Otelo: Havia um compromisso do PC com Melo Antunes

20-11-2000
marcar artigo

Otelo: Havia Um Compromisso do PC com Melo Antunes

Segunda-feira, 20 de Novembro de 2000 Adelino Gomes, Eduardo Dâmaso, Isabel Braga e Adriano Miranda (fotos) O PREC (Processo Revolucionário em Curso) colocou-os frente a frente. Otelo Saraiva de Carvalho, graduado em general, detinha, em teoria, o comando das mais poderosas unidades do exército português na região de Lisboa e recebia o apoio da esquerda comunista e de uma infinidade de partidos e movimentos da esquerda revolucionária; Ramalho Eanes, com a patente de tenente-coronel, contava com o Regimento de Comandos da Amadora e a maioria das unidades fora de Lisboa, o apoio dos Nove, dos partidos à direita do PCP e de dois pequenos partidos da extrema-esquerda, o MRPP e a AOC. Eanes venceu e foi eleito presidente por duas vezes. Otelo perdeu o comando do Copcon, conheceu a prisão e está a ser julgado por alegada autoria moral de numerosos crimes de sangue cometidos pelas FP-25. Ambos fundaram partidos e falharam. Eanes é general na reserva. Otelo é tenente-coronel. O PÚBLICO pediu-lhes que rememorassem passo a passo os acontecimentos daquele capítulo decisivo da história portuguesa de há 25 anos. P. - O que é para si o maior mistério do 25 de Novembro? Quem deu as ordens aos páraquedistas? R. - Há várias questões por esclarecer. O plano de operações dos Nove, executado pelo Eanes, foi-me dado a conhecer em Setembro [de 1975] pelo Vasco Lourenço que uma vez em casa do [comandante] Gomes Mota me disse: "encarregámos o Eanes de um plano de operações e se houver algum pretexto a malta cai em cima". P. - E o pretexto surgiu com a ocupação de bases pelos páraquedistas? R. - Segundo se lembram, costumava dizer-se na altura que o primeiro a saltar seria derrotado. P. - No 11 de Março também foi assim. Havia portanto um plano, mas o que é que faz saltar os páraquedistas? R. - Foi a minha saída da Região Militar de Lisboa. Os páras, que eram uma força bastante disciplinada e organizada, estavam ressaibiados com o chefe do Estado Maior da Força Aérea [Morais da Silva], e de repente, às cinco da manhã resolvem sair por aí fora e ocupam quatro bases aéreas. P. - Diz-se que a ordem partiu do Copcon. R. - Certo, parece que isso está provado. Mas quem deu a ordem? Eu não fui. P. - Tinha traidores a trabalhar consigo? R. -Sou apanhado de surpresa pela ocupação das bases. Quando fui ao Copcon - por onde passei para dar uma satisfação, porque sabia que estavam lá à espera de saber qual a resolução final do Conselho da Revolução sobre a Região Militar de Lisboa - eram umas quatro da manhã, tínhamos estado em reunião desde as duas da tarde. Está um maralhal, metido numa sala pequena, lá me sento no meio, rebentado, amargurado à brava. Anuncio que fica definitivamente o [então capitão, membro do Conselho da Revolução] Vasco Lourenço a comandar a Região Militar de Lisboa, continuando eu no COPCON. Imediatamente o [major da Força Aérea, ex-ministro do Trabalho] Costa Martins levanta-se e diz que os páras não vão aceitar isto, e vão ocupar as bases aéreas. E vira-se para um gajo que está à paisana, que eu nunca tinha visto, a fumar umas cigarradas, ao fundo da sala, e pergunta: "Não é verdade, ó Gui?" E o Gui diz: "é verdade sim, senhor major". O Tomé levanta-se e diz: "cheira-me aqui a golpada". E eu: "pois é, também me cheira a golpada". Chamei o Arlindo [Dias Ferreira, major piloto aviador, que funcionava na repartição de operações do COPCON, já falecido] a uma sala àparte. Entretanto chegou o Tasso [de Figueiredo, da polícia aérea e do Estado Maior, na época, colocado na repartição do informações do COPCON, hoje coronel na reserva e porta-voz do movimento dos oficiais das Forças Armadas ]. Lembro-me de perguntar o que era aquilo. O Arlindo diz-me: "está descansado que isto não é nada connosco". Fui para casa dormir. P. - Quem era o Gui? R. - Mais tarde vim a saber que o Gui era um primeiro-sargento da Força Aérea, era um homem fortemente ligado ao PCP. Acresce a isto que o Costa Martins, também ligado ao PCP, se tinha apresentado na manhã de 24 de Novembro no COPCON, munido de uma guia de marcha assinada pelo Morais da Silva, a dizer-me que estava colocado no COPCON. Eu quando precisava de qualquer coisa, dava-me ao luxo de requerer ao Estado-Maior respectivo a transferência deste ou daquele para desempenhar funções no COPCON. Mas não tinha requisitado o Costa Martins. Já na véspera olhara para aquilo e dissera: "o que estás aqui a fazer? Não te requisitei, não preciso de ti para nada." Já o Corvacho se me apresentou aqui há dois dias, munido de uma guia de marcha do Estado Maior do Exército! Sou aqui o refugo profissional!? Mas está bem, eu vou ver isso com o Morais da Silva e, como não tenho nada aqui para te dar agora, tu ficas em casa sossegadinho até eu contactar contigo". Isto na manhã do dia 24. Na madrugada de 25, está lá, no COPCON. Digo ao Arlindo: "sabes que há um golpe preparado pelos Nove para saltar ao mínimo pretexto, vê lá esta gaita, se não é o pretexto para desencadear o golpe da direita". E o Arlindo responde:'' não é nada disso, são lá coisas da Força Aérea, é a luta contra o Morais da Silva''. O Tasso agora diz que eu dei luz verde para os páras irem explicar a sua luta. Se eu tivesse dado uma ordem dessas, perguntei-lhe há dias, aquela malta deixava-me ir para casa, mesmo que eu não dormisse há uma semana, e só voltava ao COPCON porque tive um telefonema ao meio-dia?" E ele respondeu: "mas foi assim... ". Os Nove querem admitir que houve um golpe e que eles actuaram em contra-golpe, em contra-ataque, mas não conseguem encontrar bases de sustenção para essa tese. P. - Mas alguém deu a ordem. Terá sido então ele que a transmitiu? R. - O Tasso diz é que os Nove tinham a escuta montada e ouviram a ordem partir aqui do COPCON. Mas eu perguntei-lhe quem foi o gajo que disse ao Pessoa [capitão para-quedista] que havia luz verde para avançar. Ele respondeu: "Isso é uma questão muito secreta entre mim e o Arlindo". P. - Mas é o senhor que é acusado depois de ter dado a ordem. R. - Eu tenho este labéu. Álvaro Cunhal utilizou isso à brava e na campanha de 1976, o Octávio Pato [candidato presidencial do PCP, já falecido] disse um dia que eu tinha traído as massas no 25 de Novembro. P. - Mas o que fez quando lhe telefonam a dizer que há um contragolpe montado, que as bases estão a ser ocupadas, que os seus homens estão à espera que o COPCON faça alguma coisa? Durante essa tarde o plano de operações dos Nove avança, o então tenente-coronel Eanes dá ordens... R. - Mas avança já muito tarde, avança depois das quatro da tarde. P. - ... e o senhor desaparece para casa. R. - O telefonema do [Artur] Baptista [chefe do Estado Maior do COPCON] é cerca do meio-dia, eu como qualquer coisa e chego ao COPCON. Pergunto: "qual é a bronca?". Havia muito poucas notícias, sabia-se que as bases tinham sido ocupadas e pouco mais. Dizem-me que o general Costa Gomes está muito tenso, fez vários telefonemas a pedir para eu me apresentar rapidamente em Belém. Entretanto chega o Marques Júnior, diz-me que o Conselho da Revolução está reunido. Chego a Belém e o Costa Gomes pergunta-me se eu sei o que se passou. E diz-me: "O Costa Martins saíu daqui há cerca de uma hora, estou convencido de que o Costa Martins está metido nisto, ele tem muita influência nos sargentos". E diz-me que lhe fez uma proposta. "O gajo vai junto dos páras, diz-lhe para abandonarem aquilo que estão a ocupar, regressam o mais depressa possível a Tancos e amanhã eu e o Otelo vamos a Tancos, formamos aquela gente toda e eu anuncio que os páras deixam de estar sob a tutela da Força Aérea, passam ao exército e ficam directamente comandados pelo COPCON". Perguntou-me o que achava eu disto. Respondi: "porreiro, meu general, isso era uma vitória do caraças para os páras, era a demissão lógica do Morais da Silva que tinha extinguido os páras e não só a força não era extinta com passava para o comando central. Era uma vitória estrondosa." E diz o Costa Gomes: "estou à espera do Costa Martins". Mas o Costa Martins nunca mais apareceu. Mais tarde perguntei ao segundo sargento Reboxo porque é que os páras não tinham respondido à proposta do Costa Gomes. E ele diz: "Qual proposta?" Diz que essa proposta nunca foi feita. Fuzileiros ofereceram-se P. - O Costa Martins é o culpado? O que interessava ao Costa Martins não transmitir esse recado? R. - Não sei. O Costa Martins desapareceu da circulação e volta a aparecer em Cuba, ou em Angola, já não sei. P. -Então isto é um mistério para si ainda hoje? R. - Para mim, é. P. - Não lhe passa pela cabeça que o Costa Martins estivesse feito com os Nove? Essa actuação interessava a quem tinha um plano como aquele que veio a desencadear-se daí a umas horas, que é o avanço dos comandos sobre o GDACI e depois sobre a polícia militar. R. - Sem que haja qualquer reacção por parte dos pára-quedistas. Eu falei com pára-quedistas que me disseram que tiveram o próprio Jaime Neves na mira, no GDACI, podiam ter limpo o gajo e não dispararam um tiro. O Tasso diz-me: "A perspectiva que eu tenho é que os pára-quedistas, de facto, só queriam ir às unidades explicar a luta e tentar arregimentá-las para correr com o Morais da Silva, e manterem-se eles como força organizada". P. - Mas apesar de tudo, nas horas seguintes, chega a ser encarada a hipótese de conquistar os fuzileiros... R. - Era isso que eu estava a dizer: antes de ir para Belém, estava no COPCON e apresenta-se-me o comandante da força de fuzileiros do continente, e diz-me: "senhor general, os fuzos estão prontos a entrar em acção. Quais são as ordens que dá?" E eu disse: "nada, não estamos em situação de guerra civil. Se há uma atitude qualquer numa situação como esta rebenta uma bernarda do caraças. Não mexa uma palha enquanto não receber uma indicação". P. - Então quem o acusa de não ter feito nada tem razão neste sentido. O senhor teve possibilidades de, militarmente, conter... R. - Isso é o que eu estava a dizer há bocado. Ou eu, comandante militar, organizo e planeio uma acção, como foi no 25 de Abril, sabendo quais os objectivos a atingir e as forças com que conto e quais as forças do inimigo, com um plano de operações, ou não é assim, de repente. P. - Mas tinha a supremacia, definitivamente, depois dos fuzileiros se terem colocado ao seu lado. R. - Eu sabia que tinha os pára-quedistas comigo, porque os tinha apoiado claramente na luta contra o Morais da Silva, por causa da sua dissolução, tinha os "fuzos" pelo meu lado, mas sabia que não tinha comandos nessa altura, e que na divisão de forças que os Nove tinham tentado arregimentar para o seu lado, não contava com algumas unidades da Região Militar de Lisboa, tipo CIAC, e possivelmente EPI e EPC (o Salgueiro Maia no 25 de Abril, demorou, em viaturas muito maltratadas, cinco horas de Santarém a Lisboa; no 25 de Novembro demorou mais de 24 horas, vindo para aí abaixo a dez à hora). Os Nove já tinham arregimentado unidades para o lado deles e o Eanes fizera a contagem de espingardas - quantas e quais unidades estavam com eles, quantas estavam com o COPCON - eu não tinha nada. Mas será que a ocupação das bases aéreas pelos "páras" é congeminada pelos sargentos que estavam muito instrumentalizados pelo PCP? Será que há aqui uma manipulação do PCP para um plano operacional? O PCP a procurar antecipar-se aos Nove? 25 de Novembro interessava bestialmente ao PCP P. - Qual é a sua convicção ? R. - Não tenho conhecimento nenhum disso. Mas será possível a ocupação das bases ter sido feita com tamanha eficácia sem um plano estruturado?, perguntei eu ao Tasso. E ele disse-me: "Alguma vez estiveste com os pára-quedistas no Ultramar? É que eles são uma máquina do caraças, não é necessário haver alferes e capitães, os sargentos são bestiais." Mas mesmo assim. Os páras entram no ataque à bomba à Rádio Renascença, a 7 de Novembro, por ordem do Morais da Silva, e é a partir daí que as coisas aceleram muito contra ele. No dia 9 o Morais da Silva foi a Tancos procurar justificar a acção, é insultado, os páras declaram em comunicado que não reconhecem aquele chefe do Estado Maior da Força Aérea e é a partir daí que o Morais da Silva faz aquele despacho a dissolver a força de pára-quedistas. Será que os "páras" disseram: "chega, não nos enganam mais, fomos enganados a 11 de Março, fomos utilizados outra vez agora para rebentar à bomba com a Rádio Renascença a pretexto de que estava ocupada pelas massas revolucionárias, vamos demonstrar o que é a nossa eficácia e capacidade de actuação"? Na perspectiva do Tasso é isso que acontece. Que a partir daí eles fazem um plano para demonstrar eficácia - "estamos aqui para demonstrar quem somos e o que fazemos: somos sargentos,123 oficiais abandonaram a unidade e não precisamos deles para nada!" Durante algum tempo pensei no PCP por detrás disto tudo (não é que tenha