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27-04-2001
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Vinte e cinco anos depois, o caso da Rádio Renascença (RR) e o papel que nele desempenharam os quatro padres que ali trabalhavam são uma ferida aberta. Dos três padres que ainda vivem, só um aceita aparecer publicamente a falar do caso e do apoio que então deram, até à sua saída, à luta dos trabalhadores. E o próprio presidente da administração da RR, Fernando Magalhães Crespo, prefere não falar do papel que os padres tiveram no processo. A história começou com a primeira greve do pós-25 de Abril de 1974 que aconteceu no país e terminou com a ocupação da emissora e com uma bomba mandada colocar pelo Conselho da Revolução (ver textos nestas páginas).

Do lado dos então trabalhadores da Renascença - incluindo o único padre que aceitou falar da história -, todos insistem em que o conflito começou por ser laboral e que a maioria dos trabalhadores era gente ligada sentimentalmente aos fundadores da rádio ou que, politicamente, se repartiria depois pelo PPD, PS e CDS. Do lado da administração e entre as vozes oficiais da Igreja, insiste-se na origem política do caso e na estratégia que, desde os primeiros dias, o Partido Comunista e a extrema-esquerda teriam para ocupar a estação.

Uma nebulosa paira ainda sobre muitos factos. Mas tudo começa no próprio dia 25 de Abril. À tarde - recorda Pedro Castelo, então noticiarista da RR -, já o então primeiro-ministro, Marcello Caetano, se entregara aos militares revoltosos, a Renascença insistia em fingir que, nas ruas ao lado, não estava a acontecer uma revolução. O padre Américo Brás, responsável pela gestão da emissora, entendia que ainda não se sabia "para que lado" cairiam as coisas... E os primeiros sons do que se passou no dia 25, recolhidos por Adelino Gomes, só na noite de 27 passaram na RR (ver caixa).

A 30 de Abril, Álvaro Cunhal chega a Lisboa. A reportagem feita por João Alferes Gonçalves é proibida por Américo Brás. O episódio "revoltou muito" as pessoas, como recorda o padre Lopes Morgado, franciscano capuchinho, que então trabalhava na estação.

Tinha sido o padre António Rego a convidar Morgado, e também Carlos Capucho, para trabalharem com ele e com Elói Pinho (no Porto) na informação religiosa da RR. Com autorização do patriarca, D. António Ribeiro, os quatro realizavam quatro programas que, nessa altura, procuravam um discurso diferente da Igreja na comunicação social, para além das missas e terços. Magalhães Crespo diz que, para o conselho de gerência nomeado em Julho, os padres Lopes Morgado e Carlos Capucho "não existiam", porque não eram nomeados directamente pelo patriarca, mas convidados pelo padre Rego.

Os padres não se limitavam, no entanto, a tratar de temas religiosos. Eram também destacados para cobrir acontecimentos da efervescente vida social e política de então. Lopes Morgado recorda-se de ter ido ao Parque Eduardo VII, em Lisboa, fazer a reportagem da primeira manifestação de feministas em Portugal com a célebre queima de "soutiens". Também acompanhou a manifestação do 1º de Maio e as eleições para a Constituinte, em Beja, em Abril de 1975.

Do conflito laboral...

A proibição da reportagem da chegada de Cunhal dá origem à primeira greve realizada em Portugal no pós-25 de Abril. Entre as 19h do dia 30 de Abril e as 2h do dia 1 de Maio, a emissora católica deixou de se ouvir. Na tarde desse dia, o padre António Rego vai à Buraca explicar a D. António Ribeiro o que se passa na estação.

Na véspera, como consequência imediata do protesto, o padre Américo Brás abandonara o lugar de gestor. Na sequência de diversos plenários de trabalhadores, surge uma proposta de protocolo para a emissora. No texto, prevê-se um regime de co-gestão e de participação dos trabalhadores nas decisões da empresa, a manutenção dos programas religiosos e a valorização do noticiário eclesial, bem como o respeito pela informação "verídica e objectiva".

