Guerra civil esteve por um fio

16-03-2001
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Guerra Civil Esteve por Um Fio

Por ADELINO GOMES

Sábado, 25 de Novembro de 2000 Sabe-se quem venceu - a democracia representativa-e quem perdeu - os projectos de democracia popular e directa. Mas um quarto de século depois dos acontecimentos que puseram fim ao processo revolucionário português, em 25 de Novembro de 1975, há atitudes, gestos e acções de alguns dos protagonistas, militares e civis, que continuam por esclarecer. Parece adquirido, entretanto, que não houve um mas vários planos, militares e civis. E que o país esteve a muito poucos passos de uma "pinochetada" ou de uma confrontação militar generalizada. Que de imediato degeneraria em guerra civil. A história do 25 de Novembro está escrita. Os seus contornos, mesmo alguns mais escondidos, vieram a público nos dias e meses imediatos. A edição de 1 de Dezembro do "Expresso" - 150 mil exemplares saídos com um atraso de dois dias devido ao estado de sítio imposto pelo Presidente da República -, traz numerosas informações que não vieram a confirmar-se e muita opinião misturada com notícias. Mas a reconstituição que faz dos acontecimentos político-militares e as análises dos factos que avança revelar-se-ão, no futuro, correctas e credíveis, para além de comprovarem a excelência das fontes noticiosas de que dispunha. Os acontecimentos ocorridos faz hoje 25 anos, conclui-se da leitura deste semanário, centraram-se em dois factos essenciais: a ocupação, por soldados e sargentos pára-quedistas das bases de Tancos, Monte Real, Montijo, do comando aéreo, em Monsanto e, mais tarde, da base da OTA; e a decisão do Presidente da República e Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes, de decretar o estado de sítio e dar luz verde para o desencadeamento de uma acção militar a cargo dos Comandos da Amadora, que em menos de 24 horas dominam os pára, prendem o comando da Polícia Militar, na Ajuda, e desmobilizam as débeis tentativas de resistência de oficiais e unidades afectas ao COPCON. Fica claro também da cobertura noticiosa do "Expresso" que Otelo Saraiva de Carvalho, a figura tutelar da esquerda militar não gonçalvista, declarando-se embora "acabrunhado" com a situação, não contrariou quer as posições políticas quer as acções militares patrocinadas por Costa Gomes e pelo grupo dos Nove. O jornal consegue apurar ainda que a reacção dos Comandos apoiada pelas principais unidades de fora de Lisboa bem como pela ameaça de meios aéreos entretanto transferidos para o Norte se desenvolveu segundo um plano elaborado ao longo dos meses anteriores por um grupo militar em que se destaca o tenente-coronel António Ramalho Eanes. Os dados que faltam sobre a conspiração política e a acção militar do lado dos vencedores revelá-los-ão o comandante Gomes Mota, no livro "A Resistência", editado logo no ano seguinte pelo "Expresso", e José Freire Antunes no seu livro "Segredos de Novembro", publicado em 1980, pela Europa-América. Através de entrevistas na grande imprensa ou de artigos em revistas especializadas (nomeadamente a "História" e o "Referencial", boletim da Associação 25 de Abril), alguns dos protagonistas irão juntando pormenores e clarificando intenções que confirmam o descomando reinante do lado dos revolucionários mas revelam ao mesmo tempo tensões e desconfianças não apenas entre as heterogéneas forças que se proclamam vencedoras, como também, algo inesperadamente, no interior do grupo militar que os Nove tutelam politicamente. É Vasco Lourenço (cuja nomeação para comandante da Região Militar de Lisboa virá a constituir a causa próxima da confrontação) quem desfere, do lado dos Nove, as primeira frechadas sobre Eanes. Num artigo publicado no "Referencial", em 1994, este membro influente do MFA e dos Nove diz que Eanes fora seu "adjunto", ainda que tenha acabado "por ser o principal comandante operacional", e acusa-o de lhe ter ocultado a distribuição de armas