posto completamente de lado essa hipótese), o PCP a querer alterar a correlação de forças que tinha perdido em Tancos em 5 de Setembro, quando o Vasco Gonçalves, tendo perdido o V Governo Provisório, não é aceite como Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, e que saem do Conselho da Revolução os chamados gonçalvistas, o Corvacho, o Ferreira de Sousa, o Macedo, e os Nove regressam em força. P. - Hoje já não pensa assim? R. -A mim parecia-me que o PCP tinha todo o interesse nisso, que estava a forçar o andamento para, perdido o Vasco Gonçalves, alterar a correlação de forças de novo a seu favor a nível do poder. É mais ou menos nessa altura que eles fazem aliança comigo, estamos a trabalha num plano de alfabetização do país através da CODICE, aproveitando a malha das unidades militares.... Começa a haver aqui uma ligação... P. - A verdade é que o PCP acaba legitimado por Melo Antunes a seguir ao 25 de Novembro. R. - Eu julgo que o PCP , que estava a perder terreno, é um facto, desde as eleições [na Constituinte o PCP teve 12,5 por cento contra 37,8 por cento do PS e 26,3 do PPD], quer manter o controlo das coisas e ter força no aparelho, seja através de elementos que lhe sejam afectos no Conselho da Revolução, seja no Governo. Os pára-quedistas podem servir-lhe para isso na medida em que podem afastar o Morais da Silva e colocar no lugar dele alguém afecto à linha PCP. Isso aí justificaria o chamamento de Melo Antunes - que está dentro do plano operacional dos Nove que atraíu a direita e a extrema-direita militar - ao PCP dizendo (e isto é especulativo): "vai passar-se isto, isto vai evitar um confronto entre militares e tudo se resolve facilmente se não houver intervenção de massas populares, isto vai travar o processo que está demasiadamente acelerado e encaminhar o país para o objectivo que era o objectivo do MFA no 25 de Abril, instalar aqui uma democracia representativa". P. - Há, efectivamente, uma reunião entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal, antes do 25 de Novembro... R. - ... aí uma semana antes, em casa de Nuno Brederode Santos. P. - Álvaro Cunhal, no seu livro mais recente, "As Verdades e as Mentiras do 25 de Abril", diz que aquilo que se passou a seguir ao 25 de Novembro "resultou da aliança não negociada, não acordada, não explicitada, mas aliança com o PCP, conjuntural e objectivamente existente de chefes das Forças Armadas, destacados participantes na preparação do golpe e na sua execução, mas defensores da continuação das liberdades da democracia política". Isto parece ir ao encontro da sua tese. R. - O 25 de Novembro interessava bestialmente ao PCP. O quebra-cabeças principal para o PCP na sua actuação no terreno eram de facto os esquerdistas - a esquerda revolucionária, o PRP e o MES - que galvanizavam as comissões de trabalhadores e fugiam ao controlo do PCP. Uma vez tive um confronto com o Vasco Gonçalves, porque eu tinha permitido uma manifestação selvagem, porque não era organizada pela Intersindical, contra a Nato. A acção no terreno escapava ao PCP, era motivado a maior parte das vezes pelos esquerdistas. Se quem lhes dava a safa era o COPCON, se o COPCON desaparecesse, o PCP ficava aliviado. P. - Mas os militares da direita e moderados que participaram n 25 de Novembro fizeram-no para conter o PCP e não a extrema-esquerda. O Jaime Neves diz que o inimigo número um é o PCP e por isso ele diz a Ramalho Eanes que os comandos não estão satisfeitos. R. - Isso é a direita e a extrema-direita a falar através de Jaime Neves. Ilegalizar o PCP era um erro gravíssimo, o PCP passava à clandestinidade e obrigava à criação de uma nova polícia política, o que era um regresso ao 24 de Abril. O Melo Antunes e os Nove tiveram toda a razão, interessava à democracia manter o PCP enquadrado e activo. P. - E o senhor está de acordo com isso, deu uma entrevista [ao "Expresso", em Abril passado] em que diz que o 25 de Novembro foi a reposição do espírito inicial do 25 de Abril. R. - Eu não digo isso, digo é que os meus camaradas do Grupo dos Nove têm toda a razão quando dizem que o 25 de Novembro foi realizado com o sentido de regressar à pureza inicial do 25 de Abril. Só isso, porque o programa político do MFA apontava para isso. O homem não é um ser imutável, as circunstâncias podem obrigá-lo a mudar. Eu não vivi no gabinete como viveram o Melo Antunes e o Vasco Lourenço, em conspiração permanente. Tive todos os dias sozinho no COPCON, trabalhadores a porem-me problemas que iam desde o comercial ao económico, passando pelos problemas culturais. Por exemplo, as primeiras ocupações de terras no Alentejo: lembro-me que o Vítor Alves, em Belém, antes de uma reunião do Conselho da Revolução, veio ter comigo a dizer "eh pá, grande bronca, tens que actuar imediatamente". E mostra-me a última página de "A Capital", com uma fotografia muito bonita, a negro, e recortado no horizonte um homem de boné e caçadeira ao ombro, com o título "Ocupação de terras no Alentejo". Os trabalhadores vieram falar comigo ao COPCON, estavam à rasca, a dizer que no Alentejo se ouvia falar há mais seis meses que ia haver uma reforma agrária que nunca mais aparecia, e os latifundiários estavam a deixar as terras com mato e a levar a maquinaria agrícola e o gado para Espanha, para vender tudo ao desbarato, e que quando houvesse ocupação de terras as terras estariam incultas. Isto foi em Fevereiro de 1975. "Para quê dar-nos a esperança da reforma agrária, se depois vem a GNR e nos tira de lá?", perguntava o trabalhador. E eu disse: "ocupem as terras". E prometi que no dia seguinte falaria com o capitão da GNR que todos os dias ia ao COPCON para que desse indicação no comando para que deixassem de actuar contra os trabalhadores. "Têm as vossas caçadeiras e ocupem as terras", disse eu... Aliança Povo-MFA era a Bíblia P. - Portanto, estava a par do que os Nove e os seus aliados pretendiam. Porque é que não actuou para os impedir? R. - Impedir como? P. - Militarmente. R. - Eu tinha que reconhecer que a esmagadora maioria dos meus camaradas estava contra mim, estava contra as ideias da democracia directa e do poder popular que ficaram consubstanciadas na documento da Aliança Povo-MFA, que nem sequer tinha sido elaborado pelo COPCON nem por mim, foi produto do Grupo Dinamizador do Exército chefiado pelo [hoje oficial general na reserva] Pedro Pezarat Correia, e que foi aprovado em assembleia geral do MFA. Eu aderi àquilo inteiramente, então isto é a Bíblia. Ainda continuo a bater-me por aquilo que ali está. O Melo Antunes não concordava e tive o prazer de ler recentemente o que ele escreveu para o livro de Gomes Mota, em que se refere exactamente a essa conversa comigo, a dúvida que eu tinha entre a democracia directa que eu advogava e aquilo que ele considerava não possível de concretizar. A democracia representativa não serve inteiramente os interesses do povo português, mas a democracia directa também não. Uma vez o Vítor Alves convidou-me para jantar e disse-me: "Nós, os Nove, tivémos sempre uma tranquilidade muito grande em relação a ti, porque te conhecíamos. E embora tu não tivesses assinado o documento dos Nove, sabíamos que serias incapaz de te virar contra nós. Agora se tinhas a perspectiva de que era importante bateres-te até à morte pela democracia directa, tinhas que ter tido a coragem de nos encostar à parede, a mim, ao Melo Antunes, ao Garcia dos Santos e aos outros, e teres fuzilado a malta toda, assim tinhas o campo aberto". P. - Nunca lhe passou isso pela cabeça? R. - Eu disse ao Vítor Alves: "mas tu és parvo?" P. - Naquele dia 25 de Novembro, chegou a pensar em aproveitar a oferta dos fuzileiros? R. -Eu não, pelo contrário. Quando saio do COPCON para ir ter com o Costa Gomes é na perspectiva de me ligar ao Costa Gomes para impedir qualquer contragolpe. Estava eu em Belém já... P. - Estava em Belém detido. R. - Não, detido não. Estava lá. P. - Mas os seus homens estavam à sua espera no COPCON. R. - Quem estava no COPCON era o Varela Gomes, muito ligado ao PCP. P. - Mas há pessoas, como o Dinis de Almeida, que aliás veio a cortar relações consigo, que disseram que lhes faltou o comando. R. - Não faltou nada, eu tinha a consciência tranquilíssima porque nunca assumi compromissos com essa gente (ele não fala comigo, eu não lhe falo, não me interessa). Ele estava como segundo comandante do RALIS e resolve à papo seco, sem receber ordem de ninguém, ir apoiar os páras em Monsanto. Quem lhe deu essa ordem, isso fazia parte de algum plano? Porque é que ele não ficou sossegadinho no RALIS? Porque é que ele, o Campos Andrada e o Tomé [estes dois comandantes da Polícia Militar] não acataram a ordem que veio do Costa Gomes a dizer que todas as unidades da Região Militar de Lisboa passavam a estar às suas ordens? P. - E porque é que não fez esses contactos a partir de Belém? Por exemplo, telefonando? R. - Eu não fazia nenhuma ideia do que eles estavam a fazer. A única mensagem que eu recebo em Belém, o único pedido de ordem é do Rosado da Luz, hoje coronel na reserva e economista, que comandava o Forte de Almada. O gajo telefona-me a dizer: "há aqui mais de dez mil gajos da Lisnave e da Setenave, estão aqui a forçar os portões, querem armas, o que é que eu faço, abro-lhes os portões, dou-lhes armas?". E eu disse: "nem um canivete, não lhes dás nem um canivete, se fazes isso desancadeias uma guerra que ninguém consegue travar". P. - Em Belém, sentia-se como um dos homens que estavam a vencer ou um dos que estavam a ser derrotados? R. - Uma das coisas que tenho que dizer é que não me encarem a mim vencido ou derrotado em nada. Uma pessoa é vencida quando perde uma aposta ou quando entra numa batalha ou numa guerra e se rende. Eu não entrei em batalha nenhuma, apenas discuti ideias até ao limite possível. Entrei em confronto sim com o Morais da Silva, a quem não reconheço categoria de qualquer espécie (todo o percurso, as cambalhotas que dá em poucos meses, e no 25 de Novembro). Os meu camaradas não me meteram no golpe, ninguém me perguntou podes fazer isto ou aquilo no COPCON... P. - Consideravam-no um adversário. R. - Possivelmente, mas eu, com o meu espírito de lealdade, estive praticamente a assistir, como tinha acontecido na discussão de um documento-síntese entre o documento do COPCON e o documentos do Nove (por parte dos Nove estiveram Vitor Crespo e o Vasco Lourenço, por parte do COPCN estavam o Rosado da Luz e o Arlindo). Porquê? Porque eram os meus gajos, e eu tinha que estar com ele. P. - Mas em consequência da acção militar do 25 de Novembro, o que acontece é que a unidade fundamental que o senhor comandava acaba e as forças políticas com as quais o senhor se identificava mais, da esquerda revolucionária, foram derrotadas. R. - Para já eu não comandava unidade nenhuma, o COPCON era um órgão do Estado-Maior General das Forças Armadas. P. - Mas era uma importante força militar... R. - A partir do momento em que a esmagadora maioria dos meus camaradas, que tinham feito comigo o 25 de Abril consideraram que aquilo não era o caminho a seguir, tomam posições, articulam um comando operacional do qual eu estou excluído... P. - Mas soube isso à posteriori? O que o surpreendeu foi haver facções dentro do COPCON? R. - Não, os Nove abriram claramente o jogo, foram recolher assinaturas em todas as unidades do país, a esmagadora maioria dos oficiais que lá estavam, mesmo de direita e de extrema-direita, tinham assinado o documento. Estavam todos com os Nove. Eu discuti isto com o Baptista e disse: "isto está perdido, vamos lá a ver se conseguimos aguentar isto até à independência de Angola, marcada para 11 de Novembro". Mais uma vez a CIA estava metida nisto, a tentar sacar Angola à esfera da União Soviética. P. - Na noite de 24 para 25 há um processo que o ultrapassa dentro do COPCON? R. - Eu estou tão estafado, tão lixado e por outro lado tão tranquilo (eu apoio os páras, mas amanhã vamos ver o que se passa com eles) que não tinha preocupação de me sentir ultrapassado. Eu sei que continuo a comandar aquele pequeno quartel-general do Estado-Maior General das Forças Armadas, pronto, o resto não me interessa, a Região Militar de Lisboa está com o Vasco Lourenço, aquilo é com ele... P. - Essa aparente facilidade com que aceita que foi derrotado, porque a maioria dos seus camaradas que fizeram consigo o 25 de Abril queriam assim, contrasta com o seu inconformismo político posterior. O projecto da extrema-esquerda é derrotado na sua componente militar no 25 de Novembro, mas o senhor vai fazer um percurso de extrema militância defendendo as mesmas ideias que foram derrotadas no 25 de Novembro. Porquê? R. - Percurso que mantenho até hoje. P. - Com a agravante de ter, na altura do 25 de Novembro, um enorme prestígio nas Forças Armadas, que não capitalizou. R. - Tinha e não tinha. O meu prestígio durou até Setembro. O meu prestígio acaba quando os Nove transmitem que eu não estou com eles, ou