O cardeal Ribeiro aceita o documento e a estação, enquanto espera pela entrada em funções de uma nova administração, passa a ser dirigida por um conselho de gestão de oito trabalhadores eleitos: padre António Rego (nomeado pelo patriarca também como responsável pela orientação católica da estação e pelos programas religiosos), Joaquim Pedro, Viriato Dias Bernardo, Pedro Castelo, João Alferes Gonçalves, Rolando Matias de Morais e Artur Estácio Branco.

O segundo acto do conflito viria pouco depois. No dia 7 de Julho, Fernando Magalhães Crespo, actual administrador executivo, é chamado pelo cardeal-patriarca, que o convida para gerir a emissora. "Disse ao patriarca que pretendia usar técnicas actuais de gestão", recorda ao PÚBLICO. A primeira medida foi a aplicação de testes psicotécnicos a um grupo de trabalhadores que a estação contratara entretanto para estagiar. Por entenderem que os testes seriam uma forma de controlar as opções ideológicas das pessoas - ainda para mais acabados de viver uma revolução -, os estagiários da estação recusam-se a fazer os testes.

Entre eles estava Jorge Simões, que hoje trabalha numa empresa de televisão. "Era uma tentativa de controlar as entradas" na estação, diz agora o antigo trabalhador da RR a propósito dos testes. Pedro Castelo, que hoje é relações públicas de uma empresa do ramo automóvel, acrescenta que a gerência nem sequer aceitou uma contra-proposta avançada por alguns, em relação aos testes: que estes fossem elaborados por dois psicólogos, um por cada um dos lados.

Magalhães Crespo afirma que, no início, a ideia dos testes é aceite pelos representantes dos trabalhadores. Nos primeiros tempos a seguir à posse do conselho de gerência, a 9 de Julho, predomina um ambiente de colaboração mútua, recorda. Isso traduz-se, entre outras coisas, na aceitação da proposta dos trabalhadores para o aumento dos salários. Depois, acrescenta, os trabalhadores mudam de opinião e passam a recusar os testes.

Sucedem-se as reuniões, muitas delas mediadas por representantes do Ministério do Trabalho, entre eles Carlos Carvalhas. Há avanços e recuos. Em 30 de Setembro de 1974, o conselho de gerência faz, num longo comunicado, o ponto de situação. A administração da RR reafirma a ideia de prosseguir o diálogo, mas diz que só a ela compete decidir a admissão de novos funcionários.

... à radicalização

Em Janeiro de 1975, uma reunião na Igreja de S. Mamede (Lisboa) confirma as posições, já então irreconciliáveis, com os padres a manterem-se ao lado dos trabalhadores (ver texto nestas páginas). Em Março, o padre Morgado lembra-se de ter estado em casa, doente, vários dias. "Havia comunicados sucessivos e percebi aí que a causa estava perdida." Em 27 de Maio de 1975, os trabalhadores ocupam a estação e os padres abandonam a RR, com um comunicado onde afirmam, basicamente, que não podem cumprir a sua missão de evangelizar com uma estação ocupada.

A radicalização era irreversível, com a extrema-esquerda a dar todo o apoio, perante algum incómodo do PCP. A emissão parte-se em duas, com os estúdios do Porto fiéis à hierarquia católica. Em 18 de Junho, uma manifestação a favor dos ocupantes da RR transforma-se em cerco ao patriarcado, e 400 católicos que fazem uma contra-manifestação são obrigados a refugiar-se no edifício. Em 13 de Julho, em Aveiro, realiza-se a primeira de várias manifestações de apoio às posições dos bispos, que contam com o apoio do PS, PPD, CDS e PPM. No dia 7 de Novembro, o Governo de Pinheiro de Azevedo e o Conselho da Revolução mandam colocar uma bomba no emissor da Buraca da RR, calando de vez aquela que se apresentava como a estação "ao serviço das classes trabalhadoras". No dia 2 de Dezembro de 1975, faz hoje 25 anos, Almeida Santos nacionaliza todas as rádios, com a excepção da RR, que devolve à hierarquia católica.

(Alguns factos e datas referidos nestas páginas foram retirados do livro "Para a História da Rádio Renascença (1974-75)", de A. Pereira Caldas, ed. Grifo; e do artigo "A Rádio Renascença na transição do regime: do 25 de Abril ao 25 de Novembro", de Nélson Ribeiro, a publicar na revista "Lusitania Sacra".)