a civis do PS. Alude ainda a iniciativas menos claras do grupo militar, interrogando-se sobre sobre a existência de "ligações espúrias" com o MDLP e de um plano ofensivo elaborado à margem dos Nove e que poderia vir a enquadrar um golpe de direita. As entrevistas do PÚBLICO, nos últimos dias, a personalidades militares como Eanes, Otelo e Vasco Lourenço, ao dirigente do MDLP Alpoim Calvão, a civis envolvidos em estruturas armadas como Carlos Antunes, Raimundo Narciso e Manuel Alegre (PRM-BR, PCP/ARA e segurança do PS, respectivamente) e ao cónego Melo, figura influente da resistência anticomunista no Norte do país, ajudam a responder melhor a algumas das dúvidas sobre os acontecimentos de há 25 anos. Entre elas, a eventual responsabilidade de Otelo na saída dos páras, a cadeia de comando do lado dos vencedores e a distribuição de armas a civis na tarde do 25 de Novembro (ver textos jornalísticos e as cartas de Loureiro dos Santos e Costa Martins, nestas páginas). Um dos mistérios ainda por esclarecer diz respeito à dimensão das ligações e aos graus de articulação das forças moderadas, civis e militares, com movimentos da direita e da extrema direita. Manuel Alegre recusa-se a especular sobre o eventual envolvimento das milícias do PS ao lado das forças do MDLP e do ELP, mas concorda com Melo Antunes que, numa das suas últimas entrevistas antes de morrer admitiu a hipótese de se ter estado em Portugal à beira de uma "pinochetada". Ao PÚBLICO Vasco Lourenço repete o episódio da lista de oficiais a prender enviada da Amadora para a PSP de Lisboa, reitera a convicção de que o grupo militar chefiado por Eanes "tinha vários núcleos" e "outras ligações", e pergunta se estes não teriam um plano ofensivo que poderia ter levado à ultrapassagem dos Nove, ligando-os a "forças mais à direita". O duplo envolvimento do PCP - nas ruas e no COPCON, com os sublevados; em Belém e numa eventual aliança prévia "conjuntural e objectivamente existente" com "destacados participantes na preparação do golpe [dos Nove] e na sua execução", segundo Álvaro Cunhal revela em livro recente - conheceu um novo ângulo de análise com as revelações de Raimundo Narciso ao PÚBLICO (edição de 20/11). Narciso, hoje no PS, diz que o PCP se preparara "para tudo, inclusive para constituir grupos armados" e conta que, já "a uma hora avançada do dia 25 de Novembro", ele próprio se deslocou ao Ralis com a intenção de obter "alguns milhares de armas" que pudessem ser utilizadas "se houvesse uma decisão política nesse sentido". Enquanto isto, o PS recebia centenas de armas, por ordem do grupo militar sediado na Amadora. E saber-se-á anos mais tarde, através de um livro de memórias do britânico James Callaghan, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros, que a Grã-Bretanha estabelecera planos "de apoio efectivo" às forças moderadas, caso se registasse uma "tentativa de golpe comunista". Mário Soares confirmou este cenário. A novidade agora revelada é que até Alegre, que se encontrava em 25 de Novembro no Porto junto de Soares e dirigia, com Edmundo Pedro, as operações de resistência armada do PS, foi mantido fora desses planos, deles só vindo a tomar conhecimento 19 anos depois, por declarações do fundador do PS a Teresa de Sousa (PÚBLICO de 23/4/1994). Um episódio também só agora revelado por Alegre ilustra o impacto da velocidade do processo revolucionário nos sectores mais moderados das Forças Armadas: Ramalho Eanes e Jaime Neves, que virão a revelar-se os dois operacionais de topo do 25 de Novembro, pensaram abandonar o país, convencidos da iminência de um regime de democracia popular em Portugal. Para além destes contributos, as citadas entrevistas mostram - de forma flagrante e talvez insuspeitada por muitos até agora - quão perto o país esteve do eclodir de uma guerra civil, que aliás, precisou o cónego Melo, teve data marcada para o dia 30 de Novembro. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Guerra civil esteve por um fio