que eles não estão comigo. Em Outubro-Novembro, estou isolado. E não vou sacrificar forças militares que podem ser extremamente fiéis e fortes, como os páraquedista e os fuzos, para criar a Comuna de Lisboa, onde eu me sinta porreiro, continue a ser o imperador, sabendo que o resto do país está contra mim. P. - Então, já tinha sido derrotado, no Verão. R. - Não, eu continuava a lutar em termos ideológicos pelas minhas ideias. Em Setembro, em Tancos, eu sou o gajo mais votado para o Conselho da Revolução. "António, estou contigo" P. - Mas explique, por favor, porque é que do ponto de vista político não tirou as conclusões todas do 25 de Novembro? R. - Havia os meus camaradas que eu considerava progressistas, mas não revolucionários, e havia a aventura de instaurar um novo regime político que não tinha paralelo a nível mundial. Eu queria saber até que ponto as minhas ideias, transmitidas livremente a um povo com 4,5 milhões de votos para dar, eram aceites. E respondeu-me com quase 17 por cento dos votos. P. - Mas isso foi em 1976. E nas eleições seguintes caíu absolutamente. Porque é que continuou? R. - Nas eleições de 1980, aí, eu estava perfeitamente tranquilo, à vontade, até votei Eanes, nem votei em mim!!! P. - Como?! R. -Quando aparece um Soares Carneiro como opositor do Eanes, é evidente que eu, sabendo que não tenho qualquer hipótese de alcançar um bom resultado, tudo se joga entre o Eanes e o Soares Carneiro. Aí voto Eanes, e digo: "António, estou contigo". P. - Mas o senhor tenta através de um projecto político com uma componente de intervenção armada mudar as regras do jogo. R. - Como oficial do exército no activo, depois das eleições regresso ao silêncio. Mas foi criada uma dinâmica tal que a malta que formava o meu gabinete de apoio pessoal considera que há condições para levar por diante um projecto de unidade popular. Então o Luís Moita, que era o mais sensato e equilibrado - ele, o Salgado de Matos, o Jorge Almeida Fernandes, o Eduardo Cruz, um conjunto porreiro de gente -, depois de uma intervenção minha que levou o Vasco Rocha Vieira a enfiar-me com vinte dias de prisão disciplinar agravada em Caxias - organizam em Dezembro um congresso que foi uma tentativa de formação do Movimento de Unidade Popular (MUP). O Luís Moita toma a palavra e há um gajo do PRP, industriado pelo Carlos Antunes, que denuncia que o Luís Moita esteve preso pela PIDE, que levou à prisão camaradas seus, etc. O Luís Moita ficou destroçado, afundou e o MUP acabou ali. Em 1977, como não podia desenvolver actividade pública, enquanto destruiam a obra de Abril, faço reuniões fechadas com várias organizações - a FSP, o PRP, o MES. Chega-se à conclusão que estão criadas condições para se criar aqui uma associação política, produtora de ideologia, e irmos mais longe criando um projecto político que passe por uma unidade produtora de ideologia, que, como associação política, se legalizava e uma estrutura civil armada, em que seja feito o recrutamento de trabalhadores da cintura industrial de Lisboa, de Setúbal, e se vá alargando no sentido de ficar disponível para uma luta contra regressos possíveis de situações de fascismo. P. -Analisando o seu comportamento do ponto de vista democrático, o senhor era mais sensato em 75 do que cinco anos depois. Em Novembro de 75 não distribuiu armas - quer dizer, houve o desvio de mil armas feito pelo capitão Fernandes. Mas isso aconteceu em Setembro, não sei se por ordens suas?... R. - ... nada, nada... P. - ...e pelo contrário foi Ramalho Eanes quem distribuiu armas a civis... R. - ...pode ter recebido alguma informação falsa. Uma vez, em pleno Conselho da Revolução, recebi um bilhete do capitão Sousa e Castro a perguntar-me se era verdade que eu tinha mandar distribuído armas a cubanos. O Eanes também deve ter ouvido dizer qualquer coisa. Disse-se na altura que tinham sido distribuidas 1 500 armas a civis. Não sei se se referiam às armas do capitão Fernandes. Por mim tenho a consciência tranquila. P. - Mas cinco anos depois, está a organizar um "exército popular armado". Não aprendeu nada com o processo... R. - Aprendi pois. Em Dezembro de 77, estou eu a lançar o projecto global, Mário Soares, então primeiro -ministro, declara em pleno parlamento que estão criadas em Portugal todas as condições para o regresso do fascismo. O projecto global tem, nessa altura, de facto, toda a objectividade. P. - Arrepende-se dessa fase da sua vida? R. - Não, o projecto global era a meu ver necessário... P. - ... projecto global que sustentou uma acusação judicial contra si. R. - Está bem, mas isso já não interessa ao projecto em si, já são as acusações que é preciso encontrar para condenar quem tem que ser condenado. Podia ser hoje general de quatro estrelas P. - Mas o senhor, que era um homem que arrastava multidões, ficou isolado. R. - Contrariamente ao que diz o PCP (que eu me perdi pela ambição do poder) eu estou-me nas tintas para o poder, nunca tive qualquer ambição de poder. O poder que me foi concedido durante 19 meses ou 17 ou lá o que é nunca me corrompeu. Eu entrei e saí perfeitamente à vontade, apenas amargurado pelo caminho que as coisa tomaram. Eu podia ser hoje um general de quatro estrelas, tive várias oportunidades para isso. A primeira foi o Spínola que em 1975, quando me chamou a Belém a dizer que eu ia comandar o COPCON e comandar a Região Militar de Lisboa, queria promover-me primeiro a general de quatro estrelas, (não graduado, mas promovido, era definitivo) para eu assumir a chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas, onde estava o Costa Gomes. Disse-lhe que o CEMFA era o general Costa Gomes, que não ia ocupar o lugar dele nem aceitava a promoção . Ele insistiu: "tem que ser. Os oficiais das outras unidades não aceitam nenhum dos generais que aí temos". Depois de muito instado, e por proposta do [hoje general] Monge, eu disse, a contragosto, que aceitava ser graduado para o exercício de funções de comandante adjunto do COPCON e para comandante da Região Militar de Lisboa. Dá-se o 25 de Novembro, e, na última reunião do Conselho da Revolução a que eu assisto, no dia seguinte, depois da extinção do COPCON proposta pelo Loureiro dos Santos, o general Costa Gomes diz (o que eu hoje tenho como indicação de que podia ser um plano também dos Nove, para evitar que houvesse ali uma ruptura de comando): "O Otelo vai ser agora promovido a general de quatro estrelas para assumir as funções de vice-chefe do Estado-Maior General da Forças Armadas". Eu disse: "Está a brincar. Não aceito isso, exijo a minha despromoção imediata, estão aqui as estrelas, e exigo o meu regresso a major e fico em casa a aguardar ordens sobre a unidade em que sou colocado". O Costa Gomes insistiu: "Você está muito nervoso". Eu disse que não, não estava nada nervoso. "Não perdi nada, não me sinto minimamente derrotado, não entrei em nenhuma guerra". O Costa Gomes outra vez: "Então vai ser promovido a general de três estrelas e fica como meu adjunto de operações". E eu: "já lhe disse, a partir deste momento regresso à minha posição de major Otelo Saraiva de Carvalho". Mais tarde o Partido Socialista convida-me através de Almeida Santos, para deputado, mas eu estava interessado no projecto global. P. - Mas quem estava consigo? R. - Muitos, os trabalhadores, a malta que me tinha apoiado nas eleições. P. - Quais as cabeças pensantes? R. - O Manuel Serra, o Pedro Goulart... P. - Mas já estava muito isolado já, politicamente. R. - É evidente que sim, mas as coisas grandes às vezes começam assim. Partidos destruiram a unidade P. - Mas não me diga que ainda está a pensar no projecto global? R. - Não, porque tive muitas decepções. Esses projectos têm que ter pessoas com uma força de carácter muito grande, com uma postura ideológica, mas as pessoas foram abandonando. À medida que a vida política entrou na rotina, na comodidade da democracia representativa, pode-se mandar umas papaias, escrever para os jornais, está-se sempre do contra, mas não se sai de casa, de chinelas a ver televisão. A rotina não obriga a tomar posições, a nada, o que é quanto a mim um dos principais defeitos da democracia representativa. P. - Hoje identifica-se politicamente com alguém, vota em alguém? R. - Às vezes sim, às vezes não. Eu sou de facto contrário a esta democracia representativa - os do PS falam contra os "jobs for the boys", mas todos os "boys" têm "jobs", não há fronteiras entre os partidos, é bom mudar uns de vez em quando, põe-se lá outros... O processo revolucionário deu-me a medida do que era possível fazer através da capacidade de intervenção das massas. Vi gente formidável, com grande dinamismo, fizeram coisas giras, foi pena que isso tudo se tenha perdido. Muito daquilo que os trabalhadores têm, que as mulheres têm, foram conquistadas nesse período. Há um livro muito giro em que intervêm muitas pessoas - entre eles o Fuzeta da Ponte, que foi o primeiro governador do distrito de Setúbal após o 25 de Abril, elementos da comissão administrativa que tomou conta da Câmara de Setúbal depois do 25 de Abril e trabalhadores de fábricas e rurais do distrito que encabeçaram lutas durante o PREC. Tive a honra e o prazer de prefaciar esse livro, que vai ser editado pelo jornal "Setúbal na Rede", de Pedro Brinca, que era operador de som da TSF. Ia para Angola, estive lá quinze dias e devorei aquilo. Emocionei-me bestialmente por 25 anos depois do PREC ler o que tinham sido os sonhos e as lutas de malta que é hoje anónima. Todos eles têm a perspectiva que eu tenho hoje: que o grande vector de força de uma revolução, a unidade dos trabalhadores, foi desfeito pelos partidos. P. - Já viu o que é uma vida política sem partidos? Leva ao fascismo. R. - Há quem tenha essa perspectiva. Mas eu considero que o povo tinha pelo MFA uma paixão muito grande, que só começa a esboroar-se quando os partidos entram em luta e começam eles próprios a abrir fissuras. P. - Logo nas primeiras eleições o povo disse não a esse tipo de projecto, não seguindo os apelos para que votasse em branco, que era um voto no MFA. R. -O voto era uma arma fundamental para um povo que tinha sido impedido de votar durante 50 anos. Mas isso mudou rapidamente com o povo desiludido porque colocava o seu voto, durante quatro anos, naqueles que não queriam saber para nada dos seus interesses. P. -A sua experiência na FUP (Frente de Unidade Popular) foi ainda mais pungente: acabou num movimento que cometia atentados. Quem estava a definir os interesses do povo? Um grupo de encapuçados (e que hoje, segundo a sua tese, nem se sabe quem eram) que dava ordens para se matar, para se roubar. É isso a felicidade do povo? R. - É evidente que não. Eu nunca tive nada a ver com nenhuma acção das FP/25. Nunca interferi rigorosamente em nada. P. -Não acha que a sua figura, o símbolo que era, acabou por inspirar a tragédia do terrorismo,ainda que o Otelo não tenha dado directamente a ordem para matar? R. - Eu não seria tão rigoroso nesse tipo de análise. Abri hipóteses para isso, mas esse tipo de acções que foram desenvolvidas a certa altura pelas FP-25, como os homicídios considerados de carácter político de administradores de empresa, foi muito resultado não de gente que vinha das BR''s, fundadas pelo Carlos Antunes. As BR''s, quando regressam a Portugal em finais de 1979, e vão fundar as FP-25, já com a experiência que trazem do PRP-BR, não querem ficar sujeitas a uma direcção política acima deles que os transforme em braço armado seja do que for. É um partido clandestino armado, mas não advoga os homicídios. Só que outros elementos que eles vão recrutar, (elementos que não eram das BR, tive oportunidade de conversar com eles em Monsanto) vão depois tomar essa iniciativa. Isso foi o princípio do fim das FP-25. Havia um compromisso do PCP com o 25 de Novembro P. - Como é que analisa aquela posição do PCP de ter desmobilizado os civis no 25 de Novembro? R. - Isso leva-me a crer que o PCP pudesse, através da instrumentalização que fazia dos pára-quedistas, estivesse não dentro do planeamento (aí deveriam estar os oficiais da esquerda militar ligados ao partido) mas a apoiá-lo. Tal como tinha apoiado a acção nos Comandos, em Julho de 1975, em que o PCP, com malta da Sorefame, queria sanear o Jaime Neves do regimento. Vim a saber depois no plenário dos Comandos que elementos que tinham cortado a entrada de Jaime Neves de facto tinham estado na sede do PCP, na Rua António Serpa, na noite anterior, e tinham obtido o apoio do partido para essa acção. Foi a mesma coisa a passar-se em 25 de Novembro: perguntou-se ao PCP se dava apoio de massas e eles ''sim senhora, nós cá estamos''. Logo às primeiras horas da manhã de 25 - não havia notícias sobre o que se estava a passar - e betoneiras da J. Pimenta vão bloquear as saídas do regimento de Comandos, considerada a unidade mais forte de perigo para a esquerda militar. Foram essas coisas que me levaram a pensar na possibilidade