Teatro atrás das grades

07-03-2001
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Teatro Atrás das Grades

Por INÊS NADAIS

Segunda-feira, 12 de Fevereiro de 2001

Há nervoso miudinho e angústias súbitas de última hora, como se a estreia fosse o milagre maior desta odisseia de um ano. Não é. Mesmo que "PRJ X. Oresteia" não chegasse ao fim e o Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira não vivesse por três dias a azáfama deslumbrada dos primeiros passos de um teatro a sério, haveria 23 reclusos-actores com um património inédito de improváveis boas memórias. Esta é uma viagem sem sobressaltos a um mundo fora do mundo onde o teatro pode ser tudo o que não é aqui. E onde mesmo os chavões mais gastos fazem algum sentido.

"Uma porta bem trancada / Num lugar assustador / Onde não existe paz / Nem carinho nem amor"*

Há algo de cínico numa prisão em que as paredes são de um cor-de-rosa assumido digno do melhor dos mundos e onde a opressão parece vir de esguelha. Mas só à primeira vista. Com tempo, a desonestidade dos azulejos assenta na perfeição a um universo de eufemismos em que há sinónimos de uma absurda frieza técnica para palavras desagradáveis como preso ou cadeia, que cada um se habitua a auto-censurar nas conversas mais corriqueiras. Não é em lugares assim, excluídos do mundo normal, que o teatro a sério costuma fazer-se. Mas foi num lugar assim que se passou um ano a virar do avesso uma obra-chave do repertório trágico, a imensa "Oresteia" que Ésquilo escreveu num tempo grego sem regresso. Por teimosia, mas também pela curiosidade de assistir de perto a um milagre construído de raíz e à revelia de todas as baixas. O resultado estará à vista nos próximos dias 17, 18 e 19, quando um punhado de reclusos-actores e uns quantos técnicos de apoio recém-formados fizerem a sua estreia, na mesma capela do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira (EPPF) onde "PRJ X. Oresteia" e a companhia Retaguarda - Teatro Fechado nasceu do zero e se pôs de pé.

Já lá vão uns anos desde a primeira incursão do encenador Nuno Cardoso no EPPF. Foi pela mão da companhia Visões Úteis que o actual director do Auditório Nacional Carlos Alberto começou a arquitectar um projecto que só foi possível muito depois, na Capital Europeia da Cultura em que alguns planos improváveis se tornaram realidade. Como estes "Teatros do Outro", uma operação de descentralização posta em marcha pela área das artes do palco. É num ciclo que leva o teatro a territórios onde a cidadania é um dado pouco adquirido que esta versão muito particular da "Oresteia" se inscreve. Até 2001, não houve dinheiro nem empurrões - e nem o encenador nem Zélia Fernandes, a técnica responsável, com Felicidade Castro, pela animação sociocultural no EPPF, puderam dar ordem de marcha a uma vontade comum. Quando a ideia foi aprovada e os cinco mil contos do apoio dados como certos, Nuno Cardoso, Regina Guimarães, Saguenail e Albrecht Loops iniciaram um percurso de curvas quase diárias até à prisão. Mesmo no Inverno, quando a temperatura dentro da capela só pode estar negativa, não há agasalhos que acudam e à chegada está um elenco flutuante de saídas precárias, desistências e suicídios.

Foi num desses dias de ressaca pós-natalícia em que nenhum empenho é possível sem uma boa dose de obstinação e alguns exercícios de aquecimento à mistura que a PÚBLICA encontrou um encenador à beira de um ataque de nervos e um elenco enregelado. "A única pessoa que disse isto com tusa foi o Pílades, como o próprio nome indica. Eu já nem tenho esperança de que vocês se lembrem dos textos", desabafa Nuno Cardoso. "Eu lembro-me, carago", riposta um braço no ar. Nada que convença um encenador habituado a desculpas. "Não preciso de vocês: eu faço isto muito melhor. Posso desdobrar-me em seis ou sete papéis e faço tudo sozinho. Não estou a brincar: quem faltar amanhã, sai", conclui antes que se faça tarde: a hora do almoço é sagrada, como todos os rituais da prisão.

