Música para rapariga com faca

13-04-2001
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Música para Rapariga com Faca

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

Sábado, 7 de Abril de 2001

"Vago Pressentimento Azul Por Cima", de Ana Paula Inácio, adensa o fulgor que já se pressentia em "As Vinhas de Meu Pai", o seu livro de estreia.

Mistério é o que nos mantém num livro como num corpo, entre relâmpagos, em adivinha. O sussurro das primeiras estórias no escuro, com raparigas que trincam maçãs e picam os dedos numa roca, cativas dos lobos, dos ogres, das fadas. O fio fabuloso das sibilas de Agustina, Hélia Correia ou Paula Rego.

É aí que está a poesia de Ana Paula Inácio, em pleno sortilégio, antes ou depois do cavaleiro andante - nesse "lado incerto / onde bate o vento", como diz um dos versos deste seu segundo livro. O título, "Vago Pressentimento Azul Por Cima", situa-nos desde logo: sob a luz, na vibrante obscuridade em que oscilam portadas de janelas, ardem velas e queimam lâmpadas. Quando "tudo o que pára / pode ser um sinal".

Neste espaço-tempo primordial em que os enigmas permanecem intactos, raramente se intromete um referente contemporâneo, e quando tal sucede (combóios, avião, divã de psiquiatra, aspirina, televisão) é diluído sem relevo, como uma presença muda que não precisamos de calar.

Porque o verdadeiro domínio de Ana Paula Inácio é o das primeiras pedras (basalto, xisto), o das primeiras plantas (mandrágora), o dos primeiros perfumes (sândalo), o das primeiras vestes (túnica, sandálias), o das primeiras árvores (cedro, cipreste, laranjeira), o das primeiras acções (caçar, cortar, cozinhar, tecer).

É nesta terra a abrir sob o céu que está a casa. Uma casa onde mulheres com "um gosto vivo pelos pássaros" - "não te esqueças / de mudar-me a água / de incentivar-me o voo / quero que sejas minha irmã" - cortam o trigo e preparam a ceia, afiando facas.

Os dias são de magia branca, se elas aparam os cedros e perfumam os decotes - para "o que utiliza a lâmina / o que utiliza o copo / o que utiliza a veia, a chama / e o coração como boca"? -, de maldições, quando aparecem gatos pretos, fogos e espinhos.

Síntese deste domínio (que se lê como um cântico, também pelo apurado trabalho da rima interna), entre os 32 poemas do livro, cite-se na íntegra o da página 23:

"enfia as tuas mãos / não te incomodes / arranca essa coisa que te dói / aprende as artes da madrágora / nenhum líquido te sobrará / depois de já não haver mais anéis / - nem do meu cabelo, nem do teu - / depois de já não haver mais nada / deixa a marca / dos animais que dormem todo o verão / a viseira do cavaleiro andante, / a roca e o fuso, / deixa a marca dos animais / o selo, o número, o uivo, a pega / deixa o rio / a seda, a prata, um fruto seco / a embarcação".

"Vago Pressentimento Azul Por Cima" adensa o fulgor que já se pressentia em "As Vinhas de Meu Pai", breve livro de estreia de Ana Paula Inácio publicado pela Quasi em Junho passado - curiosamente, uma exacta década depois de "Minha Senhora de Quê", a primeira obra de Ana Luísa Amaral.

Justamente desde então, é intrigante a quase ausência de mulheres na poesia portuguesa dos anos 90: entre os nomes revelados com maior intensidade, citemos José Tolentino Mendonça, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda. Ainda Luís Quintais, Paulo José Miranda, José Miguel Silva. Ou, já a fechar a década, Pedro Mexia.

Ana Paula Inácio nasceu no Porto, em 1966, e vive actualmente na Ilha Terceira, nos Açores - paisagem que lhe será certamente propícia. Este seu segundo livro marca também o nascimento de uma nova editora, a Ilhas, que a autora co-fundou com mais três poetas: Carlos Luís Bessa e os já citados Jorge Gomes Miranda e José Miguel Silva.