de existência de um plano mais alargado que não era só os "páras" irem às unidades da Força Aérea explicarem a sua luta. Para acabar com essa acção, o general Costa Gomes, em vez de chamar o líder da Intersindical para retirar as betoneiras do J. Pimenta, chama a Belém o Dr. Álvaro Cunhal e pede-lhe que desmobilize as massas do partido de qualquer acção de rua, para que, se houver troca de tiros, as massas não tornem impeditivo que a acção termine rapidamente, e a situação descambe numa guerra civil. A preocupação do Costa Gomes parece ser evitar a guerra civil a todo o custo e se há massas na rua, e massas que se podem armar, a situação pode descambar mesmo numa guerra civil. P. - No fundo, o Dr. Cunhal foi um homem "razoável", como diz Costa Gomes. R. - Claro. O que me causa alguma estranheza é todo um jogo entre partido e militares ligados ao partido que eu não sei até que ponto são combinadas. Parecia-me haver a promessa do partido de apoio a uma acção militar que visasse alterar a correlação de forças a nível do Governo. Quem possivelmente organiza um plano actuante são os militares ligados ao PCP, não sei se com apoio de militares ligados ao PCP que estão colocados no COPCON. Mas a verdade é que as betoneiras do J. Pimenta bloqueiam as saídas dos Comandos, e a verdade é que massas do PCP são travadas e não vem ninguém para a rua, a pedido do general Costa Gomes, e Álvaro Cunhal obedece. E é verdade também que já tinha havido a conversa entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal. Tendo o Álvaro Cunhal garantido para o partido a sua continuidade no quadro de uma democracia representativa para lá do 25 de Novembro, parece que isso vai chocar com a presença das betoneiras para impedir a saída da unidade que os militares ligados ao PCP viam como a unidade mais forte e capaz de intervir contra os pára-quedistas. Dá quase a sensação de que a presença das betoneiras se enquadra num plano, caso contrário não se percebe porque estão lá às sete da manhã. Mas o partido já tem um compromisso com o Melo Antunes e Álvaro Cunhal recebe as garantias de Costa Gomes, e manda desmobilizar as massas. Desaparece o COPCON, que foi um alívio para o PCP, fica esmagada a esquerda revolucionária e os militares revolucionários vão para casa. Os militares ligados ao PCP, da linha gonçalvista, são sacrificados, mas o partido salva-se. P. -Essa tese converge um pouco com a do Pinheiro de Azevedo... R. - Pinheiro de Azevedo vai mais longe, considera o Eanes um cripto-comunista. P. - No seu livro, Álvaro Cunhal vai mais longe, diz que o grande derrotado do 25 de Novembro foi Mário Soares. R. - O PS mantém-se com uma posição muito forte. Vai haver a tentativa de civilização da sociedade portuguesa, com o afastamento dos militares. A luta para afastar os miliares era encabeçada pelo PS. Daí o grande desgosto dos Nove que estavam convencidos de que, liquidando a esquerda revolucionária, liquidando o COPCON, mantendo o PCP no quadro da democracia representativa, a situação estava estável, regressava a disciplina aos quartéis, o Eanes vai buscar às prateleiras os generais e parece tudo voltar à normalidade. Mas nisto há uma anormalidade que era a manutenção do Conselho da Revolução. Os Nove acham que em representação do MFA e da pureza do 25 de Abril devem manter-se como os garantes de uma Constituição que ainda não existe. Aqui há sempre a luta surda pelo poder que o PS quer total, e o Grupo dos Nove, que procura impedir os excessos das forças de direita. Costa Gomes evitou a guerra civil, mas eu também P. - O que pensa de Costa Gomes? R. - Acho que é um homem com características muito positivas. Embora tenha tido com ele uma relação muito cordial, acho-o um homem extremamente calculista, por vezes dissimulado, e que joga fundamentalmente com a sua própria conveniência, com o seu equilíbrio, embora procure arvorar sempre a defesa dos valores fundamentais, do povo, da pátria. Isto desde que o conheci, depois do 25 de Abril. P. - Mas não acha que ele salvou o país de uma guerra civil no Verão Quente? R. - Julgo que a intervenção dele junto de Álvaro Cunhal tem essa preocupação, evitar massas na rua, se há massas pode haver um prolongamento, ele não sabe o que está em jogo, pode levar a um confronto de forças militares. Agora não se lhe pode atribuir a total responsabilidade de ter evitado a guerra civil em Portugal, porque eu também posso reivindicar isso para mim. Quando o comandante da Força de Fuzileiros do Continente se põe à minha disposição, muito antes de Costa Gomes ter pedido a Rosa Coutinho e Martins Guerreiro para lá irem, já eles estavam travados por mim. P. - O que se teria passado, se tivessa aceite? R. - Era a tal Comuna de Lisboa que estava previsto pelo Grupo dos Nove que existisse. De facto, apesar da palavra de honra que dei ao Vasco Lourenço, eles estavam à espera disso. Os líderes partidários foram para o Porto... P. - Então foi uma felicidade aquele resultado do 25 de Novembro, ou não? R. - Eu diria que a dar-se -como era fatal que se desse - tinha que haver um travão qualquer. Houve uma revolução que nos catapultou de grande turbulência, haveria que pôr cobro àquela situação. Havia uma perspectiva de tranquilamente fazer regressar a disciplina através do cansaço, do exemplo, da pedagogia e não de um golpe brusco. É possível que isto fosse um processo lento, que não se coadunasse com a necessidade que havia de pôr ordem no país, para que pudesse haver governo. Julgo que os meus camaradas dos Nove, secundados pela esmagadora maioria dos oficiais dos três ramos das Forças Armadas, tiveram razão ao dizerem que o 25 de Novembro foi feito para fazer regressar o processo à pureza do 25 de Abril. De facto, em 25 de Abril, o programa político do MFA que foi anunciado ao país e a todo o mundo, apontava para a instalação de uma democracia representativa. É a dinâmica do processo que se lhe segue que a mim e a alguns outros abre perspectivas diferentes. Está bem, era um processo que estava anárquico, havia vários centros de poder que se degladiavam, ninguém se entendia, toda a gente fazia comunicados, o clima era anarquista. Eanes, Melo Antunes, Soares e Cunhal P. - O que pensa de Ramalho Eanes? R. - Conheci-o na Academia Militar, ele possivelmente não se lembrará de mim, jovem cadete dois anos mais moderno, mas sempre ouvi referências a ele, enquanto jovem cadete do segundo ano de infantaria, que me levavam a considerá-lo um rapaz de enormes qualidades. Depois tive o prazer de vir a encontrá-lo na Guiné, ele estava como capitão antigo e chefe da secção de radiodifusão e imprensa. Só o vim a conhecer porque ele tomou parte naquele comando que foi transitoriamente substituir os três majores que foram liquidados pelo PAIGC em Abril de 1970. Quando ele regressa passei a ter com ele um contacto estreito, admirando nele qualidades, uma dedicação muito grande à causa militar, um sentido profissional e ético muito forte e (uma qualidade que ele demonstrou em várias ocasiões) uma frontalidade muito grande perante superiores, sem qualquer problema, consciente do seu próprio valor e mérito, e a defesa intransigente que ele fazia dos subordinados. Os militares que têm uma determinada formação não têm grande vocação para a actividade política e o Eanes aí falhou. Falhou no PRD... P. - Como o senhor falhou. R. - Como eu falhei, não tenho pejo nenhum em admiti-lo. Eu disse-lhe, quando ele me visitou em Caxias: "se eu, que tenho um espírito mais civil do que tu, fracassei, tu vais fracassar também". E acabou por fracassar, deixando até uma má imagem, depois do prestígio que alcançou na presidência. P. - O que pensa de Mário Soares? R. - Socialmente, dou-me muito bem com ele, é até difícil uma pessoa não se gostar dele, não se estar bem com ele. Tem sido classificado muitas vezes como um "bon vivant". Fui muitas vezes aliciado por ele para entrar na chamada família socialista e recusei sempre. Uma vez, depois de uma reunião da Internacional Socialista, houve um grande beberete no Hotel Altis e eu fui lá. A única mesa sentada era a mesa da IS, estava o Willy Brandt a presidir, o Carlos Andrez Perez, os grandes elementos da IS e a certa altura vem alguém dizer-me que o Dr. Mário Soares pede a minha presença. Quando chego à mesa, o Dr. Mário Soares levanta-se e a mesa toda da IS levanta-se também. Apresenta-me a todos, um por um e conta ao Willy Brand: "este é Otelo Saraiva de Caralho, herói da Revolução, o meu herói preferido, já tentámos várias vezes trazê-lo para a nossa família, mas ele diz que não gosta da social-democracia, não gosta de nós". Respondi: "eu sou muito seu amigo, gosto muito de si, e gosto muito de muita gente do PS, mas com a vossa prática política, a distância que há entre a vossa prática e o vosso programa, não concordo. Por isso não posso entrar numa coisa só por interesse pessoal, isso contraria aquilo que penso dos partidos políticos e do PS no seu todo". P. - E o que pensa de Melo Antunes? R. - O Melo Antunes é do curso do Eanes, da Academia Militar, então Escola do Exército. Eu conhecia-o de lá, tinha a informação de que era um elemento muito politizado, um intelectual. Ele disse uma vez numa entrevista quando lhe fizeram a mesma pergunta a meu respeito: "Entre mim e o Otelo houve sempre uma certa cerimónia". E eu concordei. Depois vim a conhecê-lo bem antes do 25 de Abril. A primeira reunião em que ele comparece é em Fevereiro de 1974 e aí é-lhe cometida imediata responsabilidade de elaboração do documento "O Movimento das Forças Armadas e a Nação" que vem a ser lido no último grande plenário em Março. Há uma leitura prévia em minha casa, em que o Melo Antunes também esteve. Na instituição militar, ele parecia estar dentro de uma camisa de forças, não tinha "jeito" para a vida militar, embora procurasse ser um elemento cumpridor e tenho referências de que era estimado. Muito diferente do Eanes, um oficial quase prussiano. O Melo Antunes era muito civil. Era um homem profundamente vocacionado para a política e foi um elemento de grande valor para o MFA, pelo conhecimento que tinha das coisas e pela sensatez que procurava aplicar nos arroubos revolucionários. Fazia-me recomendações, ocasionalmente discutia com ele sobre dúvidas que eu tinha. Uma vez disse-me: "supõe tu que se instalava a democracia directa em Portugal, assumes a responsabilidade histórica de ver crescer nos Açores numa dimensão incontrolável a FLA e, de repente, os Açores ficarem ligados aos Estados Unidos?" De facto era um peso, como é que eu podia suportar um peso histórico desses? "E a Madeira?", perguntou ele. "Vês, essas coisas têm que ir devagar, não podes instalar aqui a democracia directa, no fim de 50 anos de fascismo". Tinha esse bom senso. P. - Ele não tentou chamá-lo em 78/79 para o grupo dele, quando o senhor estava a ser namorado pela extrema-esquerda? R. - Sim, mas eu não me enquadrava nos grandes partidos, não me interessavam nada, tinha a sensação de que me coartavam na minha liberdade. Farto de disciplina já eu estava na vida militar. Vi sempre uma maior esponteidade na esquerda revolucionária, na FSP, mesmo nos trotsquistas, no PRP, nos partidos que não estavam enquadrados. A UDP já não, tinham o farol do Enver Hoxa. As pequenas formações de que eu gostava eram aquelas que não tinham nenhum farol, nem União Soviética, nem China. Tudo aquilo que era feito pelas massas populares resultava muito mais quando havia atrás dela a esquerda revolucionária do que quando estava o PCP. P. -Que relações teve com o PCP? R. - Foram sempre más. O meu principal adversário foi sempre o PCP. Enquanto estive na área do poder, em desespero, chega a criar-se a FUR, uma frente da esquerda revolucionária com o PCP, pela primeira vez. Nessa altura e mesmo antes, o Álvaro Cunhal pedia-me uma audiência (aconteceu duas ou três vezes), outras vezes aparecia o Jaime Serra [responsável pela segurança do PCP], ou o Rogério de Carvalho, que estava em Caxias, a ver os documentos da PIDE. Quando se dá o 25 de Novembro cortam comigo e quando foi da minha campanha presidencial foi o massacre. P. - E o que pensa do Dr. Álvaro Cunhal? R. - Acho bem. Não queria repetir chavões, que era um homem muito inteligente, mas se era muito inteligente devia ter visto o que se ia passar. Eu também devia ter visto quando foi das FP-25, até me foi dito, mas quis continuar. Eu tinha um projecto em mente, queria concorrer às eleições parlamentares de 1984, queria estar lá, queria defender posições mesmo que estivesse isolado na Assembleia da República, e queria levar aquele projecto até às eleições de 1984. Por isso me mantive nesse barco que depois naufragou estrondosamente. A minha convicção, talvez a tal utopia, era que enquanto o MFA tivesse a confiança do povo, nós poderíamos aguentar a situação. Chamávamos os melhores crânios para o executivo. Nós tínhamos a força e a confiança do povo. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