As versões dos protagonistas sobre os mistérios que perduram

1975 - Outubro

Crónica de um golpe há muito anunciado

Uma História em aberto

Alguns até já eram do PS

... mas muitos andavam mais à esquerda

1975 - Novembro

Citações

Baptista-Bastos*: Não tenho medo de dizer que tive medo

Eanes engana-se, Otelo mentiu

A cadeia de comando do 25 de Novembro

Guerra Civil Esteve por Um Fio

Por ADELINO GOMES

Sábado, 25 de Novembro de 2000 Sabe-se quem venceu - a democracia representativa-e quem perdeu - os projectos de democracia popular e directa. Mas um quarto de século depois dos acontecimentos que puseram fim ao processo revolucionário português, em 25 de Novembro de 1975, há atitudes, gestos e acções de alguns dos protagonistas, militares e civis, que continuam por esclarecer. Parece adquirido, entretanto, que não houve um mas vários planos, militares e civis. E que o país esteve a muito poucos passos de uma "pinochetada" ou de uma confrontação militar generalizada. Que de imediato degeneraria em guerra civil. A história do 25 de Novembro está escrita. Os seus contornos, mesmo alguns mais escondidos, vieram a público nos dias e meses imediatos. A edição de 1 de Dezembro do "Expresso" - 150 mil exemplares saídos com um atraso de dois dias devido ao estado de sítio imposto pelo Presidente da República -, traz numerosas informações que não vieram a confirmar-se e muita opinião misturada com notícias. Mas a reconstituição que faz dos acontecimentos político-militares e as análises dos factos que avança revelar-se-ão, no futuro, correctas e credíveis, para além de comprovarem a excelência das fontes noticiosas de que dispunha. Os acontecimentos ocorridos faz hoje 25 anos, conclui-se da leitura deste semanário, centraram-se em dois factos essenciais: a ocupação, por soldados e sargentos pára-quedistas das bases de Tancos, Monte Real, Montijo, do comando aéreo, em Monsanto e, mais tarde, da base da OTA; e a decisão do Presidente da República e Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes, de decretar o estado de sítio e dar luz verde para o desencadeamento de uma acção militar a cargo dos Comandos da Amadora, que em menos de 24 horas dominam os pára, prendem o comando da Polícia Militar, na Ajuda, e desmobilizam as débeis tentativas de resistência de oficiais e unidades afectas ao COPCON. Fica claro também da cobertura noticiosa do "Expresso" que Otelo Saraiva de Carvalho, a figura tutelar da esquerda militar não gonçalvista, declarando-se embora "acabrunhado" com a situação, não contrariou quer as posições políticas quer as acções militares patrocinadas por Costa Gomes e pelo grupo dos Nove. O jornal consegue apurar ainda que a reacção dos Comandos apoiada pelas principais unidades de fora de Lisboa bem como pela ameaça de meios aéreos entretanto transferidos para o Norte se desenvolveu segundo um plano elaborado ao longo dos meses anteriores por um grupo militar em que se destaca o tenente-coronel António Ramalho Eanes. Os dados que faltam sobre a conspiração política e a acção militar do lado dos vencedores revelá-los-ão o comandante Gomes Mota, no livro "A Resistência", editado logo no ano seguinte pelo "Expresso", e José Freire Antunes no seu livro "Segredos de Novembro", publicado em 1980, pela Europa-América. Através de entrevistas na grande imprensa ou de artigos em revistas especializadas (nomeadamente a "História" e o "Referencial", boletim da Associação 25 de Abril), alguns dos protagonistas irão juntando pormenores e clarificando intenções que confirmam o descomando reinante do lado dos revolucionários mas revelam ao mesmo tempo tensões e desconfianças não apenas entre as heterogéneas forças que se proclamam vencedoras, como também, algo inesperadamente, no interior do grupo militar que os Nove tutelam politicamente. É Vasco Lourenço (cuja nomeação para comandante da Região Militar de Lisboa virá a constituir a causa próxima da confrontação) quem desfere, do lado dos Nove, as primeira frechadas sobre Eanes. Num artigo publicado no "Referencial", em 1994, este membro influente do MFA e dos Nove diz que Eanes fora seu "adjunto", ainda que tenha acabado "por ser o principal comandante operacional", e acusa-o de lhe ter ocultado a distribuição de armas a civis do PS. Alude ainda a iniciativas menos claras do grupo