O PCP e o poder

08-12-2000
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COMENTÁRIO

O PCP e o Poder

Por EDUARDO DÂMASO

Sexta-feira, 8 de Dezembro de 2000 O XVI Congresso do PCP vai realizar-se em condições políticas verdadeiramente perturbadoras. A liturgia cumprir-se-á em toda a sua dimensão visual, mas no quadro de uma atitude política fechada, agreste e defensiva, esmagando aquilo que um debate tem de profundamente vital que é o espírito de contraditório e de uma análise crítica verdadeiramente livre. Para a história vai passar o triunfo de um chamado "sector cunhalista" face aos ditos "renovadores". O reduto dos "duros", intransponível por qualquer avanço que resulte do mero combate democrático, vai ficar na Soeiro Pereira Gomes, benzido pela acrimónia cada vez mais indisfarçada de uma liderança puramente formal e virtual. Carlos Carvalhas, ao deixar-se arrastar para a barricada dos que vencem pelo domínio e manipulação das regras internas do centralismo democrático, deixou de ser um referencial de equilíbrio dentro do PCP e não percebeu que, ao distanciar-se dos "renovadores", diminui inexoravelmente a sua capacidade de relacionamento político com estratos mais alargados do eleitorado. É hoje, mais do que nunca, um líder sem vontade própria, teleguiado e comandado por aqueles que fazem da vida interna do PCP um ritual secreto de obediência à vontade de um chefe supremo. Hoje, mais do que nunca também, o PCP está em risco de se transformar numa espécie de maçonaria marxista-leninista. De resto, perguntar-se-á: porque é que existe ainda, mais de uma década depois da queda do Muro de Berlim e do comunismo, um partido que permanece irredutível na sua barricada ideológica, nos seus dogmas e, até, nos seus ícones e palavreado revolucionário? Será por manter essa fidelidade a uma identidade anacrónica que o PCP evita a diluição numa forma de fazer política hoje em dia igual por todo o lado? Recuemos no tempo. Naqueles anos da revolução de 1974 e, sobretudo depois do 25 de Novembro de 1975, quando ruiu em toda a linha a utopia revolucionária de instalar em Portugal um regime de tipo soviético, o que sobrou para o PCP na sociedade portuguesa? Nos primeiros tempos viveu entalado entre uma extrema-esquerda pujante e uma direita que começou a ter condições de promover a reinstitucionalização do seu poder ao nível do aparelho de Estado. De braço dado com o PS, alguns sectores mais conservadores foram-se progressivamente instalando no Estado. Por volta dos finais do início dos anos 80 a democracia portuguesa "normalizava-se" com uma abertura progressiva à lógica do mercado e uma desideologização que se instalou durante as maiorias absolutas de Cavaco Silva. A caminhada do regime para o centro e a prosperidade de uma pequena e média burguesia urbana, porém, não eliminava uma certa revolta latente na sociedade, nas suas franjas - muito numerosas e sobretudo concentradas nas periferias das cidades -, que ficavam de fora do enorme manjar das verbas comunitárias, que continuavam a viver de pensões miseráveis ou a ter uma vida muito pesada, a tal vidinha que passa pela ponte. O ensino democratizou-se, mas hoje começamos a viver o reverso desse inebriamento, com uma iliteracia galopante e problemas sérios no mercado de trabalho, onde cresce o desemprego de licenciados. A agricultura - esse mundo rural abandonado e desprezado por Lisboa e Bruxelas onde o PCP durante décadas foi buscar a sua força - é hoje uma federação de descontentamentos sociais e económicos. Enfim, o PCP continuou a ter por estes vinte anos uma sociedade portuguesa bastante receptiva à dimensão de protesto que fertiliza o seu discurso e a sua prática. Perguntar-se-á, então e de novo: os comunistas portugueses, face a um novo quadro sócio-económico, modernizaram o seu projecto? Pois foi exactamente isso que não aconteceu. O famoso "centralismo democrático" não só sobreviveu, como se transformou num monstro que à mais leve ameaça tira as garras para fora e tenta decepar quem se lhe meta à frente. O PCP foi-se transformando num partido reduzido à lógica "funcionalista" e burocrática do seu próprio aparelho que tem hoje uma implantação progressivamente diminuta nos velhos bastiões operários e camponeses. Acentuaram-se as contradições entre a capacidade de leitura da realidade social e económica que alguns dos seus deputados preservaram e uma organização que ficou agarrada aos dogmas ideológicos e à pura manutenção do poder. Se algum projecto os comunistas tiveram nos últimos quinze anos, para lá da gestão de pura sobrevivência dos velhos arcaísmos ideológicos, foi aquele que o seu grupo parlamentar protagonizou, com um comportamento político e um padrão de competência técnica que marcaram os debates parlamentares, a elaboração de leis essenciais e, até, de algumas reformas, como a da segurança social. No Parlamento, o PCP não se limitou a uma função tribunícia; pelo contrário, assumiu na plenitude os mandatos que o povo lhe entregou e foi um referencial de confiança no funcionamento do sistema. Que partido de poder não gostaria de ter Octávio Teixeira, João Amaral ou um quadro como Edgar Correia num dos seus governos? E não foi a sua acção que aos poucos foi credibilizando aos olhos do eleitorado a liderança de Carlos Carvalhas? Ou será que alguém acredita que o abono de família essencial do PCP ainda é Álvaro Cunhal? Cunhal é importante, mas já não foi determinante nas últimas eleições, em que nem sequer fez campanha. Que protagonistas sobram, pois, para dar rosto a um projecto credível do PCP? Um grupo de cinzentos funcionários? E aí se coloca a questão de fundo: ao admitir uma experiência governativa em eventual coligação com o PS, o PCP corre o risco de diluição, de "social-democratização"? A questão, provavelmente, está um pouco mais ao lado. O PCP tem hoje alternativa a um caminho que o leve a ter de encarar de frente a questão do poder? Sem possuir os poros de respiração com a sociedade que tinha há uns anos atrás, o PCP não tem porventura outra escolha. O desafio está em debater isto, ou, pelo contrário, esperar paulatinamente pelo envelhecimento do seu eleitorado, agarrando-se a um perfil de puro protesto social e político com intérpretes cada vez piores. Sabe-se que o PCP não quererá ser "um partido como os outros", comportando esta expressão no glossário comunista ortodoxo um sinónimo de desprezo pela prática política e pelo vazio ideológico que a tais partidos atribui. Mas será sustentável para o PCP continuar a olhar para a vida política, como se a sua vocação natural não fosse, tal como a dos outros, a conquista do poder pelos mesmos meios e formas que os outros, ou seja, através do sufrágio universal? Com tudo o que isso pode implicar de negociação política, de compromisso democrático, de contributo para concentrar a política naquilo que ela tem de fundador e originário, que é o serviço à comunidade e não a grupos, personalidades influentes ou aparelhos partidários. Será sustentável continuar a olhar a política pelos velhos códigos estalinistas, sem perceber que a queda do Muro foi o fim de uma utopia derrotada pela marcha imparável da História e dos povos e não a "traição" de Gorbatchov ao paraíso íntimo dos comunistas? P.S. - O dr. Pacheco Pereira alude no seu artigo de ontem a uma "campanha política" do PÚBLICO em relação ao PCP. Sobre esta acusação nem sequer há resposta a dar. Só um reparo: quando descobrir novas "campanhas", é melhor procurar argumentos e exemplos que tenham correspondência com a realidade. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Crise adiada no PCP