DO EDITOR

À lupa

CORREIO

Vila DE Rei

Ramalho Eanes: A direita não queria aquele 25 de Novembro

Otelo: Havia um compromisso do PC com Melo Antunes

Uma furtiva lágrima

O fora-da-lei

História de uma dinastia

As gasogenças

A menina das partidas

Tiger Woods, o mais bem pago do planeta

CRÓNICAS

Subsídios para um estupidário

O dia do julgamento

VOZES EM PORTUGUÊS

A menina dos ovos de ouro

GURU

Guru

NO CALOR DA NET

Beatles, número um

MIRAGEM

O presidente virtual

HERÓIS DA BANDA DESENHADA

Alack Sinner

HISTÓRIAS DE AMOR

Muitas qualidades

VIVER MELHOR

Quem quer viver para sempre?

BELEZA

Perfumar e tratar do corpo

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

IMPRESSÃO DIGITAL

[8.] Telecel, Teleweb

DESAFIOS

Estratégia para descobrir o prémio

Otelo: Havia Um Compromisso do PC com Melo Antunes

Segunda-feira, 20 de Novembro de 2000 Adelino Gomes, Eduardo Dâmaso, Isabel Braga e Adriano Miranda (fotos) O PREC (Processo Revolucionário em Curso) colocou-os frente a frente. Otelo Saraiva de Carvalho, graduado em general, detinha, em teoria, o comando das mais poderosas unidades do exército português na região de Lisboa e recebia o apoio da esquerda comunista e de uma infinidade de partidos e movimentos da esquerda revolucionária; Ramalho Eanes, com a patente de tenente-coronel, contava com o Regimento de Comandos da Amadora e a maioria das unidades fora de Lisboa, o apoio dos Nove, dos partidos à direita do PCP e de dois pequenos partidos da extrema-esquerda, o MRPP e a AOC. Eanes venceu e foi eleito presidente por duas vezes. Otelo perdeu o comando do Copcon, conheceu a prisão e está a ser julgado por alegada autoria moral de numerosos crimes de sangue cometidos pelas FP-25. Ambos fundaram partidos e falharam. Eanes é general na reserva. Otelo é tenente-coronel. O PÚBLICO pediu-lhes que rememorassem passo a passo os acontecimentos daquele capítulo decisivo da história portuguesa de há 25 anos. P. - O que é para si o maior mistério do 25 de Novembro? Quem deu as ordens aos páraquedistas? R. - Há várias questões por esclarecer. O plano de operações dos Nove, executado pelo Eanes, foi-me dado a conhecer em Setembro [de 1975] pelo Vasco Lourenço que uma vez em casa do [comandante] Gomes Mota me disse: "encarregámos o Eanes de um plano de operações e se houver algum pretexto a malta cai em cima". P. - E o pretexto surgiu com a ocupação de bases pelos páraquedistas? R. - Segundo se lembram, costumava dizer-se na altura que o primeiro a saltar seria derrotado. P. - No 11 de Março também foi assim. Havia portanto um plano, mas o que é que faz saltar os páraquedistas? R. - Foi a minha saída da Região Militar de Lisboa. Os páras, que eram uma força bastante disciplinada e organizada, estavam ressaibiados com o chefe do Estado Maior da Força Aérea [Morais da Silva], e de repente, às cinco da manhã resolvem sair por aí fora e ocupam quatro bases aéreas. P. - Diz-se que a ordem partiu do Copcon. R. - Certo, parece que isso está provado. Mas quem deu a ordem? Eu não fui. P. - Tinha traidores a trabalhar consigo? R. -Sou apanhado de surpresa pela ocupação das bases. Quando fui ao Copcon - por onde passei para dar uma satisfação, porque sabia que estavam lá à espera de saber qual a resolução final do Conselho da Revolução sobre a Região Militar de Lisboa - eram umas quatro da manhã, tínhamos estado em reunião desde as duas da tarde. Está um maralhal, metido numa sala pequena, lá me sento no meio, rebentado, amargurado à brava. Anuncio que fica definitivamente o [então capitão, membro do Conselho da Revolução] Vasco Lourenço a comandar a Região Militar de Lisboa, continuando eu no COPCON. Imediatamente o [major da Força Aérea, ex-ministro do Trabalho] Costa Martins levanta-se e diz que os páras não vão aceitar isto, e vão ocupar as bases aéreas. E vira-se para um gajo que está à paisana, que eu nunca tinha visto, a fumar umas cigarradas, ao fundo da sala, e pergunta: "Não é verdade, ó Gui?" E o Gui diz: "é verdade sim, senhor major". O Tomé levanta-se e diz: "cheira-me aqui a golpada". E eu: "pois é, também me cheira a golpada". Chamei o Arlindo [Dias Ferreira, major piloto aviador, que funcionava na repartição de operações do COPCON, já falecido] a uma sala àparte. Entretanto chegou o Tasso [de Figueiredo, da polícia aérea e do Estado Maior, na época, colocado na repartição do informações do COPCON, hoje coronel na reserva e porta-voz do movimento dos oficiais das Forças Armadas ]. Lembro-me de perguntar o que era aquilo. O Arlindo diz-me: "está descansado que isto não é nada connosco". Fui para casa dormir. P. - Quem era o Gui? R. - Mais tarde vim a saber que o Gui era um primeiro-sargento da Força Aérea, era um homem fortemente ligado ao PCP. Acresce a isto que o Costa Martins, também ligado ao PCP, se tinha apresentado na manhã de 24 de Novembro no COPCON, munido de uma guia de marcha assinada pelo Morais da Silva, a dizer-me que estava colocado no COPCON. Eu quando precisava de qualquer coisa, dava-me ao luxo de requerer ao Estado-Maior respectivo a transferência deste ou daquele para desempenhar funções no COPCON. Mas não tinha requisitado o Costa Martins. Já na véspera olhara para aquilo e dissera: "o que estás aqui a fazer? Não te requisitei, não preciso de ti para nada." Já o Corvacho se me apresentou aqui há dois dias, munido de uma guia de marcha do Estado Maior do Exército! Sou aqui o refugo profissional!? Mas está bem, eu vou ver isso com o Morais da Silva e, como não tenho nada aqui para te dar agora, tu ficas em casa sossegadinho até eu contactar contigo". Isto na manhã do dia 24. Na madrugada de 25, está lá, no COPCON. Digo ao Arlindo: "sabes que há um golpe preparado pelos Nove para saltar ao mínimo pretexto, vê lá esta gaita, se não é o pretexto para desencadear o golpe da direita". E o Arlindo responde:'' não é nada disso, são lá coisas da Força Aérea, é a luta contra o Morais da Silva''. O Tasso agora diz que eu dei luz verde para os páras irem explicar a sua luta. Se eu tivesse dado uma ordem dessas, perguntei-lhe há dias, aquela malta deixava-me ir para casa, mesmo que eu não dormisse há uma semana, e só voltava ao COPCON porque tive um telefonema ao meio-dia?" E ele respondeu: "mas foi assim... ". Os Nove querem admitir que houve um golpe e que eles actuaram em contra-golpe, em contra-ataque, mas não conseguem encontrar bases de sustenção para essa tese. P. - Mas alguém deu a ordem. Terá sido então ele que a transmitiu? R. - O Tasso diz é que os Nove tinham a escuta montada e ouviram a ordem partir aqui do COPCON. Mas eu perguntei-lhe quem foi o gajo que disse ao Pessoa [capitão para-quedista] que havia luz verde para avançar. Ele respondeu: "Isso é uma questão muito secreta entre mim e o Arlindo". P. - Mas é o senhor que é acusado depois de ter dado a ordem. R. - Eu tenho este labéu. Álvaro Cunhal utilizou isso à brava e na campanha de 1976, o Octávio Pato [candidato presidencial do PCP, já falecido] disse um dia que eu tinha traído as massas no 25 de Novembro. P. - Mas o que fez quando lhe telefonam a dizer que há um contragolpe montado, que as bases estão a ser ocupadas, que os seus homens estão à espera que o COPCON faça alguma coisa? Durante essa tarde o plano de operações dos Nove avança, o então tenente-coronel Eanes dá ordens... R. - Mas avança já muito tarde, avança depois das quatro da tarde. P. - ... e o senhor desaparece para casa. R. - O telefonema do [Artur] Baptista [chefe do Estado Maior do COPCON] é cerca do meio-dia, eu como qualquer coisa e chego ao COPCON. Pergunto: "qual é a bronca?". Havia muito poucas notícias, sabia-se que as bases tinham sido ocupadas e pouco mais. Dizem-me que o general Costa Gomes está muito tenso, fez vários telefonemas a pedir para eu me apresentar rapidamente em Belém. Entretanto chega o Marques Júnior, diz-me que o Conselho da Revolução está reunido. Chego a Belém e o Costa Gomes pergunta-me se eu sei o que se passou. E diz-me: "O Costa Martins saíu daqui há cerca de uma hora, estou convencido de que o Costa Martins está metido nisto, ele tem muita influência nos sargentos". E diz-me que lhe fez uma proposta. "O gajo vai junto dos páras, diz-lhe para abandonarem aquilo que estão a ocupar, regressam o mais depressa possível a Tancos e amanhã eu e o Otelo vamos a Tancos, formamos aquela gente toda e eu anuncio que os páras deixam de estar sob a tutela da Força Aérea, passam ao exército e ficam directamente comandados pelo COPCON". Perguntou-me o que achava eu disto. Respondi: "porreiro, meu general, isso era uma vitória do caraças para os páras, era a demissão lógica do Morais da Silva que tinha extinguido os páras e não só a força não era extinta com passava para o comando central. Era uma vitória estrondosa." E diz o Costa Gomes: "estou à espera do Costa Martins". Mas o Costa Martins nunca mais apareceu. Mais tarde perguntei ao segundo sargento Reboxo porque é que os páras não tinham respondido à proposta do Costa Gomes. E ele diz: "Qual proposta?" Diz que essa proposta nunca foi feita. Fuzileiros ofereceram-se P. - O Costa Martins é o culpado? O que interessava ao Costa Martins não transmitir esse recado? R. - Não sei. O Costa Martins desapareceu da circulação e volta a aparecer em Cuba, ou em Angola, já não sei. P. -Então isto é um mistério para si ainda hoje? R. - Para mim, é. P. - Não lhe passa pela cabeça que o Costa Martins estivesse feito com os Nove? Essa actuação interessava a quem tinha um plano como aquele que veio a desencadear-se daí a umas horas, que é o avanço dos comandos sobre o GDACI e depois sobre a polícia militar. R. - Sem que haja qualquer reacção por parte dos pára-quedistas. Eu falei com pára-quedistas que me disseram que tiveram o próprio Jaime Neves na mira, no GDACI, podiam ter limpo o gajo e não dispararam um tiro. O Tasso diz-me: "A perspectiva que eu tenho é que os pára-quedistas, de facto, só queriam ir às unidades explicar a luta e tentar arregimentá-las para correr com o Morais da Silva, e manterem-se eles como força organizada". P. - Mas apesar de tudo, nas horas seguintes, chega a ser encarada a hipótese de conquistar os fuzileiros... R. - Era isso que eu estava a dizer: antes de ir para Belém, estava no COPCON e apresenta-se-me o comandante da força de fuzileiros do continente, e diz-me: "senhor general, os fuzos estão prontos a entrar em acção. Quais são as ordens que dá?" E eu disse: "nada, não estamos em situação de guerra civil. Se há uma atitude qualquer numa situação como esta rebenta uma bernarda do caraças. Não mexa uma palha enquanto não receber uma indicação". P. - Então quem o acusa de não ter feito nada tem razão neste sentido. O senhor teve possibilidades de, militarmente, conter... R. - Isso é o que eu estava a dizer há bocado. Ou eu, comandante militar, organizo e planeio uma acção, como foi no 25 de Abril, sabendo quais os objectivos a atingir e as forças com que conto e quais as forças do inimigo, com um plano de operações, ou não é assim, de repente. P. - Mas tinha a supremacia, definitivamente, depois dos fuzileiros se terem colocado ao seu lado. R. - Eu sabia que tinha os pára-quedistas comigo, porque os tinha apoiado claramente na luta contra o Morais da Silva, por causa da sua dissolução, tinha os "fuzos" pelo meu lado, mas sabia que não tinha comandos nessa altura, e que na divisão de forças que os Nove tinham tentado arregimentar para o seu lado, não contava com algumas unidades da Região Militar de Lisboa, tipo CIAC, e possivelmente EPI e EPC (o Salgueiro Maia no 25 de Abril, demorou, em viaturas muito maltratadas, cinco horas de Santarém a Lisboa; no 25 de Novembro demorou mais de 24 horas, vindo para aí abaixo a dez à hora). Os Nove já tinham arregimentado unidades para o lado deles e o Eanes fizera a contagem de espingardas - quantas e quais unidades estavam com eles, quantas estavam com o COPCON - eu não tinha nada. Mas será que a ocupação das bases aéreas pelos "páras" é congeminada pelos sargentos que estavam muito instrumentalizados pelo PCP? Será que há aqui uma manipulação do PCP para um plano operacional? O PCP a procurar antecipar-se aos Nove? 25 de Novembro interessava bestialmente ao PCP P. - Qual é a sua convicção ? R. - Não tenho conhecimento nenhum disso. Mas será possível a ocupação das bases ter sido feita com tamanha eficácia sem um plano estruturado?, perguntei eu ao Tasso. E ele disse-me: "Alguma vez estiveste com os pára-quedistas no Ultramar? É que eles são uma máquina do caraças, não é necessário haver alferes e capitães, os sargentos são bestiais." Mas mesmo assim. Os páras entram no ataque à bomba à Rádio Renascença, a 7 de Novembro, por ordem do Morais da Silva, e é a partir daí que as coisas aceleram muito contra ele. No dia 9 o Morais da Silva foi a Tancos procurar justificar a acção, é insultado, os páras declaram em comunicado que não reconhecem aquele chefe do Estado Maior da Força Aérea e é a partir daí que o Morais da Silva faz aquele despacho a dissolver a força de pára-quedistas. Será que os "páras" disseram: "chega, não nos enganam mais, fomos enganados a 11 de Março, fomos utilizados outra vez agora para rebentar à bomba com a Rádio Renascença a pretexto de que estava ocupada pelas massas revolucionárias, vamos demonstrar o que é a nossa eficácia e capacidade de actuação"? Na