O testamento ou a despedida de Cunhal?

11-12-2000
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EDITORIAL

O Testamento Ou a Despedida de Cunhal?

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2000 Na década de 40 e, depois, na década de 60, Álvaro Cunhal teve de lutar dentro do PCP para impor a sua orientação, sempre contra "desvios de direita" e as tendências que pugnavam por uma aproximação do PCP a outras forças democráticas. De ambas as vezes a sua linha impôs-se e as posições defendidas por Júlio Fogaça - a outra figura maior do PCP - nesses anos foram derrotadas. Enquanto esteve preso, na década de 50, Álvaro Cunhal foi por uma vez desautorizado: no congresso de 1955 onde, apesar das missivas que enviou da prisão, seria aprovada a linha mais moderada de Fogaça. Nos sessenta anos em que desempenhou um papel crucial dentro do PCP, esse foi o único congresso que perdeu - e, até este fim de semana, o único a que faltou. Desta vez, porém, ainda não é certo que tenha ganho ou perdido. A mensagem que Álvaro Cunhal enviou ao XVI Congresso do PCP é, de certa forma, um documento extraordinário. Não pelo poder de análise nem pela retórica, mas pela demonstração de como é possível, no fim da vida e na viragem do século, regressar às formulas e aos mitos mais tradicionais do imaginário comunista. Desde as primeiras palavras - em que cita a "campanha anticomunista" para permitir um cerrar de fileiras - até às últimas frases - em que emocionalmente se vira para a "bandeira vermelha com a foice e o martelo" - o velho líder procura recolocar o partido no seu lugar de partido revolucionário, afastando-o das tentações de passar a ser um partido institucional respeitador da "cidadania". A passagem crucial da sua mensagem é mesmo quando ataca o conceito de cidadania por englobar "os Melos, os Espírito Santo, os Belmiros" e lembra que eles são exploradores. Isto é, o momento crucial da mensagem é quando regressa ao princípio, muito anos 30 - a década da formação comunista de Cunhal -, da "classe contra classe". É este olhar que fornece, na sua linha de pensamento, a legitimidade ao PCP como vanguarda da classe operária, partido imbuído de uma "missão histórica" que lhe confere legitimidade. Ora a verdade é que não é esse o olhar de Carlos Carvalhas - e isso percebeu-se nas duas únicas vezes que usou da palavra, a abrir e a fechar o congresso. Ao longo dos muitos meses que durou o debate preparatório deste congresso, Carlos Carvalhas pareceu sempre um homem demasiado enleado em compromissos e demasiado tolhido pelo seu estilo cinzento e consensual para ter mão num partido em vias de implosão. Primeiro, deixou que Álvaro Cunhal - derrotado numa reunião do Comité Central - viesse para a estrada fazer campanha contra a "socialdemocratização" do partido sem reagir a iniciativas que o próprio Cunhal designaria de fraccionistas. Depois, quando os adversários das teses do "Novo Impulso" recomeçaram a ganhar peso, não foi capaz de segurar muitos dos quadros que lhe eram mais próximos e viu-os afastarem-se uns após outros. Finalmente, após a desgraçada prestação na Festa do "Avante", quando deixou que fosse José Casanova a marcar o terreno político, julgou-se que se tinha rendido. Afinal, Carvalhas procurava não apenas sobreviver como manter alguma margem de manobra. De alguma forma conseguiu-o. Dos novos órgãos dirigentes do PCP saírem muitos dos militantes que, nos últimos anos, tinham dado corpo às novas políticas que suscitaram a reacção de Cunhal e dos que seguem as suas ideias - mas não saíram todos e entraram outros. Ao contrário do que sucedeu noutros momentos e noutros congressos, o secretário-geral não procedeu a uma "depuração" dos órgãos de direcção, antes se empenhou em convencer muitos que gostariam de sair a ficarem. E muitos dos que neste debate perderam a batalha das teses não desistiram ainda do PCP. Como Octávio Teixeira disse ontem ao PÚBLICO, as notícias da sua morte eram manifestamente exageradas. Outros poderiam dizer o mesmo. Os milhares de militantes do PCP que enchiam o Pavilhão Atlântico que se levantaram em êxtase para aplaudir a mensagem de Cunhal - muitos com as lágrimas nos olhos - fazem contudo parte de um partido que já não é bem o partido de Cunhal. Um partido onde já surgem, com expressão, votos contra e abstenções, não apenas entre os militantes de base mas também entre os que integram os órgãos recém-eleitos. Nos órgãos máximos de direcção o peso dos que se envolveram na renovação polarizada pelo documento "Novo Impulso" é hoje menor, mas isso pode ser transitório. Alguns dos que agora se afastaram tinham sido dos mais duros contra os que haviam afastado no início dos anos 90, o que é um sinal de que as coisas mudam. E um sinal de que muito ficou adiado para o próximo Congresso já que Carvalhas impediu, neste conclave, o esmagamento da minoria. Mais: fez questão de falar diferente de Cunhal, se bem que apenas nas entrelinhas e para os mais atentos. Por isso a mensagem da o líder histórico dos comunistas pode não ter sido o testamento sagrado legado a um partido construído à sua imagem e semelhança. Poder ter sido mais uma despedida. Como em 1955, Álvaro Cunhal pode não ter ganho o segundo congresso onde não esteve presente. O PCP já não é o que era. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE PCP com paredes de vidro

Citações

EDITORIAL O testamento ou a despedida de Cunhal?