Odete Santos sobe ao comité central

EDITORIAL A páginas tantas

Como funciona o congresso

Números de um partido em queda

Os cunhalistas

COMENTÁRIO O PCP e o poder

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Sexta-feira, 8 de Dezembro de 2000 O XVI Congresso do PCP vai realizar-se em condições políticas verdadeiramente perturbadoras. A liturgia cumprir-se-á em toda a sua dimensão visual, mas no quadro de uma atitude política fechada, agreste e defensiva, esmagando aquilo que um debate tem de profundamente vital que é o espírito de contraditório e de uma análise crítica verdadeiramente livre. Para a história vai passar o triunfo de um chamado "sector cunhalista" face aos ditos "renovadores". O reduto dos "duros", intransponível por qualquer avanço que resulte do mero combate democrático, vai ficar na Soeiro Pereira Gomes, benzido pela acrimónia cada vez mais indisfarçada de uma liderança puramente formal e virtual. Carlos Carvalhas, ao deixar-se arrastar para a barricada dos que vencem pelo domínio e manipulação das regras internas do centralismo democrático, deixou de ser um referencial de equilíbrio dentro do PCP e não percebeu que, ao distanciar-se dos "renovadores", diminui inexoravelmente a sua capacidade de relacionamento político com estratos mais alargados do eleitorado. É hoje, mais do que nunca, um líder sem vontade própria, teleguiado e comandado por aqueles que fazem da vida interna do PCP um ritual secreto de obediência à vontade de um chefe supremo. Hoje, mais do que nunca também, o PCP está em risco de se transformar numa espécie de maçonaria marxista-leninista. De resto, perguntar-se-á: porque é que existe ainda, mais de uma década depois da queda do Muro de Berlim e do comunismo, um partido que permanece irredutível na sua barricada ideológica, nos seus dogmas e, até, nos seus ícones e palavreado revolucionário? Será por manter essa fidelidade a uma identidade anacrónica que o PCP evita a diluição numa forma de fazer política hoje em dia igual por todo o lado? Recuemos no tempo. Naqueles anos da revolução de 1974 e, sobretudo depois do 25 de Novembro de 1975, quando ruiu em toda a linha a utopia revolucionária de instalar em Portugal um regime de tipo soviético, o que sobrou para o PCP na sociedade portuguesa? Nos primeiros tempos viveu entalado entre uma extrema-esquerda pujante e uma direita que começou a ter condições de promover a reinstitucionalização do seu poder ao nível do aparelho de Estado. De braço dado com o PS, alguns sectores mais conservadores foram-se progressivamente instalando no Estado. Por volta dos finais do início dos anos 80 a democracia portuguesa "normalizava-se" com uma abertura progressiva à lógica do mercado e uma desideologização que se instalou durante as maiorias absolutas de Cavaco Silva. A caminhada do regime para o centro e a prosperidade de uma pequena e média burguesia urbana, porém, não eliminava uma certa revolta latente na sociedade, nas suas franjas - muito numerosas e sobretudo concentradas nas periferias das cidades -, que ficavam de fora do enorme manjar das verbas comunitárias, que continuavam a viver de pensões miseráveis ou a ter uma vida muito pesada, a tal vidinha que passa pela ponte. O ensino democratizou-se, mas hoje começamos a viver o reverso desse inebriamento, com uma iliteracia galopante e problemas sérios no mercado de trabalho, onde cresce o desemprego de licenciados. A agricultura - esse mundo rural abandonado e desprezado por Lisboa e Bruxelas onde o PCP durante décadas foi buscar a sua força - é hoje uma federação de descontentamentos sociais e económicos. Enfim, o PCP continuou a ter por estes vinte anos uma sociedade portuguesa bastante receptiva à dimensão de protesto que fertiliza o seu discurso e a sua prática. Perguntar-se-á, então e de novo: os comunistas portugueses, face a um novo quadro sócio-económico, modernizaram