Diário heterodoxo do congresso

11-12-2000
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Três dias no "maravilhoso lugar" ocupado pelos camaradas delegados

Diário Heterodoxo do Congresso

Por ANA SÁ LOPES

Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2000 A família comunista reuniu-se três dias no Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações, em Lisboa. O PÚBLICO tirou uns apontamentos para um diário, heterodoxo porque público. Sexta-feira, 8/12/2000 11h30 Filho simpático do capitalismo, o Pavilhão Atlântico vai abrigar o XVI Congresso do PCP. Saímos da catedral do consumo lavadinha que é o Centro Comercial Vasco da Gama para ir ao encontro dos militantes comunistas reunidos no "maravilhoso lugar" como lhe chamou António Andrez, responsável por Lisboa na direcção. "A Internacional" marca o arranque e é no punho erguido de Jerónimo de Sousa, esse ícone da militância operária, deputado durante vinte anos, que, na ausência de Álvaro Cunhal, meus heterodoxos olhos vão cair. Jerónimo de Sousa abandonou o blusão, está de casaco e gravata, e mau-grado essa ligeira heterodoxia, é no punho e na paixão de Jerónimo pelo canto d'' "A Internacional" que se reflecte parte do sentir oculto do PCP. Carvalhas não ergue o punho, Cunhal também não o fazia, mas não precisava. 13h 30 Está por provar a superioridade moral dos comunistas, mas confirmadas ficam as superioridades organizativa e mitológica. Por exemplo: logo no início dos trabalhos, depois de uma acesa discussão sobre os estatutos (onde foram imediatamente abertas as hostilidades entre o sector renovador e os herdeiros da vanguarda operária), votou-se o horário do Congresso. Em nenhum partido se vota o horário, em nenhum partido - como, de resto, aqui e além no país - os horários são respeitados. No PCP, vota-se (o que foi feito aliás por unanimidade) e respeita-se escrupulosamente o mandato do voto. Não há noitadas nem madrugadas, vai toda a gente jantar a horas e é impossível acontecer o que se passou no último Congresso do PSD, em Viseu, quando, perto das seis da manhã ainda havia gente a falar - mas muito pouca a ouvir e ninguém atentamente. Ao contrário dos outros partidos, não há um presidente de Mesa: os trabalhos são conduzidos rotativamente, por cada sessão é responsável "um camarada". Mas também não há moções alternativas (apenas propostas de emenda à moção única) nem candidaturas alternativas, como nos outros. Andrez apresenta as delegações dos partidos irmãos: é o delírio quando chega a vez do partido de Fidel Castro, um contraste com a frieza com que o eurocomunismo, que não tem heróis e conta com algumas "traições", é recebido pela sala. Entra Carvalhas, que dá uma no cravo, outra na ferradura (o que agrada a todos, não agradando totalmente a ninguém) e que desanca na comunicação social para gáudio do Congresso. Carvalhas está preocupado, fala dos "factores que causaram perturbação e inquietação no colectivo partidário", dos "procedimentos, atitudes e palavras que também pesam, magoam e criam distância". Diz que não avaliza "escritos e leituras simplistas de um processo complexo sobre derivas social-democratizantes ou derivas sectárias e obreiristas". Poderá estar Carlos "rolha" Carvalhas para o PCP como esteve Costa Gomes para o país? 18h30 Já o histórico militante Carlos Aboim Inglez tinha pedido para se "elevar a consciência de classe das mais amplas massas", integrando o PCP numa "ampla frente mundial anti-imperialismo", quando se anuncia a saudação de Álvaro Cunhal. É o primeiro Congresso onde Cunhal não está depois de há dez anos ter cedido (mas não a qualquer preço) o cargo de secretário-geral a Carvalhas. Ao velho líder o tempo tolda o passo, mas não o pensamento e a autoridade. Tinha dito uma vez Carvalhas que não deveria ser invocado o nome de