perspectiva do Tasso é isso que acontece. Que a partir daí eles fazem um plano para demonstrar eficácia - "estamos aqui para demonstrar quem somos e o que fazemos: somos sargentos,123 oficiais abandonaram a unidade e não precisamos deles para nada!" Durante algum tempo pensei no PCP por detrás disto tudo (não é que tenha posto completamente de lado essa hipótese), o PCP a querer alterar a correlação de forças que tinha perdido em Tancos em 5 de Setembro, quando o Vasco Gonçalves, tendo perdido o V Governo Provisório, não é aceite como Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, e que saem do Conselho da Revolução os chamados gonçalvistas, o Corvacho, o Ferreira de Sousa, o Macedo, e os Nove regressam em força. P. - Hoje já não pensa assim? R. -A mim parecia-me que o PCP tinha todo o interesse nisso, que estava a forçar o andamento para, perdido o Vasco Gonçalves, alterar a correlação de forças de novo a seu favor a nível do poder. É mais ou menos nessa altura que eles fazem aliança comigo, estamos a trabalha num plano de alfabetização do país através da CODICE, aproveitando a malha das unidades militares.... Começa a haver aqui uma ligação... P. - A verdade é que o PCP acaba legitimado por Melo Antunes a seguir ao 25 de Novembro. R. - Eu julgo que o PCP , que estava a perder terreno, é um facto, desde as eleições [na Constituinte o PCP teve 12,5 por cento contra 37,8 por cento do PS e 26,3 do PPD], quer manter o controlo das coisas e ter força no aparelho, seja através de elementos que lhe sejam afectos no Conselho da Revolução, seja no Governo. Os pára-quedistas podem servir-lhe para isso na medida em que podem afastar o Morais da Silva e colocar no lugar dele alguém afecto à linha PCP. Isso aí justificaria o chamamento de Melo Antunes - que está dentro do plano operacional dos Nove que atraíu a direita e a extrema-direita militar - ao PCP dizendo (e isto é especulativo): "vai passar-se isto, isto vai evitar um confronto entre militares e tudo se resolve facilmente se não houver intervenção de massas populares, isto vai travar o processo que está demasiadamente acelerado e encaminhar o país para o objectivo que era o objectivo do MFA no 25 de Abril, instalar aqui uma democracia representativa". P. - Há, efectivamente, uma reunião entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal, antes do 25 de Novembro... R. - ... aí uma semana antes, em casa de Nuno Brederode Santos. P. - Álvaro Cunhal, no seu livro mais recente, "As Verdades e as Mentiras do 25 de Abril", diz que aquilo que se passou a seguir ao 25 de Novembro "resultou da aliança não negociada, não acordada, não explicitada, mas aliança com o PCP, conjuntural e objectivamente existente de chefes das Forças Armadas, destacados participantes na preparação do golpe e na sua execução, mas defensores da continuação das liberdades da democracia política". Isto parece ir ao encontro da sua tese. R. - O 25 de Novembro interessava bestialmente ao PCP. O quebra-cabeças principal para o PCP na sua actuação no terreno eram de facto os esquerdistas - a esquerda revolucionária, o PRP e o MES - que galvanizavam as comissões de trabalhadores e fugiam ao controlo do PCP. Uma vez tive um confronto com o Vasco Gonçalves, porque eu tinha permitido uma manifestação selvagem, porque não era organizada pela Intersindical, contra a Nato. A acção no terreno escapava ao PCP, era motivado a maior parte das vezes pelos esquerdistas. Se quem lhes dava a safa era o COPCON, se o COPCON desaparecesse, o PCP ficava aliviado. P. - Mas os militares da direita e moderados que participaram n 25 de Novembro fizeram-no para conter o PCP e não a extrema-esquerda. O Jaime Neves diz que o inimigo número um é o PCP e por isso ele diz a Ramalho Eanes que os comandos não estão satisfeitos. R. - Isso é a direita e a extrema-direita a falar através de Jaime Neves. Ilegalizar o PCP era um erro gravíssimo, o PCP passava à clandestinidade e obrigava à criação de uma nova polícia política, o que era um regresso ao 24 de Abril. O Melo Antunes e os Nove tiveram toda a razão, interessava à democracia manter o PCP enquadrado e activo. P. - E o senhor está de acordo com isso, deu uma entrevista [ao "Expresso", em Abril passado] em que diz que o 25 de Novembro foi a reposição do espírito inicial do 25 de Abril. R. - Eu não digo isso, digo é que os meus camaradas do Grupo dos Nove têm toda a razão quando dizem que o 25 de Novembro foi realizado com o sentido de regressar à pureza inicial do 25 de Abril. Só isso, porque o programa político do MFA apontava para isso. O homem não é um ser imutável, as circunstâncias podem obrigá-lo a mudar. Eu não vivi no gabinete como viveram o Melo Antunes e o Vasco Lourenço, em conspiração permanente. Tive todos os dias sozinho no COPCON, trabalhadores a porem-me problemas que iam desde o comercial ao económico, passando pelos problemas culturais. Por exemplo, as primeiras ocupações de terras no Alentejo: lembro-me que o Vítor Alves, em Belém, antes de uma reunião do Conselho da Revolução, veio ter comigo a dizer "eh pá, grande bronca, tens que actuar imediatamente". E mostra-me a última página de "A Capital", com uma fotografia muito bonita, a negro, e recortado no horizonte um homem de boné e caçadeira ao ombro, com o título "Ocupação de terras no Alentejo". Os trabalhadores vieram falar comigo ao COPCON, estavam à rasca, a dizer que no Alentejo se ouvia falar há mais seis meses que ia haver uma reforma agrária que nunca mais aparecia, e os latifundiários estavam a deixar as terras com mato e a levar a maquinaria agrícola e o gado para Espanha, para vender tudo ao desbarato, e que quando houvesse ocupação de terras as terras estariam incultas. Isto foi em Fevereiro de 1975. "Para quê dar-nos a esperança da reforma agrária, se depois vem a GNR e nos tira de lá?", perguntava o trabalhador. E eu disse: "ocupem as terras". E prometi que no dia seguinte falaria com o capitão da GNR que todos os dias ia ao COPCON para que desse indicação no comando para que deixassem de actuar contra os trabalhadores. "Têm as vossas caçadeiras e ocupem as terras", disse eu... Aliança Povo-MFA era a Bíblia P. - Portanto, estava a par do que os Nove e os seus aliados pretendiam. Porque é que não actuou para os impedir? R. - Impedir como? P. - Militarmente. R. - Eu tinha que reconhecer que a esmagadora maioria dos meus camaradas estava contra mim, estava contra as ideias da democracia directa e do poder popular que ficaram consubstanciadas na documento da Aliança Povo-MFA, que nem sequer tinha sido elaborado pelo COPCON nem por mim, foi produto do Grupo Dinamizador do Exército chefiado pelo [hoje oficial general na reserva] Pedro Pezarat Correia, e que foi aprovado em assembleia geral do MFA. Eu aderi àquilo inteiramente, então isto é a Bíblia. Ainda continuo a bater-me por aquilo que ali está. O Melo Antunes não concordava e tive o prazer de ler recentemente o que ele escreveu para o livro de Gomes Mota, em que se refere exactamente a essa conversa comigo, a dúvida que eu tinha entre a democracia directa que eu advogava e aquilo que ele considerava não possível de concretizar. A democracia representativa não serve inteiramente os interesses do povo português, mas a democracia directa também não. Uma vez o Vítor Alves convidou-me para jantar e disse-me: "Nós, os Nove, tivémos sempre uma tranquilidade muito grande em relação a ti, porque te conhecíamos. E embora tu não tivesses assinado o documento dos Nove, sabíamos que serias incapaz de te virar contra nós. Agora se tinhas a perspectiva de que era importante bateres-te até à morte pela democracia directa, tinhas que ter tido a coragem de nos encostar à parede, a mim, ao Melo Antunes, ao Garcia dos Santos e aos outros, e teres fuzilado a malta toda, assim tinhas o campo aberto". P. - Nunca lhe passou isso pela cabeça? R. - Eu disse ao Vítor Alves: "mas tu és parvo?" P. - Naquele dia 25 de Novembro, chegou a pensar em aproveitar a oferta dos fuzileiros? R. -Eu não, pelo contrário. Quando saio do COPCON para ir ter com o Costa Gomes é na perspectiva de me ligar ao Costa Gomes para impedir qualquer contragolpe. Estava eu em Belém já... P. - Estava em Belém detido. R. - Não, detido não. Estava lá. P. - Mas os seus homens estavam à sua espera no COPCON. R. - Quem estava no COPCON era o Varela Gomes, muito ligado ao PCP. P. - Mas há pessoas, como o Dinis de Almeida, que aliás veio a cortar relações consigo, que disseram que lhes faltou o comando. R. - Não faltou nada, eu tinha a consciência tranquilíssima porque nunca assumi compromissos com essa gente (ele não fala comigo, eu não lhe falo, não me interessa). Ele estava como segundo comandante do RALIS e resolve à papo seco, sem receber ordem de ninguém, ir apoiar os páras em Monsanto. Quem lhe deu essa ordem, isso fazia parte de algum plano? Porque é que ele não ficou sossegadinho no RALIS? Porque é que ele, o Campos Andrada e o Tomé [estes dois comandantes da Polícia Militar] não acataram a ordem que veio do Costa Gomes a dizer que todas as unidades da Região Militar de Lisboa passavam a estar às suas ordens? P. - E porque é que não fez esses contactos a partir de Belém? Por exemplo, telefonando? R. - Eu não fazia nenhuma ideia do que eles estavam a fazer. A única mensagem que eu recebo em Belém, o único pedido de ordem é do Rosado da Luz, hoje coronel na reserva e economista, que comandava o Forte de Almada. O gajo telefona-me a dizer: "há aqui mais de dez mil gajos da Lisnave e da Setenave, estão aqui a forçar os portões, querem armas, o que é que eu faço, abro-lhes os portões, dou-lhes armas?". E eu disse: "nem um canivete, não lhes dás nem um canivete, se fazes isso desancadeias uma guerra que ninguém consegue travar". P. - Em Belém, sentia-se como um dos homens que estavam a vencer ou um dos que estavam a ser derrotados? R. - Uma das coisas que tenho que dizer é que não me encarem a mim vencido ou derrotado em nada. Uma pessoa é vencida quando perde uma aposta ou quando entra numa batalha ou numa guerra e se rende. Eu não entrei em batalha nenhuma, apenas discuti ideias até ao limite possível. Entrei em confronto sim com o Morais da Silva, a quem não reconheço categoria de qualquer espécie (todo o percurso, as cambalhotas que dá em poucos meses, e no 25 de Novembro). Os meu camaradas não me meteram no golpe, ninguém me perguntou podes fazer isto ou aquilo no COPCON... P. - Consideravam-no um adversário. R. - Possivelmente, mas eu, com o meu espírito de lealdade, estive praticamente a assistir, como tinha acontecido na discussão de um documento-síntese entre o documento do COPCON e o documentos do Nove (por parte dos Nove estiveram Vitor Crespo e o Vasco Lourenço, por parte do COPCN estavam o Rosado da Luz e o Arlindo). Porquê? Porque eram os meus gajos, e eu tinha que estar com ele. P. - Mas em consequência da acção militar do 25 de Novembro, o que acontece é que a unidade fundamental que o senhor comandava acaba e as forças políticas com as quais o senhor se identificava mais, da esquerda revolucionária, foram derrotadas. R. - Para já eu não comandava unidade nenhuma, o COPCON era um órgão do Estado-Maior General das Forças Armadas. P. - Mas era uma importante força militar... R. - A partir do momento em que a esmagadora maioria dos meus camaradas, que tinham feito comigo o 25 de Abril consideraram que aquilo não era o caminho a seguir, tomam posições, articulam um comando operacional do qual eu estou excluído... P. - Mas soube isso à posteriori? O que o surpreendeu foi haver facções dentro do COPCON? R. - Não, os Nove abriram claramente o jogo, foram recolher assinaturas em todas as unidades do país, a esmagadora maioria dos oficiais que lá estavam, mesmo de direita e de extrema-direita, tinham assinado o documento. Estavam todos com os Nove. Eu discuti isto com o Baptista e disse: "isto está perdido, vamos lá a ver se conseguimos aguentar isto até à independência de Angola, marcada para 11 de Novembro". Mais uma vez a CIA estava metida nisto, a tentar sacar Angola à esfera da União Soviética. P. - Na noite de 24 para 25 há um processo que o ultrapassa dentro do COPCON? R. - Eu estou tão estafado, tão lixado e por outro lado tão tranquilo (eu apoio os páras, mas amanhã vamos ver o que se passa com eles) que não tinha preocupação de me sentir ultrapassado. Eu sei que continuo a comandar aquele pequeno quartel-general do Estado-Maior General das Forças Armadas, pronto, o resto não me interessa, a Região Militar de Lisboa está com o Vasco Lourenço, aquilo é com ele... P. - Essa aparente facilidade com que aceita que foi derrotado, porque a maioria dos seus camaradas que fizeram consigo o 25 de Abril queriam assim, contrasta com o seu inconformismo político posterior. O projecto da extrema-esquerda é derrotado na sua componente militar no 25 de Novembro, mas o senhor vai fazer um percurso de extrema militância defendendo as mesmas ideias que foram derrotadas no 25 de Novembro. Porquê? R. - Percurso que mantenho até hoje. P. - Com a agravante de ter, na altura do 25 de Novembro, um enorme prestígio nas Forças Armadas, que não capitalizou. R. - Tinha e não tinha. O meu prestígio durou até Setembro. O meu prestígio acaba quando os Nove transmitem que eu não estou com eles, ou que eles não estão comigo. Em Outubro-Novembro, estou