Nos dias seguintes, a saga foi a mesma. Com mais ou menos tusa: "Mão na anca, não sabes o que isso é?". Nos melhores momentos toda a gente era amiga. "Não te rias, desdentado do caraças!", ralha Nuno Cardoso - e Lobo, 1,56m de altura, quatro argolas na orelha esquerda, um rabo de cavalo em ponto grande e um dossier debaixo do braço que parece um mural dos tempos em que a revolução era possível, mesmo que pela mão das FP25, apanha um sopapo sem maldade. Em alturas dessas, Filipe até podia ser Laís como cá fora, fazer da sua Cassandra uma Isabel Pantoja de braços no ar e ouvir as palmas do encenador, "ah, louca furiosa!". Na mó de baixo, houve rixas e narizes partidos - e a paciência esgotou-se, às vezes só para assustar. "Vocês são piores que o Benfica. O que é que querem?". "Acabar isto o mais depressa possível! Precárias!". E ponto final.

"Estou farto de sofrer / Esta vida amargurada / Já não sei o que fazer / Para sair desta embrulhada"*

Poderia ter sido outro texto qualquer, mas Nuno Cardoso fez questão de revolucionar a "Oresteia". Hoje, a alguns dias da estreia, eles têm a razão na ponta da língua: porque é a história dos primeiros passos da justiça humana. Nuno Cardoso quis apenas "fazer uma peça com eles". Para que chavões do género "o teatro é liberdade" passassem de palavras ditas da boca para fora.

O processo foi obviamente complexo: das primeiras leituras em que a "Oresteia" foi quase um conto de fadas às discussões sobre a forma que o texto deveria assumir, passando pelas palestras sobre o teatro clássico e pelas sessões de improvisação em que finalmente a palavra se soltou, passou-se um tempo vagaroso mas imprescindível. "Ao fim de alguns meses, a história dos Atridas era a história deles", recorda Regina Guimarães. O texto sobrevivente é o resultado de uma parceria que a responsável pela dramaturgia assumiu com os reclusos: "Fizemos exercícios, como na escola: temos centenas de páginas com trabalhos deles. Há no texto coisas muito bonitas que não são minhas. Metade era praticamente analfabetos, mas todos fizeram o trabalho", continua. De maneira "super-vigilante", acrescenta Saguenail, que prepara um documentário sobre a aventura da criação do Teatro Fechado. Regina explica: "Na vida normal, é de puta e caralho para cima. Mas o teatro é uma coisa séria. Quando lá cheguei com algumas frases foi uma escandaleira". Mesmo assim, até aos ensaios, "o teatro" não passou de um passatempo como outro qualquer. "Vinham pelo ambiente, para estar com gente de fora, nunca pelo espectáculo. Só em Dezembro perceberam que a peça ia realmente ser uma coisa maior do que tudo o que podiam sonhar", nota Saguenail.

Para o músico Albrecht Loops, que coordenou a banda sonora, a volatilidade do grupo foi o principal obstáculo a que as coisas se fizessem com outro ritmo. "Nunca sei com o que posso contar: ou estão agarrados ou a fazer uma cura. Volta e meia não aparecem. E alguns só estão lá para ganhar uns trocos, porque há um subsídio de dez contos mensais. No início passava-se o tempo todo a discutir o sexo dos anjos: em duas horas de trabalho aproveitavam-se cinco minutos", conta.