Música para Rapariga com Faca

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

Sábado, 7 de Abril de 2001

"Vago Pressentimento Azul Por Cima", de Ana Paula Inácio, adensa o fulgor que já se pressentia em "As Vinhas de Meu Pai", o seu livro de estreia.

Mistério é o que nos mantém num livro como num corpo, entre relâmpagos, em adivinha. O sussurro das primeiras estórias no escuro, com raparigas que trincam maçãs e picam os dedos numa roca, cativas dos lobos, dos ogres, das fadas. O fio fabuloso das sibilas de Agustina, Hélia Correia ou Paula Rego.

É aí que está a poesia de Ana Paula Inácio, em pleno sortilégio, antes ou depois do cavaleiro andante - nesse "lado incerto / onde bate o vento", como diz um dos versos deste seu segundo livro. O título, "Vago Pressentimento Azul Por Cima", situa-nos desde logo: sob a luz, na vibrante obscuridade em que oscilam portadas de janelas, ardem velas e queimam lâmpadas. Quando "tudo o que pára / pode ser um sinal".

Neste espaço-tempo primordial em que os enigmas permanecem intactos, raramente se intromete um referente contemporâneo, e quando tal sucede (combóios, avião, divã de psiquiatra, aspirina, televisão) é diluído sem relevo, como uma presença muda que não precisamos de calar.

Porque o verdadeiro domínio de Ana Paula Inácio é o das primeiras pedras (basalto, xisto), o das primeiras plantas (mandrágora), o dos primeiros perfumes (sândalo), o das primeiras vestes (túnica, sandálias), o das primeiras árvores (cedro, cipreste, laranjeira), o das primeiras acções (caçar, cortar, cozinhar, tecer).

É nesta terra a abrir sob o céu que está a casa. Uma casa onde mulheres com "um gosto vivo pelos pássaros" - "não te esqueças / de mudar-me a água / de incentivar-me o voo / quero que sejas minha irmã" - cortam o trigo e preparam a ceia, afiando facas.

Os dias são de magia branca, se elas aparam os cedros e perfumam os decotes - para "o que utiliza a lâmina / o que utiliza o copo / o que utiliza a veia, a chama / e o coração como boca"? -, de maldições, quando aparecem gatos pretos, fogos e espinhos.

Síntese deste domínio (que se lê como um cântico, também pelo apurado trabalho da rima interna), entre os 32 poemas do livro, cite-se na íntegra o da página 23:

"enfia as tuas mãos / não te incomodes / arranca essa coisa que te dói / aprende as artes da madrágora / nenhum líquido te sobrará / depois de já não haver mais anéis / - nem do meu cabelo, nem do teu - / depois de já não haver mais nada / deixa a marca / dos animais que dormem todo o verão / a viseira do cavaleiro andante, / a roca e o fuso, / deixa a marca dos animais / o selo, o número, o uivo, a pega / deixa o rio / a seda, a prata, um fruto seco / a embarcação".

"Vago Pressentimento Azul Por Cima" adensa o fulgor que já se pressentia em "As Vinhas de Meu Pai", breve livro de estreia de Ana Paula Inácio publicado pela Quasi em Junho passado - curiosamente, uma exacta década depois de "Minha Senhora de Quê", a primeira obra de Ana Luísa Amaral.

Justamente desde então, é intrigante a quase ausência de mulheres na poesia portuguesa dos anos 90: entre os nomes revelados com maior intensidade, citemos José Tolentino Mendonça, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda. Ainda Luís Quintais, Paulo José Miranda, José Miguel Silva. Ou, já a fechar a década, Pedro Mexia.

Ana Paula Inácio nasceu no Porto, em 1966, e vive actualmente na Ilha Terceira, nos Açores - paisagem que lhe será certamente propícia. Este seu segundo livro marca também o nascimento de uma nova editora, a Ilhas, que a autora co-fundou com mais três poetas: Carlos Luís Bessa e os já citados Jorge Gomes Miranda e José Miguel Silva.

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