militar, interrogando-se sobre sobre a existência de "ligações espúrias" com o MDLP e de um plano ofensivo elaborado à margem dos Nove e que poderia vir a enquadrar um golpe de direita. As entrevistas do PÚBLICO, nos últimos dias, a personalidades militares como Eanes, Otelo e Vasco Lourenço, ao dirigente do MDLP Alpoim Calvão, a civis envolvidos em estruturas armadas como Carlos Antunes, Raimundo Narciso e Manuel Alegre (PRM-BR, PCP/ARA e segurança do PS, respectivamente) e ao cónego Melo, figura influente da resistência anticomunista no Norte do país, ajudam a responder melhor a algumas das dúvidas sobre os acontecimentos de há 25 anos. Entre elas, a eventual responsabilidade de Otelo na saída dos páras, a cadeia de comando do lado dos vencedores e a distribuição de armas a civis na tarde do 25 de Novembro (ver textos jornalísticos e as cartas de Loureiro dos Santos e Costa Martins, nestas páginas). Um dos mistérios ainda por esclarecer diz respeito à dimensão das ligações e aos graus de articulação das forças moderadas, civis e militares, com movimentos da direita e da extrema direita. Manuel Alegre recusa-se a especular sobre o eventual envolvimento das milícias do PS ao lado das forças do MDLP e do ELP, mas concorda com Melo Antunes que, numa das suas últimas entrevistas antes de morrer admitiu a hipótese de se ter estado em Portugal à beira de uma "pinochetada". Ao PÚBLICO Vasco Lourenço repete o episódio da lista de oficiais a prender enviada da Amadora para a PSP de Lisboa, reitera a convicção de que o grupo militar chefiado por Eanes "tinha vários núcleos" e "outras ligações", e pergunta se estes não teriam um plano ofensivo que poderia ter levado à ultrapassagem dos Nove, ligando-os a "forças mais à direita". O duplo envolvimento do PCP - nas ruas e no COPCON, com os sublevados; em Belém e numa eventual aliança prévia "conjuntural e objectivamente existente" com "destacados participantes na preparação do golpe [dos Nove] e na sua execução", segundo Álvaro Cunhal revela em livro recente - conheceu um novo ângulo de análise com as revelações de Raimundo Narciso ao PÚBLICO (edição de 20/11). Narciso, hoje no PS, diz que o PCP se preparara "para tudo, inclusive para constituir grupos armados" e conta que, já "a uma hora avançada do dia 25 de Novembro", ele próprio se deslocou ao Ralis com a intenção de obter "alguns milhares de armas" que pudessem ser utilizadas "se houvesse uma decisão política nesse sentido". Enquanto isto, o PS recebia centenas de armas, por ordem do grupo militar sediado na Amadora. E saber-se-á anos mais tarde, através de um livro de memórias do britânico James Callaghan, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros, que a Grã-Bretanha estabelecera planos "de apoio efectivo" às forças moderadas, caso se registasse uma "tentativa de golpe comunista". Mário Soares confirmou este cenário. A novidade agora revelada é que até Alegre, que se encontrava em 25 de Novembro no Porto junto de Soares e dirigia, com Edmundo Pedro, as operações de resistência armada do PS, foi mantido fora desses planos, deles só vindo a tomar conhecimento 19 anos depois, por declarações do fundador do PS a Teresa de Sousa (PÚBLICO de 23/4/1994). Um episódio também só agora revelado por Alegre ilustra o impacto da velocidade do processo revolucionário nos sectores mais moderados das Forças Armadas: Ramalho Eanes e Jaime Neves, que virão a revelar-se os dois operacionais de topo do 25 de Novembro, pensaram abandonar o país, convencidos da iminência de um regime de democracia popular em Portugal. Para além destes contributos, as citadas entrevistas mostram - de forma flagrante e talvez insuspeitada por muitos até agora - quão perto o país esteve do eclodir de uma guerra civil, que aliás, precisou o cónego Melo, teve data marcada para o dia 30 de Novembro. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Guerra civil esteve por um fio

As versões dos protagonistas sobre os mistérios que perduram

1975 - Outubro

Crónica de um golpe há muito anunciado

Uma História em aberto

Alguns até já eram do PS

... mas muitos andavam mais à esquerda

1975 - Novembro

Citações

Baptista-Bastos*: Não tenho medo de dizer que tive medo

Eanes engana-se, Otelo mentiu

A cadeia de comando do 25 de Novembro

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