Embora não haja truques para conquistar confiança - "Falo muito com eles sobre futebol", comenta Nuno Cardoso - nem "aldrabices" diferentes das que acontecem em qualquer companhia autêntica, as coisas são diferentes no microcosmos da cadeia. "Pedem-nos coisas, há uma aferição constante da confiança. Nunca nada está resolvido. É um concentrado de agressividade - às vezes estamos a dois milímetros de rebentar qualquer coisa. E isso faz do teatro uma coisa perigosa, porque é preciso lidar com todos esses sentimentos obscuros e complexos. Quando o Marcos se suicidou, senti que estávamos a atear um fogo que não sabíamos apagar", confessa Regina. Regra geral, porém, sobretudo agora que a familiaridade é quase total, o ambiente é semi-festivo: "São muito calorosos: chegamos ali e parecemos o sol do meio dia". A evolução foi, de resto, notória. E se Zélia Fernandes aderiu desde o início a um projecto que lhe pareceu poder "combinar a vertente lúdica com um eixo de formação em artes dramáticas" e até criar o embrião de um núcleo de teatro que poderá ter alguma continuidade, a verdade é que outros benefícios resultaram de um ano de trocas com o exterior. "Muitos entraram no projecto timidamente, a pensar 'não sou capaz'. À medida que a formação foi decorrendo, conseguiu criar-se neles um gosto enorme pelo projecto. Há até um recluso que saiu recentemente em liberdade e pediu à Direcção Geral dos Serviços Prisionais para continuar a ter ensaios regulares até à estreia. Isto diz muito", garante. Contas feitas, a participação nesta "Oresteia" foi "uma descoberta": durante um ano, os membros de A Retaguarda puderam "sair do mundo da reclusão".

"Não quero ficar aqui / Onde sou rejeitado / Quero ir-me embora / Daqui para outro lado"*

À beira da estreia, o crime cometido pelos homens do Teatro Fechado parece irrelevante. Pelo menos enquanto a peça for peça e ali dentro todos forem actores apenas, com passados que não vêm ao caso. Para que o retrato não fique incompleto, esclareça-se que entre os 23 "há de tudo um pouco", para utilizar a expressão de Zélia Fernandes: tráfico de estupefaccientes, violação, furto e burla. Homicidas também já houve, mas saíram. Entredentes, comenta-se que "os senhores de Amarante", condenados no caso da "boîte" Mea Culpa, também por ali passaram.

É possível falar com a Retaguarda sem beliscar assuntos delicados, mas há momentos em que as culpas que cada um tem no cartório vêm ao de cima. Por tudo e por nada, aliás. Mesmo que a conversa seja sobre o significado do teatro antes desta experiência pioneira: há quem já tivesse feito na paróquia, como o Horácio, quem tenha sido o caçador do "Capuchinho Vermelho" na escola primária, como o Glória, e quem, como um dos Fernandos, conhecesse o teatro. Amador, subentende-se. "A profissão dele é ladrão, vigário", esclarece alguém: "A verdade é para ser dita, não estás aqui por ir à missa". Quando o outro Fernando toma a palavra, para dizer que só tinha visto actores na televisão, logo surge o retrato-robô: "O Fernando é peça única. Por não ter dentes. E porque não chega a velho, é como o Egisto". "Sou seropositivo. Apanhei em 92, em Custóias. A picar com seringas dos outros". Saiu de Custóias mas acabou por voltar, desta feita para o EPPF. A informação curricular é pronta: "Tentou arrombar uma cabina para ficar com as moedas!". Só isso? "E assaltou uma residência na Foz".

Histórias de vida à parte, o teatro é uma benção consensual. Do público, esperam-se mudanças de atitude. "Queremos que gostem. E que vejam que somos capazes. Lá fora pensam que somos bandidos, mas somos tão humanos como os outros. Estamos a pagar por qualquer coisa que fizemos de errado, mas não somos bichos do mato", desabafa Mário. Durante as horas diárias de ensaio, pelo menos, a prisão é com certeza um mundo melhor. Porque "PRJ X. Oresteia" não é uma peça vulgar, não é só um passatempo, não é só uma aprendizagem. Para o Filipe, por exemplo, "é ter um bocadinho da vida lá de fora". Mesmo que o texto seja "uma tragédia dentro da tragédia maior que é a prisão", como define o António Guedes, há momentos em que a imaginação dos 23 detidos já quase não está "entre os muros da prisão". E passeia lá fora, alheia ao pior, garante o Manuel: "Quando estou aqui, esqueço-me de tudo. Durante estas horas não estou preso".

*Fragmentos da autoria de Fernando Martins Lobo, recluso número 509.

