal. Passou uma infância tranquila e despreocupada, na vila à beira Tejo, entretido entre mergulhos e pescarias no rio, com os rapazes da sua idade, antes de os pais o mandarem, interno, para o Colégio Nun'Álvares, em Tomar. Jogava hóquei - a cidade do Nabão tinha, à época, tradições na modalidade - e futebol, é claro, nos intervalos dos estudos, sempre levados muito a sério. As férias de Verão passava-as, normalmente, na quinta de um tio do seu pai, a quinta do Vale Ferraz, nos arredores de Cernache de Bomjardim. «Era um fabuloso contador de histórias, esse tio, um homem que tinha viajado imenso e com um extraordinário sentido de humor», lembra o oficial. «Não havia televisão e passava serões inteiros a ouvi-lo. Se há alguém a quem devo esta capacidade de contar histórias, é a ele, sem dúvida. E o pseudónimo literário que escolhi reflecte essa admiração que guardo por ele.» Aos 17 anos, com um misto de inevitável tristeza e muito orgulho, os pais preparam-lhe as malas e despacham-no para Lisboa, agora para a prestigiada Academia Militar. Três anos de cadete aplicado permitiram-lhe concluir o curso aos 20 anos, em 1966.

Na Academia Militar (é o primeiro da esquerda)

Quando, no início do ano seguinte, já como alferes do Quadro Permanente, parte para a primeira comissão em Moçambique, Carlos Matos Gomes é um dos mais jovens oficiais do Exército presentes numa das três frentes de combate em que as forças armadas portuguesas estavam envolvidas, em África. É colocado em Meponde, no Niassa, como adjunto do comando da Companhia de Cavalaria 1601, entregue ao então capitão Mário Tomé. A guerra desencadeada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) no norte da antiga colónia portuguesa do Índico levava três anos já e prometia alastrar a todo o território. E esse primeiro ano de envolvimento e participação directas no palco da guerra iria, naturalmente, marcá-lo, em profundidade. «Para além de uma componente de aventura, que tem sempre, sobretudo para um jovem como eu era então, descobri que a guerra é, afinal, uma actividade colectiva que devemos procurar levar a cabo com os melhores companheiros e a maior eficácia possíveis, em nome da segurança de todos», resume Carlos Matos Gomes. Esta era uma descoberta importante até porque o jovem oficial sabia que estava destinado, com a experiência colhida directamente no terreno, a tornar-se instrutor uma vez regressado a Portugal depois de terminada a primeira aventura de guerra africana.

Já com a patente de alferes, em Vila Cabral (Moçambique), em 1967. Era a sua primeira comissão na guerra em África

O regresso aconteceu em 1968, ano em que é colocado na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, praticamente ao lado da casa onde nascera e vivera toda a infância. Nesse mesmo ano oferece-se voluntariamente para os Comandos. Em Abril do ano seguinte, já como tenente, parte, mais determinado ainda, para a segunda comissão em África, desta vez em Angola, onde é colocado no Centro de Instrução de Comandos, em Luanda. Mantém-se aí até Outubro desse ano. Em fins de 1969 recebe guia de marcha, de novo, para Moçambique, desta feita investido de responsabilidades no comando da primeira companhia de Comandos que se forma, directamente, naquela província ultramarina e onde irá permanecer até Junho de 1971. A guerra de libertação conduzida pelo movimento nacionalista fundado pelo médico Eduardo Mondlane (e que viria a ser assassinado, na vizinha Tanzânia, através de uma encomenda armadilhada hoje assumidamente enviada pela PIDE, a polícia política do antigo regime) alastrara até ao centro do território e os comandos africanos são chamados a participar num número crescente de operações, seja em Mueda, no Norte, seja em Tete, mais a Sul. Aqui, nomeadamente, uma das primeiras grandes operações militares em que participa tem como objectivo a protecção dos trabalhos de construção da barragem de Cahora-Bassa, no rio Zambeze, uma das maiores de África e do Mundo. Desempenha, igualmente, um papel determinante na preparação e execução da operação Nó Górdio, que visava a destruição das grandes bases da Frelimo no planalto central de Moçambique.