isolado. E não vou sacrificar forças militares que podem ser extremamente fiéis e fortes, como os páraquedista e os fuzos, para criar a Comuna de Lisboa, onde eu me sinta porreiro, continue a ser o imperador, sabendo que o resto do país está contra mim. P. - Então, já tinha sido derrotado, no Verão. R. - Não, eu continuava a lutar em termos ideológicos pelas minhas ideias. Em Setembro, em Tancos, eu sou o gajo mais votado para o Conselho da Revolução. "António, estou contigo" P. - Mas explique, por favor, porque é que do ponto de vista político não tirou as conclusões todas do 25 de Novembro? R. - Havia os meus camaradas que eu considerava progressistas, mas não revolucionários, e havia a aventura de instaurar um novo regime político que não tinha paralelo a nível mundial. Eu queria saber até que ponto as minhas ideias, transmitidas livremente a um povo com 4,5 milhões de votos para dar, eram aceites. E respondeu-me com quase 17 por cento dos votos. P. - Mas isso foi em 1976. E nas eleições seguintes caíu absolutamente. Porque é que continuou? R. - Nas eleições de 1980, aí, eu estava perfeitamente tranquilo, à vontade, até votei Eanes, nem votei em mim!!! P. - Como?! R. -Quando aparece um Soares Carneiro como opositor do Eanes, é evidente que eu, sabendo que não tenho qualquer hipótese de alcançar um bom resultado, tudo se joga entre o Eanes e o Soares Carneiro. Aí voto Eanes, e digo: "António, estou contigo". P. - Mas o senhor tenta através de um projecto político com uma componente de intervenção armada mudar as regras do jogo. R. - Como oficial do exército no activo, depois das eleições regresso ao silêncio. Mas foi criada uma dinâmica tal que a malta que formava o meu gabinete de apoio pessoal considera que há condições para levar por diante um projecto de unidade popular. Então o Luís Moita, que era o mais sensato e equilibrado - ele, o Salgado de Matos, o Jorge Almeida Fernandes, o Eduardo Cruz, um conjunto porreiro de gente -, depois de uma intervenção minha que levou o Vasco Rocha Vieira a enfiar-me com vinte dias de prisão disciplinar agravada em Caxias - organizam em Dezembro um congresso que foi uma tentativa de formação do Movimento de Unidade Popular (MUP). O Luís Moita toma a palavra e há um gajo do PRP, industriado pelo Carlos Antunes, que denuncia que o Luís Moita esteve preso pela PIDE, que levou à prisão camaradas seus, etc. O Luís Moita ficou destroçado, afundou e o MUP acabou ali. Em 1977, como não podia desenvolver actividade pública, enquanto destruiam a obra de Abril, faço reuniões fechadas com várias organizações - a FSP, o PRP, o MES. Chega-se à conclusão que estão criadas condições para se criar aqui uma associação política, produtora de ideologia, e irmos mais longe criando um projecto político que passe por uma unidade produtora de ideologia, que, como associação política, se legalizava e uma estrutura civil armada, em que seja feito o recrutamento de trabalhadores da cintura industrial de Lisboa, de Setúbal, e se vá alargando no sentido de ficar disponível para uma luta contra regressos possíveis de situações de fascismo. P. -Analisando o seu comportamento do ponto de vista democrático, o senhor era mais sensato em 75 do que cinco anos depois. Em Novembro de 75 não distribuiu armas - quer dizer, houve o desvio de mil armas feito pelo capitão Fernandes. Mas isso aconteceu em Setembro, não sei se por ordens suas?... R. - ... nada, nada... P. - ...e pelo contrário foi Ramalho Eanes quem distribuiu armas a civis... R. - ...pode ter recebido alguma informação falsa. Uma vez, em pleno Conselho da Revolução, recebi um bilhete do capitão Sousa e Castro a perguntar-me se era verdade que eu tinha mandar distribuído armas a cubanos. O Eanes também deve ter ouvido dizer qualquer coisa. Disse-se na altura que tinham sido distribuidas 1 500 armas a civis. Não sei se se referiam às armas do capitão Fernandes. Por mim tenho a consciência tranquila. P. - Mas cinco anos depois, está a organizar um "exército popular armado". Não aprendeu nada com o processo... R. - Aprendi pois. Em Dezembro de 77, estou eu a lançar o projecto global, Mário Soares, então primeiro -ministro, declara em pleno parlamento que estão criadas em Portugal todas as condições para o regresso do fascismo. O projecto global tem, nessa altura, de facto, toda a objectividade. P. - Arrepende-se dessa fase da sua vida? R. - Não, o projecto global era a meu ver necessário... P. - ... projecto global que sustentou uma acusação judicial contra si. R. - Está bem, mas isso já não interessa ao projecto em si, já são as acusações que é preciso encontrar para condenar quem tem que ser condenado. Podia ser hoje general de quatro estrelas P. - Mas o senhor, que era um homem que arrastava multidões, ficou isolado. R. - Contrariamente ao que diz o PCP (que eu me perdi pela ambição do poder) eu estou-me nas tintas para o poder, nunca tive qualquer ambição de poder. O poder que me foi concedido durante 19 meses ou 17 ou lá o que é nunca me corrompeu. Eu entrei e saí perfeitamente à vontade, apenas amargurado pelo caminho que as coisa tomaram. Eu podia ser hoje um general de quatro estrelas, tive várias oportunidades para isso. A primeira foi o Spínola que em 1975, quando me chamou a Belém a dizer que eu ia comandar o COPCON e comandar a Região Militar de Lisboa, queria promover-me primeiro a general de quatro estrelas, (não graduado, mas promovido, era definitivo) para eu assumir a chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas, onde estava o Costa Gomes. Disse-lhe que o CEMFA era o general Costa Gomes, que não ia ocupar o lugar dele nem aceitava a promoção . Ele insistiu: "tem que ser. Os oficiais das outras unidades não aceitam nenhum dos generais que aí temos". Depois de muito instado, e por proposta do [hoje general] Monge, eu disse, a contragosto, que aceitava ser graduado para o exercício de funções de comandante adjunto do COPCON e para comandante da Região Militar de Lisboa. Dá-se o 25 de Novembro, e, na última reunião do Conselho da Revolução a que eu assisto, no dia seguinte, depois da extinção do COPCON proposta pelo Loureiro dos Santos, o general Costa Gomes diz (o que eu hoje tenho como indicação de que podia ser um plano também dos Nove, para evitar que houvesse ali uma ruptura de comando): "O Otelo vai ser agora promovido a general de quatro estrelas para assumir as funções de vice-chefe do Estado-Maior General da Forças Armadas". Eu disse: "Está a brincar. Não aceito isso, exijo a minha despromoção imediata, estão aqui as estrelas, e exigo o meu regresso a major e fico em casa a aguardar ordens sobre a unidade em que sou colocado". O Costa Gomes insistiu: "Você está muito nervoso". Eu disse que não, não estava nada nervoso. "Não perdi nada, não me sinto minimamente derrotado, não entrei em nenhuma guerra". O Costa Gomes outra vez: "Então vai ser promovido a general de três estrelas e fica como meu adjunto de operações". E eu: "já lhe disse, a partir deste momento regresso à minha posição de major Otelo Saraiva de Carvalho". Mais tarde o Partido Socialista convida-me através de Almeida Santos, para deputado, mas eu estava interessado no projecto global. P. - Mas quem estava consigo? R. - Muitos, os trabalhadores, a malta que me tinha apoiado nas eleições. P. - Quais as cabeças pensantes? R. - O Manuel Serra, o Pedro Goulart... P. - Mas já estava muito isolado já, politicamente. R. - É evidente que sim, mas as coisas grandes às vezes começam assim. Partidos destruiram a unidade P. - Mas não me diga que ainda está a pensar no projecto global? R. - Não, porque tive muitas decepções. Esses projectos têm que ter pessoas com uma força de carácter muito grande, com uma postura ideológica, mas as pessoas foram abandonando. À medida que a vida política entrou na rotina, na comodidade da democracia representativa, pode-se mandar umas papaias, escrever para os jornais, está-se sempre do contra, mas não se sai de casa, de chinelas a ver televisão. A rotina não obriga a tomar posições, a nada, o que é quanto a mim um dos principais defeitos da democracia representativa. P. - Hoje identifica-se politicamente com alguém, vota em alguém? R. - Às vezes sim, às vezes não. Eu sou de facto contrário a esta democracia representativa - os do PS falam contra os "jobs for the boys", mas todos os "boys" têm "jobs", não há fronteiras entre os partidos, é bom mudar uns de vez em quando, põe-se lá outros... O processo revolucionário deu-me a medida do que era possível fazer através da capacidade de intervenção das massas. Vi gente formidável, com grande dinamismo, fizeram coisas giras, foi pena que isso tudo se tenha perdido. Muito daquilo que os trabalhadores têm, que as mulheres têm, foram conquistadas nesse período. Há um livro muito giro em que intervêm muitas pessoas - entre eles o Fuzeta da Ponte, que foi o primeiro governador do distrito de Setúbal após o 25 de Abril, elementos da comissão administrativa que tomou conta da Câmara de Setúbal depois do 25 de Abril e trabalhadores de fábricas e rurais do distrito que encabeçaram lutas durante o PREC. Tive a honra e o prazer de prefaciar esse livro, que vai ser editado pelo jornal "Setúbal na Rede", de Pedro Brinca, que era operador de som da TSF. Ia para Angola, estive lá quinze dias e devorei aquilo. Emocionei-me bestialmente por 25 anos depois do PREC ler o que tinham sido os sonhos e as lutas de malta que é hoje anónima. Todos eles têm a perspectiva que eu tenho hoje: que o grande vector de força de uma revolução, a unidade dos trabalhadores, foi desfeito pelos partidos. P. - Já viu o que é uma vida política sem partidos? Leva ao fascismo. R. - Há quem tenha essa perspectiva. Mas eu considero que o povo tinha pelo MFA uma paixão muito grande, que só começa a esboroar-se quando os partidos entram em luta e começam eles próprios a abrir fissuras. P. - Logo nas primeiras eleições o povo disse não a esse tipo de projecto, não seguindo os apelos para que votasse em branco, que era um voto no MFA. R. -O voto era uma arma fundamental para um povo que tinha sido impedido de votar durante 50 anos. Mas isso mudou rapidamente com o povo desiludido porque colocava o seu voto, durante quatro anos, naqueles que não queriam saber para nada dos seus interesses. P. -A sua experiência na FUP (Frente de Unidade Popular) foi ainda mais pungente: acabou num movimento que cometia atentados. Quem estava a definir os interesses do povo? Um grupo de encapuçados (e que hoje, segundo a sua tese, nem se sabe quem eram) que dava ordens para se matar, para se roubar. É isso a felicidade do povo? R. - É evidente que não. Eu nunca tive nada a ver com nenhuma acção das FP/25. Nunca interferi rigorosamente em nada. P. -Não acha que a sua figura, o símbolo que era, acabou por inspirar a tragédia do terrorismo,ainda que o Otelo não tenha dado directamente a ordem para matar? R. - Eu não seria tão rigoroso nesse tipo de análise. Abri hipóteses para isso, mas esse tipo de acções que foram desenvolvidas a certa altura pelas FP-25, como os homicídios considerados de carácter político de administradores de empresa, foi muito resultado não de gente que vinha das BR''s, fundadas pelo Carlos Antunes. As BR''s, quando regressam a Portugal em finais de 1979, e vão fundar as FP-25, já com a experiência que trazem do PRP-BR, não querem ficar sujeitas a uma direcção política acima deles que os transforme em braço armado seja do que for. É um partido clandestino armado, mas não advoga os homicídios. Só que outros elementos que eles vão recrutar, (elementos que não eram das BR, tive oportunidade de conversar com eles em Monsanto) vão depois tomar essa iniciativa. Isso foi o princípio do fim das FP-25. Havia um compromisso do PCP com o 25 de Novembro P. - Como é que analisa aquela posição do PCP de ter desmobilizado os civis no 25 de Novembro? R. - Isso leva-me a crer que o PCP pudesse, através da instrumentalização que fazia dos pára-quedistas, estivesse não dentro do planeamento (aí deveriam estar os oficiais da esquerda militar ligados ao partido) mas a apoiá-lo. Tal como tinha apoiado a acção nos Comandos, em Julho de 1975, em que o PCP, com malta da Sorefame, queria sanear o Jaime Neves do regimento. Vim a saber depois no plenário dos Comandos que elementos que tinham cortado a entrada de Jaime Neves de facto tinham estado na sede do PCP, na Rua António Serpa, na noite anterior, e tinham obtido o apoio do partido para essa acção. Foi a mesma coisa a passar-se em 25 de Novembro: perguntou-se ao PCP se dava apoio de massas e eles ''sim senhora, nós cá estamos''. Logo às primeiras horas da manhã de 25 - não havia notícias sobre o que se estava a passar - e betoneiras da J. Pimenta vão bloquear as saídas do regimento de Comandos, considerada a unidade mais forte de perigo para a esquerda militar. Foram essas coisas que me levaram a pensar na possibilidade de existência de um plano mais alargado que não era só os "páras" irem às unidades da Força Aérea explicarem a sua luta. Para acabar com essa acção, o general Costa Gomes, em vez de chamar o líder da Intersindical para retirar as betoneiras do J. Pimenta, chama a Belém o Dr. Álvaro Cunhal e pede-lhe que desmobilize as massas do partido de qualquer acção de rua, para que, se houver troca de tiros, as massas não tornem