Teatro Atrás das Grades

Por INÊS NADAIS

Segunda-feira, 12 de Fevereiro de 2001

Há nervoso miudinho e angústias súbitas de última hora, como se a estreia fosse o milagre maior desta odisseia de um ano. Não é. Mesmo que "PRJ X. Oresteia" não chegasse ao fim e o Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira não vivesse por três dias a azáfama deslumbrada dos primeiros passos de um teatro a sério, haveria 23 reclusos-actores com um património inédito de improváveis boas memórias. Esta é uma viagem sem sobressaltos a um mundo fora do mundo onde o teatro pode ser tudo o que não é aqui. E onde mesmo os chavões mais gastos fazem algum sentido.

"Uma porta bem trancada / Num lugar assustador / Onde não existe paz / Nem carinho nem amor"*

Há algo de cínico numa prisão em que as paredes são de um cor-de-rosa assumido digno do melhor dos mundos e onde a opressão parece vir de esguelha. Mas só à primeira vista. Com tempo, a desonestidade dos azulejos assenta na perfeição a um universo de eufemismos em que há sinónimos de uma absurda frieza técnica para palavras desagradáveis como preso ou cadeia, que cada um se habitua a auto-censurar nas conversas mais corriqueiras. Não é em lugares assim, excluídos do mundo normal, que o teatro a sério costuma fazer-se. Mas foi num lugar assim que se passou um ano a virar do avesso uma obra-chave do repertório trágico, a imensa "Oresteia" que Ésquilo escreveu num tempo grego sem regresso. Por teimosia, mas também pela curiosidade de assistir de perto a um milagre construído de raíz e à revelia de todas as baixas. O resultado estará à vista nos próximos dias 17, 18 e 19, quando um punhado de reclusos-actores e uns quantos técnicos de apoio recém-formados fizerem a sua estreia, na mesma capela do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira (EPPF) onde "PRJ X. Oresteia" e a companhia Retaguarda - Teatro Fechado nasceu do zero e se pôs de pé.

Já lá vão uns anos desde a primeira incursão do encenador Nuno Cardoso no EPPF. Foi pela mão da companhia Visões Úteis que o actual director do Auditório Nacional Carlos Alberto começou a arquitectar um projecto que só foi possível muito depois, na Capital Europeia da Cultura em que alguns planos improváveis se tornaram realidade. Como estes "Teatros do Outro", uma operação de descentralização posta em marcha pela área das artes do palco. É num ciclo que leva o teatro a territórios onde a cidadania é um dado pouco adquirido que esta versão muito particular da "Oresteia" se inscreve. Até 2001, não houve dinheiro nem empurrões - e nem o encenador nem Zélia Fernandes, a técnica responsável, com Felicidade Castro, pela animação sociocultural no EPPF, puderam dar ordem de marcha a uma vontade comum. Quando a ideia foi aprovada e os cinco mil contos do apoio dados como certos, Nuno Cardoso, Regina Guimarães, Saguenail e Albrecht Loops iniciaram um percurso de curvas quase diárias até à prisão. Mesmo no Inverno, quando a temperatura dentro da capela só pode estar negativa, não há agasalhos que acudam e à chegada está um elenco flutuante de saídas precárias, desistências e suicídios.

Foi num desses dias de ressaca pós-natalícia em que nenhum empenho é possível sem uma boa dose de obstinação e alguns exercícios de aquecimento à mistura que a PÚBLICA encontrou um encenador à beira de um ataque de nervos e um elenco enregelado. "A única pessoa que disse isto com tusa foi o Pílades, como o próprio nome indica. Eu já nem tenho esperança de que vocês se lembrem dos textos", desabafa Nuno Cardoso. "Eu lembro-me, carago", riposta um braço no ar. Nada que convença um encenador habituado a desculpas. "Não preciso de vocês: eu faço isto muito melhor. Posso desdobrar-me em seis ou sete papéis e faço tudo sozinho. Não estou a brincar: quem faltar amanhã, sai", conclui antes que se faça tarde: a hora do almoço é sagrada, como todos os rituais da prisão.