Vinte e cinco anos depois, o caso da Rádio Renascença (RR) e o papel que nele desempenharam os quatro padres que ali trabalhavam são uma ferida aberta. Dos três padres que ainda vivem, só um aceita aparecer publicamente a falar do caso e do apoio que então deram, até à sua saída, à luta dos trabalhadores. E o próprio presidente da administração da RR, Fernando Magalhães Crespo, prefere não falar do papel que os padres tiveram no processo. A história começou com a primeira greve do pós-25 de Abril de 1974 que aconteceu no país e terminou com a ocupação da emissora e com uma bomba mandada colocar pelo Conselho da Revolução (ver textos nestas páginas).

Do lado dos então trabalhadores da Renascença - incluindo o único padre que aceitou falar da história -, todos insistem em que o conflito começou por ser laboral e que a maioria dos trabalhadores era gente ligada sentimentalmente aos fundadores da rádio ou que, politicamente, se repartiria depois pelo PPD, PS e CDS. Do lado da administração e entre as vozes oficiais da Igreja, insiste-se na origem política do caso e na estratégia que, desde os primeiros dias, o Partido Comunista e a extrema-esquerda teriam para ocupar a estação.

Uma nebulosa paira ainda sobre muitos factos. Mas tudo começa no próprio dia 25 de Abril. À tarde - recorda Pedro Castelo, então noticiarista da RR -, já o então primeiro-ministro, Marcello Caetano, se entregara aos militares revoltosos, a Renascença insistia em fingir que, nas ruas ao lado, não estava a acontecer uma revolução. O padre Américo Brás, responsável pela gestão da emissora, entendia que ainda não se sabia "para que lado" cairiam as coisas... E os primeiros sons do que se passou no dia 25, recolhidos por Adelino Gomes, só na noite de 27 passaram na RR (ver caixa).

A 30 de Abril, Álvaro Cunhal chega a Lisboa. A reportagem feita por João Alferes Gonçalves é proibida por Américo Brás. O episódio "revoltou muito" as pessoas, como recorda o padre Lopes Morgado, franciscano capuchinho, que então trabalhava na estação.

Tinha sido o padre António Rego a convidar Morgado, e também Carlos Capucho, para trabalharem com ele e com Elói Pinho (no Porto) na informação religiosa da RR. Com autorização do patriarca, D. António Ribeiro, os quatro realizavam quatro programas que, nessa altura, procuravam um discurso diferente da Igreja na comunicação social, para além das missas e terços. Magalhães Crespo diz que, para o conselho de gerência nomeado em Julho, os padres Lopes Morgado e Carlos Capucho "não existiam", porque não eram nomeados directamente pelo patriarca, mas convidados pelo padre Rego.

Os padres não se limitavam, no entanto, a tratar de temas religiosos. Eram também destacados para cobrir acontecimentos da efervescente vida social e política de então. Lopes Morgado recorda-se de ter ido ao Parque Eduardo VII, em Lisboa, fazer a reportagem da primeira manifestação de feministas em Portugal com a célebre queima de "soutiens". Também acompanhou a manifestação do 1º de Maio e as eleições para a Constituinte, em Beja, em Abril de 1975.

Do conflito laboral...

A proibição da reportagem da chegada de Cunhal dá origem à primeira greve realizada em Portugal no pós-25 de Abril. Entre as 19h do dia 30 de Abril e as 2h do dia 1 de Maio, a emissora católica deixou de se ouvir. Na tarde desse dia, o padre António Rego vai à Buraca explicar a D. António Ribeiro o que se passa na estação.

Na véspera, como consequência imediata do protesto, o padre Américo Brás abandonara o lugar de gestor. Na sequência de diversos plenários de trabalhadores, surge uma proposta de protocolo para a emissora. No texto, prevê-se um regime de co-gestão e de participação dos trabalhadores nas decisões da empresa, a manutenção dos programas religiosos e a valorização do noticiário eclesial, bem como o respeito pela informação "verídica e objectiva".