Renovadores perdem poder

Comissão política

Homossexualidade agita congresso

"A notícia da minha morte é um pouco exagerada"

PCP, fundador do regime democrático

Diário heterodoxo do congresso

Dos 16 aos 85 anos

Bastidores

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Não pelo poder de análise nem pela retórica, mas pela demonstração de como é possível, no fim da vida e na viragem do século, regressar às formulas e aos mitos mais tradicionais do imaginário comunista. Desde as primeiras palavras - em que cita a "campanha anticomunista" para permitir um cerrar de fileiras - até às últimas frases - em que emocionalmente se vira para a "bandeira vermelha com a foice e o martelo" - o velho líder procura recolocar o partido no seu lugar de partido revolucionário, afastando-o das tentações de passar a ser um partido institucional respeitador da "cidadania". A passagem crucial da sua mensagem é mesmo quando ataca o conceito de cidadania por englobar "os Melos, os Espírito Santo, os Belmiros" e lembra que eles são exploradores. Isto é, o momento crucial da mensagem é quando regressa ao princípio, muito anos 30 - a década da formação comunista de Cunhal -, da "classe contra classe". É este olhar que fornece, na sua linha de pensamento, a legitimidade ao PCP como vanguarda da classe operária, partido imbuído de uma "missão histórica" que lhe confere legitimidade. Ora a verdade é que não é esse o olhar de Carlos Carvalhas - e isso percebeu-se nas duas únicas vezes que usou da palavra, a abrir e a fechar o congresso. Ao longo dos muitos meses que durou o debate preparatório deste congresso, Carlos Carvalhas pareceu sempre um homem demasiado enleado em compromissos e demasiado tolhido pelo seu estilo cinzento e consensual para ter mão num partido em vias de implosão. Primeiro, deixou que Álvaro Cunhal - derrotado numa reunião do Comité Central - viesse para a estrada fazer campanha contra a "socialdemocratização" do partido sem reagir a iniciativas que o próprio Cunhal designaria de fraccionistas. Depois, quando os adversários das teses do "Novo Impulso" recomeçaram a ganhar peso, não foi capaz de segurar muitos dos quadros que lhe eram mais próximos e viu-os afastarem-se uns após outros. Finalmente, após a desgraçada prestação na Festa do "Avante", quando deixou que fosse José Casanova a marcar o terreno político, julgou-se que se tinha rendido. Afinal, Carvalhas procurava não apenas sobreviver como manter alguma margem de manobra. De alguma forma conseguiu-o. Dos novos órgãos dirigentes do PCP saírem muitos dos militantes que, nos últimos anos, tinham dado corpo às novas políticas que suscitaram a reacção de Cunhal e dos que seguem as suas ideias - mas não saíram todos e entraram outros. Ao contrário do que sucedeu noutros momentos e noutros congressos, o secretário-geral não procedeu a uma "depuração" dos órgãos de direcção, antes se empenhou em convencer muitos que gostariam de sair a ficarem. E muitos dos que neste debate perderam a batalha das teses não desistiram ainda do PCP. Como Octávio Teixeira disse ontem ao PÚBLICO, as notícias da sua morte eram manifestamente exageradas. Outros poderiam dizer o mesmo. Os milhares de militantes do PCP que enchiam o Pavilhão Atlântico que se levantaram em êxtase para aplaudir a mensagem de Cunhal - muitos com as lágrimas nos olhos - fazem contudo parte de um partido que já não é bem o partido de Cunhal. Um partido onde já surgem, com expressão, votos contra e abstenções, não apenas entre os militantes de base mas também entre os que integram os órgãos recém-eleitos. Nos órgãos máximos de direcção o peso dos que se envolveram na renovação polarizada pelo documento "Novo Impulso" é hoje menor, mas isso pode ser transitório. Alguns dos que agora se afastaram tinham sido dos mais duros contra os que haviam afastado no início dos anos 90, o que é um sinal de que as coisas mudam. E um sinal de que muito ficou adiado para o próximo Congresso já que Carvalhas impediu, neste conclave, o esmagamento da minoria. Mais: fez questão de falar diferente de Cunhal, se bem que apenas nas entrelinhas e para os mais atentos. Por isso a mensagem da o líder histórico dos comunistas pode não ter sido o testamento sagrado legado a um partido construído à sua imagem e semelhança. Poder ter sido mais uma despedida. Como em 1955, Álvaro Cunhal pode não ter ganho o segundo congresso onde não esteve presente. O PCP já não é o que era. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE PCP com paredes de vidro

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