A epopeia do quotidiano

09-03-2001
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A Epopeia do Quotidiano

Por JORGE GOMES MIRANDA

Sábado, 18 de Novembro de 2000

Carlos Luís Bessa desenha uma epopeia discreta do quotidiano português, onde em desespero privado os personagens sabem que os seus sonhos não se realizaram.

Há um Portugal que a poesia portuguesa contemporânea praticamente desconhece, ou que quando sobre ele reflecte, enfatiza, sobretudo, a sua miséria estética e comportamental. Refiro-me concretamente ao dos subúrbios das grandes cidades e de muitas vilas do litoral e das ilhas. Um Portugal semi-industrial, provinciano e deprimido.

Nele vivem pessoas que se sentem ameaçadas no seu trabalho, nas suas vidas amorosas, no seu equilíbrio e na sua identidade. O olhar que Carlos Luís Bessa, em "Olhos de morder, lembrar e partir" (Black Sun), lança sobre este real, nunca esquece o horror urbanístico e a delapidação paisagística a que o país foi sujeito nas últimas décadas, caos que se transmitiu ao viver em comum. Mas vai mais além: num realismo capaz de articular os extremos do sentimento humano, procura apreender essas existências num momento de verdade: solidão, doença, morte, angústia e amor.

Sentimos que por detrás de muitas das "histórias" que compõem este livro vivem pessoas pobres, às vezes desorientadas; as suas vozes chegam-nos enraizadas num determinado contexto social e cultural. No entanto, os versos alcantilados deste poeta, aqui e ali agrestes, falando-nos de formas de sobrevivência, jamais assumem qualquer postura miserabilista ou desprezadora. Ao invés, repercutem nas suas sílabas inúmeros acenos de compreensão e entendimento. Nunca perdendo de vista o sentido de que uma obra de arte não se torna contemporânea por fazer comparecer nos seus poemas sentimento, ideia ou realidade, o seu valor reside, principalmente, na minuciosa organização das palavras.

Carlos Luís Bessa segue o caminho seguido por William Carlos Williams, autor que em alguns dos seus poemas mais emblemáticos deambula pela rua, observando fascinado uma velha que come ameixas, admirando as casas dos muito pobres, os seus telhados, pátios, cercas e anexos: "Ninguém / acreditará que isto / seja tão importante para a nação." Este poema, de que citamos os versos finais, coloca em oposição dois tempos humanos, o da juventude com os seus sonhos e o da idade adulta, época em que as notações do quotidiano proletário constituem para o poeta americano uma lição de vida.

Aqui também se trata de "habitar poeticamente o mundo", (Jean-Claude Pinson). E como a poesia é arquitectura, os versos deixam-se contaminar pelo carácter dissonante da paisagem e pelas impurezas e ritmos da prosa. Um conseguimento que em termos poéticos nos chegou essencialmente da poesia objectiva americana e de alguma nova poesia francesa, próxima do espírito do pragmatismo rortyano no acentuar da dimensão contingente, quotidiana, insignificante da existência.

Tecidos por vozes cruzadas em reflexão, lirismo, solidão, vazio, ruína, beleza, desânimo e plenitude, os versos memorialísticos de Carlos Luís Bessa desenham uma epopeia discreta do quotidiano, onde tantas vezes em desespero privado, os personagens postos lutam pelas suas vidas, sabendo, com dolorosa claridade, que os sonhos que possuíam não se realizaram. E então o que resta? Algumas breves alegrias, simples galardões como o de criarem os filhos num ambiente de calor e encorajamento, ou em cafés junto à estrada empunhando a idolatria clubística, a intenção de voto, antes que uma música de refrão fácil ou qualquer outro vislumbre os arremessa para mais dentro de si. Para a lembrança dum amor vivido na adolescência, em surdina.

A Epopeia do Quotidiano

Por JORGE GOMES MIRANDA

Sábado, 18 de Novembro de 2000

Carlos Luís Bessa desenha uma epopeia discreta do quotidiano português, onde em desespero privado os personagens sabem que os seus sonhos não se realizaram.

Há um Portugal que a poesia portuguesa contemporânea praticamente desconhece, ou que quando sobre ele reflecte, enfatiza, sobretudo, a sua miséria estética e comportamental. Refiro-me concretamente ao dos subúrbios das grandes cidades e de muitas vilas do litoral e das ilhas. Um Portugal semi-industrial, provinciano e deprimido.

Nele vivem pessoas que se sentem ameaçadas no seu trabalho, nas suas vidas amorosas, no seu equilíbrio e na sua identidade. O olhar que Carlos Luís Bessa, em "Olhos de morder, lembrar e partir" (Black Sun), lança sobre este real, nunca esquece o horror urbanístico e a delapidação paisagística a que o país foi sujeito nas últimas décadas, caos que se transmitiu ao viver em comum. Mas vai mais além: num realismo capaz de articular os extremos do sentimento humano, procura apreender essas existências num momento de verdade: solidão, doença, morte, angústia e amor.

Sentimos que por detrás de muitas das "histórias" que compõem este livro vivem pessoas pobres, às vezes desorientadas; as suas vozes chegam-nos enraizadas num determinado contexto social e cultural. No entanto, os versos alcantilados deste poeta, aqui e ali agrestes, falando-nos de formas de sobrevivência, jamais assumem qualquer postura miserabilista ou desprezadora. Ao invés, repercutem nas suas sílabas inúmeros acenos de compreensão e entendimento. Nunca perdendo de vista o sentido de que uma obra de arte não se torna contemporânea por fazer comparecer nos seus poemas sentimento, ideia ou realidade, o seu valor reside, principalmente, na minuciosa organização das palavras.

Carlos Luís Bessa segue o caminho seguido por William Carlos Williams, autor que em alguns dos seus poemas mais emblemáticos deambula pela rua, observando fascinado uma velha que come ameixas, admirando as casas dos muito pobres, os seus telhados, pátios, cercas e anexos: "Ninguém / acreditará que isto / seja tão importante para a nação." Este poema, de que citamos os versos finais, coloca em oposição dois tempos humanos, o da juventude com os seus sonhos e o da idade adulta, época em que as notações do quotidiano proletário constituem para o poeta americano uma lição de vida.

Aqui também se trata de "habitar poeticamente o mundo", (Jean-Claude Pinson). E como a poesia é arquitectura, os versos deixam-se contaminar pelo carácter dissonante da paisagem e pelas impurezas e ritmos da prosa. Um conseguimento que em termos poéticos nos chegou essencialmente da poesia objectiva americana e de alguma nova poesia francesa, próxima do espírito do pragmatismo rortyano no acentuar da dimensão contingente, quotidiana, insignificante da existência.

Tecidos por vozes cruzadas em reflexão, lirismo, solidão, vazio, ruína, beleza, desânimo e plenitude, os versos memorialísticos de Carlos Luís Bessa desenham uma epopeia discreta do quotidiano, onde tantas vezes em desespero privado, os personagens postos lutam pelas suas vidas, sabendo, com dolorosa claridade, que os sonhos que possuíam não se realizaram. E então o que resta? Algumas breves alegrias, simples galardões como o de criarem os filhos num ambiente de calor e encorajamento, ou em cafés junto à estrada empunhando a idolatria clubística, a intenção de voto, antes que uma música de refrão fácil ou qualquer outro vislumbre os arremessa para mais dentro de si. Para a lembrança dum amor vivido na adolescência, em surdina.

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