Cunhal pela sua idade e doença. Responde Cunhal à letra: "A nossa convicção comunista assenta em realidades objectivas, que alguns procuram negar e esquecer: a divisão da sociedade em classes, a luta de classes (...) Não são só ideias. São realidades". Não cede o velho líder ao "incorrecto conceito de cidadania [que] pretende ocultar estas realidades. Os Melo, os Espírito Santo, os Belmiros são cidadãos". No binómio capitalista, Belmiro substitui agora Champalimaud. Alguma coisa vai mudando. Nem a tragicomédia em que o actor Morais e Castro transformou a leitura (distanciando-se do microfone cada vez que havia palmas, deixando o vazio à figura de Cunhal) iludiu a força da "saudação". Aos 90 anos ainda manda o velho líder, que deixou muitos filhos. O Congresso inflama-se. "Confio que as nossas gerações manterão bem alto a bandeira da foice e martelo". Pode Cunhal confiar sem medo: pelo que se está a ver agora, no dia em que as duas correntes se confrontarem abertamente, o pêndulo balançará para os seus herdeiros. À pergunta sobre o que é o marxismo-leninismo alguns delegados não querem responder. Um jovem confessa que "não está preparado" e manda-me contactar "uma pessoa de mais idade" que o assunto "é um bocado complexo". Alberto Fialho, de Aljustrel, tem mais idade. Diz que "a ciência económica descoberta por Marx que tornou claro o aproveitamento da mais-valia dos meios de produção" foi "assumida e desenvolvida por Lenine", mas sabe que "muita gente tem hoje dificuldade em perceber essa ferramenta criada por Marx". Não é o seu caso, evidentemente, que "não vai em cantos de sereias" renovadores que querem acabar com as referências primeiras nos Estatutos do PCP. "Veja-nos como um partido diferente". Vejo, vejo. João Amaral vem dizer que "mudou o país" e que o PCP vive dias difíceis. O mais conhecido dos renovadores actuais não é vaiado. Aliás, nenhum dos discursos contra a direcção (e houve vários) foi apupado. Isto parece mais democrático (ou, pelo menos, educado) do que é costume nos outros partidos. Sábado 12h30 O camarada da célula da Petrogal vem anunciar que quer o PCP marxista-leninista. Luísa Ramos, do sector de Transportes de Lisboa insurge-se contra "os camaradas que objectivamente criaram dificuldades ao partido" e dá conta que, na sua área, dos "efectivos e muito afectivos relacionamentos com os trabalhadores resultaram várias recrutamentos". Está aqui uma palavra-chave: afecto. A irmandade que une os camaradas, a simbologia da resistência, passa muitas vezes ao lado dos militantes mais institucionais. 18h A sala do Congresso é esvaziada para voltar novamente a encher-se apenas com os delegados. O Comité Central é eleito à porta fechada, porque não se vai discutir pessoas em público. Mas alguém gosta de lavar a roupa suja fora de casa? Domingo, 10/12/2000 12h Parece que a noite foi agitada. Saíram vários renovadores, mas ficou na direcção uma pessoa que se absteve nas Teses, que é o documento orientador do partido. O caso não é só inédito no PCP: em nenhum partido é possível alguém que se abstém na moção de orientação passar a integrar o principal órgão dirigente. Estes comunistas estão loucos. No bar, bebe-se tinto a 150 escudos o copo para desanuviar a manhã. A única vaia verdadeiramente forte do Congresso acabou de ser lançada contra os dois delegados que se abstiveram no voto de solidariedade para com os palestinianos. 14h A quantidade de votos contra e de abstenções com que foram eleitos os órgãos nacionais do PCP marcaram o fim do unanimismo. Carlos Carvalhas encerra um Congresso com um discurso arrasadoramente renovador, ao qual já nenhum dos "duros" poderá responder porque entretanto já se está a dar vivas ao PCP e a cantar o "Avante camarada". Mas como pode o povo comunista aplaudir com a mesma paixão José Casanova ou Jerónimo de Sousa e Carlos Carvalhas versão fim de Congresso? É assim que se vê a força do PC? O sol brilhará (mesmo) para todos? A política leninista de Carlos Carvalhas de um passo atrás e dois à frente, que às vezes se transforma em dois atrás e um à frente, durará até quando? Antes do hino nacional, o Congresso volta a erguer-se com "A Internacional". Mas porque diabo João Amaral, comunista desde 1967, diz que não sabe de cor a letra d'' "A Internacional"?! Ana Sá Lopes OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE PCP com paredes de vidro