impeditivo que a acção termine rapidamente, e a situação descambe numa guerra civil. A preocupação do Costa Gomes parece ser evitar a guerra civil a todo o custo e se há massas na rua, e massas que se podem armar, a situação pode descambar mesmo numa guerra civil. P. - No fundo, o Dr. Cunhal foi um homem "razoável", como diz Costa Gomes. R. - Claro. O que me causa alguma estranheza é todo um jogo entre partido e militares ligados ao partido que eu não sei até que ponto são combinadas. Parecia-me haver a promessa do partido de apoio a uma acção militar que visasse alterar a correlação de forças a nível do Governo. Quem possivelmente organiza um plano actuante são os militares ligados ao PCP, não sei se com apoio de militares ligados ao PCP que estão colocados no COPCON. Mas a verdade é que as betoneiras do J. Pimenta bloqueiam as saídas dos Comandos, e a verdade é que massas do PCP são travadas e não vem ninguém para a rua, a pedido do general Costa Gomes, e Álvaro Cunhal obedece. E é verdade também que já tinha havido a conversa entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal. Tendo o Álvaro Cunhal garantido para o partido a sua continuidade no quadro de uma democracia representativa para lá do 25 de Novembro, parece que isso vai chocar com a presença das betoneiras para impedir a saída da unidade que os militares ligados ao PCP viam como a unidade mais forte e capaz de intervir contra os pára-quedistas. Dá quase a sensação de que a presença das betoneiras se enquadra num plano, caso contrário não se percebe porque estão lá às sete da manhã. Mas o partido já tem um compromisso com o Melo Antunes e Álvaro Cunhal recebe as garantias de Costa Gomes, e manda desmobilizar as massas. Desaparece o COPCON, que foi um alívio para o PCP, fica esmagada a esquerda revolucionária e os militares revolucionários vão para casa. Os militares ligados ao PCP, da linha gonçalvista, são sacrificados, mas o partido salva-se. P. -Essa tese converge um pouco com a do Pinheiro de Azevedo... R. - Pinheiro de Azevedo vai mais longe, considera o Eanes um cripto-comunista. P. - No seu livro, Álvaro Cunhal vai mais longe, diz que o grande derrotado do 25 de Novembro foi Mário Soares. R. - O PS mantém-se com uma posição muito forte. Vai haver a tentativa de civilização da sociedade portuguesa, com o afastamento dos militares. A luta para afastar os miliares era encabeçada pelo PS. Daí o grande desgosto dos Nove que estavam convencidos de que, liquidando a esquerda revolucionária, liquidando o COPCON, mantendo o PCP no quadro da democracia representativa, a situação estava estável, regressava a disciplina aos quartéis, o Eanes vai buscar às prateleiras os generais e parece tudo voltar à normalidade. Mas nisto há uma anormalidade que era a manutenção do Conselho da Revolução. Os Nove acham que em representação do MFA e da pureza do 25 de Abril devem manter-se como os garantes de uma Constituição que ainda não existe. Aqui há sempre a luta surda pelo poder que o PS quer total, e o Grupo dos Nove, que procura impedir os excessos das forças de direita. Costa Gomes evitou a guerra civil, mas eu também P. - O que pensa de Costa Gomes? R. - Acho que é um homem com características muito positivas. Embora tenha tido com ele uma relação muito cordial, acho-o um homem extremamente calculista, por vezes dissimulado, e que joga fundamentalmente com a sua própria conveniência, com o seu equilíbrio, embora procure arvorar sempre a defesa dos valores fundamentais, do povo, da pátria. Isto desde que o conheci, depois do 25 de Abril. P. - Mas não acha que ele salvou o país de uma guerra civil no Verão Quente? R. - Julgo que a intervenção dele junto de Álvaro Cunhal tem essa preocupação, evitar massas na rua, se há massas pode haver um prolongamento, ele não sabe o que está em jogo, pode levar a um confronto de forças militares. Agora não se lhe pode atribuir a total responsabilidade de ter evitado a guerra civil em Portugal, porque eu também posso reivindicar isso para mim. Quando o comandante da Força de Fuzileiros do Continente se põe à minha disposição, muito antes de Costa Gomes ter pedido a Rosa Coutinho e Martins Guerreiro para lá irem, já eles estavam travados por mim. P. - O que se teria passado, se tivessa aceite? R. - Era a tal Comuna de Lisboa que estava previsto pelo Grupo dos Nove que existisse. De facto, apesar da palavra de honra que dei ao Vasco Lourenço, eles estavam à espera disso. Os líderes partidários foram para o Porto... P. - Então foi uma felicidade aquele resultado do 25 de Novembro, ou não? R. - Eu diria que a dar-se -como era fatal que se desse - tinha que haver um travão qualquer. Houve uma revolução que nos catapultou de grande turbulência, haveria que pôr cobro àquela situação. Havia uma perspectiva de tranquilamente fazer regressar a disciplina através do cansaço, do exemplo, da pedagogia e não de um golpe brusco. É possível que isto fosse um processo lento, que não se coadunasse com a necessidade que havia de pôr ordem no país, para que pudesse haver governo. Julgo que os meus camaradas dos Nove, secundados pela esmagadora maioria dos oficiais dos três ramos das Forças Armadas, tiveram razão ao dizerem que o 25 de Novembro foi feito para fazer regressar o processo à pureza do 25 de Abril. De facto, em 25 de Abril, o programa político do MFA que foi anunciado ao país e a todo o mundo, apontava para a instalação de uma democracia representativa. É a dinâmica do processo que se lhe segue que a mim e a alguns outros abre perspectivas diferentes. Está bem, era um processo que estava anárquico, havia vários centros de poder que se degladiavam, ninguém se entendia, toda a gente fazia comunicados, o clima era anarquista. Eanes, Melo Antunes, Soares e Cunhal P. - O que pensa de Ramalho Eanes? R. - Conheci-o na Academia Militar, ele possivelmente não se lembrará de mim, jovem cadete dois anos mais moderno, mas sempre ouvi referências a ele, enquanto jovem cadete do segundo ano de infantaria, que me levavam a considerá-lo um rapaz de enormes qualidades. Depois tive o prazer de vir a encontrá-lo na Guiné, ele estava como capitão antigo e chefe da secção de radiodifusão e imprensa. Só o vim a conhecer porque ele tomou parte naquele comando que foi transitoriamente substituir os três majores que foram liquidados pelo PAIGC em Abril de 1970. Quando ele regressa passei a ter com ele um contacto estreito, admirando nele qualidades, uma dedicação muito grande à causa militar, um sentido profissional e ético muito forte e (uma qualidade que ele demonstrou em várias ocasiões) uma frontalidade muito grande perante superiores, sem qualquer problema, consciente do seu próprio valor e mérito, e a defesa intransigente que ele fazia dos subordinados. Os militares que têm uma determinada formação não têm grande vocação para a actividade política e o Eanes aí falhou. Falhou no PRD... P. - Como o senhor falhou. R. - Como eu falhei, não tenho pejo nenhum em admiti-lo. Eu disse-lhe, quando ele me visitou em Caxias: "se eu, que tenho um espírito mais civil do que tu, fracassei, tu vais fracassar também". E acabou por fracassar, deixando até uma má imagem, depois do prestígio que alcançou na presidência. P. - O que pensa de Mário Soares? R. - Socialmente, dou-me muito bem com ele, é até difícil uma pessoa não se gostar dele, não se estar bem com ele. Tem sido classificado muitas vezes como um "bon vivant". Fui muitas vezes aliciado por ele para entrar na chamada família socialista e recusei sempre. Uma vez, depois de uma reunião da Internacional Socialista, houve um grande beberete no Hotel Altis e eu fui lá. A única mesa sentada era a mesa da IS, estava o Willy Brandt a presidir, o Carlos Andrez Perez, os grandes elementos da IS e a certa altura vem alguém dizer-me que o Dr. Mário Soares pede a minha presença. Quando chego à mesa, o Dr. Mário Soares levanta-se e a mesa toda da IS levanta-se também. Apresenta-me a todos, um por um e conta ao Willy Brand: "este é Otelo Saraiva de Caralho, herói da Revolução, o meu herói preferido, já tentámos várias vezes trazê-lo para a nossa família, mas ele diz que não gosta da social-democracia, não gosta de nós". Respondi: "eu sou muito seu amigo, gosto muito de si, e gosto muito de muita gente do PS, mas com a vossa prática política, a distância que há entre a vossa prática e o vosso programa, não concordo. Por isso não posso entrar numa coisa só por interesse pessoal, isso contraria aquilo que penso dos partidos políticos e do PS no seu todo". P. - E o que pensa de Melo Antunes? R. - O Melo Antunes é do curso do Eanes, da Academia Militar, então Escola do Exército. Eu conhecia-o de lá, tinha a informação de que era um elemento muito politizado, um intelectual. Ele disse uma vez numa entrevista quando lhe fizeram a mesma pergunta a meu respeito: "Entre mim e o Otelo houve sempre uma certa cerimónia". E eu concordei. Depois vim a conhecê-lo bem antes do 25 de Abril. A primeira reunião em que ele comparece é em Fevereiro de 1974 e aí é-lhe cometida imediata responsabilidade de elaboração do documento "O Movimento das Forças Armadas e a Nação" que vem a ser lido no último grande plenário em Março. Há uma leitura prévia em minha casa, em que o Melo Antunes também esteve. Na instituição militar, ele parecia estar dentro de uma camisa de forças, não tinha "jeito" para a vida militar, embora procurasse ser um elemento cumpridor e tenho referências de que era estimado. Muito diferente do Eanes, um oficial quase prussiano. O Melo Antunes era muito civil. Era um homem profundamente vocacionado para a política e foi um elemento de grande valor para o MFA, pelo conhecimento que tinha das coisas e pela sensatez que procurava aplicar nos arroubos revolucionários. Fazia-me recomendações, ocasionalmente discutia com ele sobre dúvidas que eu tinha. Uma vez disse-me: "supõe tu que se instalava a democracia directa em Portugal, assumes a responsabilidade histórica de ver crescer nos Açores numa dimensão incontrolável a FLA e, de repente, os Açores ficarem ligados aos Estados Unidos?" De facto era um peso, como é que eu podia suportar um peso histórico desses? "E a Madeira?", perguntou ele. "Vês, essas coisas têm que ir devagar, não podes instalar aqui a democracia directa, no fim de 50 anos de fascismo". Tinha esse bom senso. P. - Ele não tentou chamá-lo em 78/79 para o grupo dele, quando o senhor estava a ser namorado pela extrema-esquerda? R. - Sim, mas eu não me enquadrava nos grandes partidos, não me interessavam nada, tinha a sensação de que me coartavam na minha liberdade. Farto de disciplina já eu estava na vida militar. Vi sempre uma maior esponteidade na esquerda revolucionária, na FSP, mesmo nos trotsquistas, no PRP, nos partidos que não estavam enquadrados. A UDP já não, tinham o farol do Enver Hoxa. As pequenas formações de que eu gostava eram aquelas que não tinham nenhum farol, nem União Soviética, nem China. Tudo aquilo que era feito pelas massas populares resultava muito mais quando havia atrás dela a esquerda revolucionária do que quando estava o PCP. P. -Que relações teve com o PCP? R. - Foram sempre más. O meu principal adversário foi sempre o PCP. Enquanto estive na área do poder, em desespero, chega a criar-se a FUR, uma frente da esquerda revolucionária com o PCP, pela primeira vez. Nessa altura e mesmo antes, o Álvaro Cunhal pedia-me uma audiência (aconteceu duas ou três vezes), outras vezes aparecia o Jaime Serra [responsável pela segurança do PCP], ou o Rogério de Carvalho, que estava em Caxias, a ver os documentos da PIDE. Quando se dá o 25 de Novembro cortam comigo e quando foi da minha campanha presidencial foi o massacre. P. - E o que pensa do Dr. Álvaro Cunhal? R. - Acho bem. Não queria repetir chavões, que era um homem muito inteligente, mas se era muito inteligente devia ter visto o que se ia passar. Eu também devia ter visto quando foi das FP-25, até me foi dito, mas quis continuar. Eu tinha um projecto em mente, queria concorrer às eleições parlamentares de 1984, queria estar lá, queria defender posições mesmo que estivesse isolado na Assembleia da República, e queria levar aquele projecto até às eleições de 1984. Por isso me mantive nesse barco que depois naufragou estrondosamente. A minha convicção, talvez a tal utopia, era que enquanto o MFA tivesse a confiança do povo, nós poderíamos aguentar a situação. Chamávamos os melhores crânios para o executivo. Nós tínhamos a força e a confiança do povo. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

DO EDITOR

À lupa

CORREIO

Vila DE Rei

Ramalho Eanes: A direita não queria aquele 25 de Novembro

Otelo: Havia um compromisso do PC com Melo Antunes

Uma furtiva lágrima

O fora-da-lei

História de uma dinastia

As gasogenças

A menina das partidas

Tiger Woods, o mais bem pago do planeta

CRÓNICAS

Subsídios para um estupidário

O dia do julgamento

VOZES EM PORTUGUÊS

A menina dos ovos de ouro

GURU

Guru

NO CALOR DA NET

Beatles, número um

MIRAGEM

O presidente virtual

HERÓIS DA BANDA DESENHADA

Alack Sinner

HISTÓRIAS DE AMOR

Muitas qualidades

VIVER MELHOR

Quem quer viver para sempre?

BELEZA

Perfumar e tratar do corpo

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

IMPRESSÃO DIGITAL

[8.] Telecel, Teleweb

DESAFIOS

Estratégia para descobrir o prémio

marcar artigo