o seu projecto? Pois foi exactamente isso que não aconteceu. O famoso "centralismo democrático" não só sobreviveu, como se transformou num monstro que à mais leve ameaça tira as garras para fora e tenta decepar quem se lhe meta à frente. O PCP foi-se transformando num partido reduzido à lógica "funcionalista" e burocrática do seu próprio aparelho que tem hoje uma implantação progressivamente diminuta nos velhos bastiões operários e camponeses. Acentuaram-se as contradições entre a capacidade de leitura da realidade social e económica que alguns dos seus deputados preservaram e uma organização que ficou agarrada aos dogmas ideológicos e à pura manutenção do poder. Se algum projecto os comunistas tiveram nos últimos quinze anos, para lá da gestão de pura sobrevivência dos velhos arcaísmos ideológicos, foi aquele que o seu grupo parlamentar protagonizou, com um comportamento político e um padrão de competência técnica que marcaram os debates parlamentares, a elaboração de leis essenciais e, até, de algumas reformas, como a da segurança social. No Parlamento, o PCP não se limitou a uma função tribunícia; pelo contrário, assumiu na plenitude os mandatos que o povo lhe entregou e foi um referencial de confiança no funcionamento do sistema. Que partido de poder não gostaria de ter Octávio Teixeira, João Amaral ou um quadro como Edgar Correia num dos seus governos? E não foi a sua acção que aos poucos foi credibilizando aos olhos do eleitorado a liderança de Carlos Carvalhas? Ou será que alguém acredita que o abono de família essencial do PCP ainda é Álvaro Cunhal? Cunhal é importante, mas já não foi determinante nas últimas eleições, em que nem sequer fez campanha. Que protagonistas sobram, pois, para dar rosto a um projecto credível do PCP? Um grupo de cinzentos funcionários? E aí se coloca a questão de fundo: ao admitir uma experiência governativa em eventual coligação com o PS, o PCP corre o risco de diluição, de "social-democratização"? A questão, provavelmente, está um pouco mais ao lado. O PCP tem hoje alternativa a um caminho que o leve a ter de encarar de frente a questão do poder? Sem possuir os poros de respiração com a sociedade que tinha há uns anos atrás, o PCP não tem porventura outra escolha. O desafio está em debater isto, ou, pelo contrário, esperar paulatinamente pelo envelhecimento do seu eleitorado, agarrando-se a um perfil de puro protesto social e político com intérpretes cada vez piores. Sabe-se que o PCP não quererá ser "um partido como os outros", comportando esta expressão no glossário comunista ortodoxo um sinónimo de desprezo pela prática política e pelo vazio ideológico que a tais partidos atribui. Mas será sustentável para o PCP continuar a olhar para a vida política, como se a sua vocação natural não fosse, tal como a dos outros, a conquista do poder pelos mesmos meios e formas que os outros, ou seja, através do sufrágio universal? Com tudo o que isso pode implicar de negociação política, de compromisso democrático, de contributo para concentrar a política naquilo que ela tem de fundador e originário, que é o serviço à comunidade e não a grupos, personalidades influentes ou aparelhos partidários. Será sustentável continuar a olhar a política pelos velhos códigos estalinistas, sem perceber que a queda do Muro foi o fim de uma utopia derrotada pela marcha imparável da História e dos povos e não a "traição" de Gorbatchov ao paraíso íntimo dos comunistas? P.S. - O dr. Pacheco Pereira alude no seu artigo de ontem a uma "campanha política" do PÚBLICO em relação ao PCP. Sobre esta acusação nem sequer há resposta a dar. Só um reparo: quando descobrir novas "campanhas", é melhor procurar argumentos e exemplos que tenham correspondência com a realidade. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Crise adiada no PCP

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