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Carvalhas não ergue o punho, Cunhal também não o fazia, mas não precisava. 13h 30 Está por provar a superioridade moral dos comunistas, mas confirmadas ficam as superioridades organizativa e mitológica. Por exemplo: logo no início dos trabalhos, depois de uma acesa discussão sobre os estatutos (onde foram imediatamente abertas as hostilidades entre o sector renovador e os herdeiros da vanguarda operária), votou-se o horário do Congresso. Em nenhum partido se vota o horário, em nenhum partido - como, de resto, aqui e além no país - os horários são respeitados. No PCP, vota-se (o que foi feito aliás por unanimidade) e respeita-se escrupulosamente o mandato do voto. Não há noitadas nem madrugadas, vai toda a gente jantar a horas e é impossível acontecer o que se passou no último Congresso do PSD, em Viseu, quando, perto das seis da manhã ainda havia gente a falar - mas muito pouca a ouvir e ninguém atentamente. Ao contrário dos outros partidos, não há um presidente de Mesa: os trabalhos são conduzidos rotativamente, por cada sessão é responsável "um camarada". Mas também não há moções alternativas (apenas propostas de emenda à moção única) nem candidaturas alternativas, como nos outros. Andrez apresenta as delegações dos partidos irmãos: é o delírio quando chega a vez do partido de Fidel Castro, um contraste com a frieza com que o eurocomunismo, que não tem heróis e conta com algumas "traições", é recebido pela sala. Entra Carvalhas, que dá uma no cravo, outra na ferradura (o que agrada a todos, não agradando totalmente a ninguém) e que desanca na comunicação social para gáudio do Congresso. Carvalhas está preocupado, fala dos "factores que causaram perturbação e inquietação no colectivo partidário", dos "procedimentos, atitudes e palavras que também pesam, magoam e criam distância". Diz que não avaliza "escritos e leituras simplistas de um processo complexo sobre derivas social-democratizantes ou derivas sectárias e obreiristas". Poderá estar Carlos "rolha" Carvalhas para o PCP como esteve Costa Gomes para o país? 18h30 Já o histórico militante Carlos Aboim Inglez tinha pedido para se "elevar a consciência de classe das mais amplas massas", integrando o PCP numa "ampla frente mundial anti-imperialismo", quando se anuncia a saudação de Álvaro Cunhal. É o primeiro Congresso onde Cunhal não está depois de há dez anos ter cedido (mas não a qualquer preço) o cargo de secretário-geral a Carvalhas. Ao velho líder o tempo tolda o passo, mas não o pensamento e a autoridade. Tinha dito uma vez Carvalhas que não deveria ser invocado o nome de Cunhal pela sua idade e doença. Responde Cunhal à letra: "A nossa convicção comunista assenta em realidades objectivas, que alguns procuram negar e esquecer: a divisão da sociedade em classes, a luta de classes (...) Não são só ideias. São realidades". Não cede o velho líder ao "incorrecto conceito de cidadania [que] pretende ocultar estas realidades. Os Melo, os Espírito Santo, os Belmiros são cidadãos". No binómio capitalista, Belmiro substitui agora Champalimaud. Alguma coisa vai mudando. Nem a tragicomédia em que o actor Morais e Castro transformou a leitura (distanciando-se do microfone cada vez que havia