O cardeal Ribeiro aceita o documento e a estação, enquanto espera pela entrada em funções de uma nova administração, passa a ser dirigida por um conselho de gestão de oito trabalhadores eleitos: padre António Rego (nomeado pelo patriarca também como responsável pela orientação católica da estação e pelos programas religiosos), Joaquim Pedro, Viriato Dias Bernardo, Pedro Castelo, João Alferes Gonçalves, Rolando Matias de Morais e Artur Estácio Branco.

O segundo acto do conflito viria pouco depois. No dia 7 de Julho, Fernando Magalhães Crespo, actual administrador executivo, é chamado pelo cardeal-patriarca, que o convida para gerir a emissora. "Disse ao patriarca que pretendia usar técnicas actuais de gestão", recorda ao PÚBLICO. A primeira medida foi a aplicação de testes psicotécnicos a um grupo de trabalhadores que a estação contratara entretanto para estagiar. Por entenderem que os testes seriam uma forma de controlar as opções ideológicas das pessoas - ainda para mais acabados de viver uma revolução -, os estagiários da estação recusam-se a fazer os testes.

Entre eles estava Jorge Simões, que hoje trabalha numa empresa de televisão. "Era uma tentativa de controlar as entradas" na estação, diz agora o antigo trabalhador da RR a propósito dos testes. Pedro Castelo, que hoje é relações públicas de uma empresa do ramo automóvel, acrescenta que a gerência nem sequer aceitou uma contra-proposta avançada por alguns, em relação aos testes: que estes fossem elaborados por dois psicólogos, um por cada um dos lados.

Magalhães Crespo afirma que, no início, a ideia dos testes é aceite pelos representantes dos trabalhadores. Nos primeiros tempos a seguir à posse do conselho de gerência, a 9 de Julho, predomina um ambiente de colaboração mútua, recorda. Isso traduz-se, entre outras coisas, na aceitação da proposta dos trabalhadores para o aumento dos salários. Depois, acrescenta, os trabalhadores mudam de opinião e passam a recusar os testes.

Sucedem-se as reuniões, muitas delas mediadas por representantes do Ministério do Trabalho, entre eles Carlos Carvalhas. Há avanços e recuos. Em 30 de Setembro de 1974, o conselho de gerência faz, num longo comunicado, o ponto de situação. A administração da RR reafirma a ideia de prosseguir o diálogo, mas diz que só a ela compete decidir a admissão de novos funcionários.

... à radicalização

Em Janeiro de 1975, uma reunião na Igreja de S. Mamede (Lisboa) confirma as posições, já então irreconciliáveis, com os padres a manterem-se ao lado dos trabalhadores (ver texto nestas páginas). Em Março, o padre Morgado lembra-se de ter estado em casa, doente, vários dias. "Havia comunicados sucessivos e percebi aí que a causa estava perdida." Em 27 de Maio de 1975, os trabalhadores ocupam a estação e os padres abandonam a RR, com um comunicado onde afirmam, basicamente, que não podem cumprir a sua missão de evangelizar com uma estação ocupada.

A radicalização era irreversível, com a extrema-esquerda a dar todo o apoio, perante algum incómodo do PCP. A emissão parte-se em duas, com os estúdios do Porto fiéis à hierarquia católica. Em 18 de Junho, uma manifestação a favor dos ocupantes da RR transforma-se em cerco ao patriarcado, e 400 católicos que fazem uma contra-manifestação são obrigados a refugiar-se no edifício. Em 13 de Julho, em Aveiro, realiza-se a primeira de várias manifestações de apoio às posições dos bispos, que contam com o apoio do PS, PPD, CDS e PPM. No dia 7 de Novembro, o Governo de Pinheiro de Azevedo e o Conselho da Revolução mandam colocar uma bomba no emissor da Buraca da RR, calando de vez aquela que se apresentava como a estação "ao serviço das classes trabalhadoras". No dia 2 de Dezembro de 1975, faz hoje 25 anos, Almeida Santos nacionaliza todas as rádios, com a excepção da RR, que devolve à hierarquia católica.

(Alguns factos e datas referidos nestas páginas foram retirados do livro "Para a História da Rádio Renascença (1974-75)", de A. Pereira Caldas, ed. Grifo; e do artigo "A Rádio Renascença na transição do regime: do 25 de Abril ao 25 de Novembro", de Nélson Ribeiro, a publicar na revista "Lusitania Sacra".)

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