Na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém

«As bases eram cercadas por tropas regulares e assaltadas, depois, por unidades especiais, pára-quedistas, fuzileiros e comandos», explica. Ganha, nesse período, a primeira das duas cruzes de guerra com que viria a ser condecorado, ao mesmo tempo que se descobre, cada vez mais, como «um homem de afectividades e de amizades», como gosta de se definir. As grandes experiências da guerra, e que irão constituir, no futuro, a matéria-prima essencial dos seus primeiros romances - a Nó Cego, um fresco sobre a guerra colonial que António-Pedro de Vasconcelos quis, sem êxito, levar para o cinema e hoje considerado já um texto clássico, seguir-se-á ASP, De Passo Trocado e Os Lobos Não Usam Coleira -, vão-se concentrando em torno de duas situações: «a morte de quem está ao nosso lado e a morte dos que estão do lado de lá», nas suas próprias palavras. «Nos grandes momentos de confronto, os combatentes têm muito pouco tempo para pensar. Não há tempo, sequer, para ter medos, só para reagir conforme se está treinado para o fazer», adianta o coronel. «Ao fim e ao cabo, no campo de batalha, os guerreiros estão sozinhos, sozinhos e confrontados com a sua própria ética, e daí que o campo de batalha seja um lugar quase sagrado», explica-se. Regressa a Portugal em 1971 para ser colocado, desta feita, como instrutor de cadetes na mesma Academia Militar em que se formara, cinco anos antes. Agora, porém, começa a ganhar corpo, dentro de si, a convicção de que a guerra colonial não tinha justificação nem viabilidade. «Por mais forças que se colocassem no terreno, andávamos a correr atrás de alguém que corria, sempre, mais do que nós...»

Condecorado com a segunda Cruz de Guerra, pelo general Spínola, em 10 de Junho de 73, na Guiné

É uma convicção que não é o único a alimentar. Longe disso, constata. Decide que sairia da instituição militar mas, coerente com o seu próprio percurso e os seus valores, quis evitar que o pudessem acusar de cobardia. «Havia uma terceira frente da guerra colonial que eu não conhecia, a da Guiné e onde o general Spínola tentava uma solução diferente para o conflito na qual eu gostaria de participar, isto embora eu não fosse, propriamente, um spinolista. E ofereci-me. Acho mesmo que fui dos poucos oficiais portugueses que se ofereceram para a Guiné.» Parte em 1972 e integra-se no Batalhão de Comandos Africanos, tutelado pelo então major João de Almeida Bruno, um dos braços direitos do general do monóculo. Ao longo dos quase dois anos de comissão na Guiné - «dois anos de grande riqueza e de intenso debate de ideias», gosta de lembrar -, participa numa outra operação especial, designada por Ametista Real, e que visava libertar do cerco apertado a que estava sujeita pelo PAIGC a guarnição de Guidage, no norte do território, junto à fronteira com o Senegal, onde ele e os seus homens entram clandestinamente para desempenhar a quota-parte da missão que lhes cabia. O seu desempenho na operação valer-lhe-ia, entretanto, uma segunda Cruz de Guerra de 1ª Classe, imposta pelo próprio António de Spínola. Não esquece, porém, o dia da missão: 20 de Maio de 1973. E tem razões para o lembrar: 13 companheiros mortos e 50 feridos, precisamente. Mas o tempo passado na Guiné ficou marcado, também, por recordações positivas: o casamento com Céu Lickfold (descendente de um engenheiro inglês que, vindo de Manchester no início do século, ajudou a montar as primeiras fábricas de têxteis no Norte de Portugal), que conhecera num concurso hípico, nas Pedras Salgadas, alguns anos antes, e o início da contestação activa ao regime colonial.

Durante uma sessão pública, no quadro da dinamização cultural do MFA

«Em 1973 preparava-se, no Porto, um Congresso dos Combatentes que deveria funcionar como manifestação de apoio ao regime mas para o qual não tínhamos, nós, os oficiais que combatíamos na Guiné, mandatado absolutamente ninguém para nos representar», recorda. Do abaixo-assinado de protesto negando representatividade à iniciativa a que a situação deu origem, à carta dirigida por cerca de 40 oficiais ao ministro do Exército protestando contra o decreto que este acabara de assinar, equiparando oficiais de carreira a milicianos, estava lançado, imparável, o embrião do Movimento dos Capitães que iria pôr fim a 48 anos de ditadura. É capitão, quando regressa a Portugal depois do 25 de Abril e é colocado no Batalhão de Comandos, na Amadora, liderado por Jaime Neves, seu companheiro de armas em Moçambique mas, agora, posicionado «do outro lado da barricada» no combate político que marcou a vida do país nos primeiros anos que se seguiram à revolução de 74. «A circunstância de ser militar nunca me inibiu nem a cidadania nem a capacidade de pensar», diz Carlos Matos Gomes. Em nome de uma e de outra, e na sequência do 25 de Novembro de 1975, esteve na «prateleira» até 1978, altura em que regressa à Escola Prática de Cavalaria, como major. É promovido a tenente-coronel em 1990 e a coronel em 1994. Vinte e cinco anos depois da revolução dos cravos, admite que a grande conquista de Abril foi «a conquista da liberdade, a disponibilização da liberdade que tornou os portugueses cidadãos da Europa, cidadãos do Mundo». No pólo oposto, ainda hoje lhe custa «assistir às grandes pressões corporativistas que marcam a sociedade portuguesa e que tentam abocanhar, o mais possível, um conjunto de bens que deveriam ser colectivos, em prejuízo dos mais fracos e dos mais débeis». Textos de FERNANDO GASPAR

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Militares na literatura

Mil anos de história

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