palmas, deixando o vazio à figura de Cunhal) iludiu a força da "saudação". Aos 90 anos ainda manda o velho líder, que deixou muitos filhos. O Congresso inflama-se. "Confio que as nossas gerações manterão bem alto a bandeira da foice e martelo". Pode Cunhal confiar sem medo: pelo que se está a ver agora, no dia em que as duas correntes se confrontarem abertamente, o pêndulo balançará para os seus herdeiros. À pergunta sobre o que é o marxismo-leninismo alguns delegados não querem responder. Um jovem confessa que "não está preparado" e manda-me contactar "uma pessoa de mais idade" que o assunto "é um bocado complexo". Alberto Fialho, de Aljustrel, tem mais idade. Diz que "a ciência económica descoberta por Marx que tornou claro o aproveitamento da mais-valia dos meios de produção" foi "assumida e desenvolvida por Lenine", mas sabe que "muita gente tem hoje dificuldade em perceber essa ferramenta criada por Marx". Não é o seu caso, evidentemente, que "não vai em cantos de sereias" renovadores que querem acabar com as referências primeiras nos Estatutos do PCP. "Veja-nos como um partido diferente". Vejo, vejo. João Amaral vem dizer que "mudou o país" e que o PCP vive dias difíceis. O mais conhecido dos renovadores actuais não é vaiado. Aliás, nenhum dos discursos contra a direcção (e houve vários) foi apupado. Isto parece mais democrático (ou, pelo menos, educado) do que é costume nos outros partidos. Sábado 12h30 O camarada da célula da Petrogal vem anunciar que quer o PCP marxista-leninista. Luísa Ramos, do sector de Transportes de Lisboa insurge-se contra "os camaradas que objectivamente criaram dificuldades ao partido" e dá conta que, na sua área, dos "efectivos e muito afectivos relacionamentos com os trabalhadores resultaram várias recrutamentos". Está aqui uma palavra-chave: afecto. A irmandade que une os camaradas, a simbologia da resistência, passa muitas vezes ao lado dos militantes mais institucionais. 18h A sala do Congresso é esvaziada para voltar novamente a encher-se apenas com os delegados. O Comité Central é eleito à porta fechada, porque não se vai discutir pessoas em público. Mas alguém gosta de lavar a roupa suja fora de casa? Domingo, 10/12/2000 12h Parece que a noite foi agitada. Saíram vários renovadores, mas ficou na direcção uma pessoa que se absteve nas Teses, que é o documento orientador do partido. O caso não é só inédito no PCP: em nenhum partido é possível alguém que se abstém na moção de orientação passar a integrar o principal órgão dirigente. Estes comunistas estão loucos. No bar, bebe-se tinto a 150 escudos o copo para desanuviar a manhã. A única vaia verdadeiramente forte do Congresso acabou de ser lançada contra os dois delegados que se abstiveram no voto de solidariedade para com os palestinianos. 14h A quantidade de votos contra e de abstenções com que foram eleitos os órgãos nacionais do PCP marcaram o fim do unanimismo. Carlos Carvalhas encerra um Congresso com um discurso arrasadoramente renovador, ao qual já nenhum dos "duros" poderá responder porque entretanto já se está a dar vivas ao PCP e a cantar o "Avante camarada". Mas como pode o povo comunista aplaudir com a mesma paixão José Casanova ou Jerónimo de Sousa e Carlos Carvalhas versão fim de Congresso? É assim que se vê a força do PC? O sol brilhará (mesmo) para todos? A política leninista de Carlos Carvalhas de um passo atrás e dois à frente, que às vezes se transforma em dois atrás e um à frente, durará até quando? Antes do hino nacional, o Congresso volta a erguer-se com "A Internacional". Mas porque diabo João Amaral, comunista desde 1967, diz que não sabe de cor a letra d'' "A Internacional"?! Ana Sá Lopes OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE PCP com paredes de vidro

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