Nos dias seguintes, a saga foi a mesma. Com mais ou menos tusa: "Mão na anca, não sabes o que isso é?". Nos melhores momentos toda a gente era amiga. "Não te rias, desdentado do caraças!", ralha Nuno Cardoso - e Lobo, 1,56m de altura, quatro argolas na orelha esquerda, um rabo de cavalo em ponto grande e um dossier debaixo do braço que parece um mural dos tempos em que a revolução era possível, mesmo que pela mão das FP25, apanha um sopapo sem maldade. Em alturas dessas, Filipe até podia ser Laís como cá fora, fazer da sua Cassandra uma Isabel Pantoja de braços no ar e ouvir as palmas do encenador, "ah, louca furiosa!". Na mó de baixo, houve rixas e narizes partidos - e a paciência esgotou-se, às vezes só para assustar. "Vocês são piores que o Benfica. O que é que querem?". "Acabar isto o mais depressa possível! Precárias!". E ponto final.

"Estou farto de sofrer / Esta vida amargurada / Já não sei o que fazer / Para sair desta embrulhada"*

Poderia ter sido outro texto qualquer, mas Nuno Cardoso fez questão de revolucionar a "Oresteia". Hoje, a alguns dias da estreia, eles têm a razão na ponta da língua: porque é a história dos primeiros passos da justiça humana. Nuno Cardoso quis apenas "fazer uma peça com eles". Para que chavões do género "o teatro é liberdade" passassem de palavras ditas da boca para fora.

O processo foi obviamente complexo: das primeiras leituras em que a "Oresteia" foi quase um conto de fadas às discussões sobre a forma que o texto deveria assumir, passando pelas palestras sobre o teatro clássico e pelas sessões de improvisação em que finalmente a palavra se soltou, passou-se um tempo vagaroso mas imprescindível. "Ao fim de alguns meses, a história dos Atridas era a história deles", recorda Regina Guimarães. O texto sobrevivente é o resultado de uma parceria que a responsável pela dramaturgia assumiu com os reclusos: "Fizemos exercícios, como na escola: temos centenas de páginas com trabalhos deles. Há no texto coisas muito bonitas que não são minhas. Metade era praticamente analfabetos, mas todos fizeram o trabalho", continua. De maneira "super-vigilante", acrescenta Saguenail, que prepara um documentário sobre a aventura da criação do Teatro Fechado. Regina explica: "Na vida normal, é de puta e caralho para cima. Mas o teatro é uma coisa séria. Quando lá cheguei com algumas frases foi uma escandaleira". Mesmo assim, até aos ensaios, "o teatro" não passou de um passatempo como outro qualquer. "Vinham pelo ambiente, para estar com gente de fora, nunca pelo espectáculo. Só em Dezembro perceberam que a peça ia realmente ser uma coisa maior do que tudo o que podiam sonhar", nota Saguenail.

Para o músico Albrecht Loops, que coordenou a banda sonora, a volatilidade do grupo foi o principal obstáculo a que as coisas se fizessem com outro ritmo. "Nunca sei com o que posso contar: ou estão agarrados ou a fazer uma cura. Volta e meia não aparecem. E alguns só estão lá para ganhar uns trocos, porque há um subsídio de dez contos mensais. No início passava-se o tempo todo a discutir o sexo dos anjos: em duas horas de trabalho aproveitavam-se cinco minutos", conta.

Embora não haja truques para conquistar confiança - "Falo muito com eles sobre futebol", comenta Nuno Cardoso - nem "aldrabices" diferentes das que acontecem em qualquer companhia autêntica, as coisas são diferentes no microcosmos da cadeia. "Pedem-nos coisas, há uma aferição constante da confiança. Nunca nada está resolvido. É um concentrado de agressividade - às vezes estamos a dois milímetros de rebentar qualquer coisa. E isso faz do teatro uma coisa perigosa, porque é preciso lidar com todos esses sentimentos obscuros e complexos. Quando o Marcos se suicidou, senti que estávamos a atear um fogo que não sabíamos apagar", confessa Regina. Regra geral, porém, sobretudo agora que a familiaridade é quase total, o ambiente é semi-festivo: "São muito calorosos: chegamos ali e parecemos o sol do meio dia". A evolução foi, de resto, notória. E se Zélia Fernandes aderiu desde o início a um projecto que lhe pareceu poder "combinar a vertente lúdica com um eixo de formação em artes dramáticas" e até criar o embrião de um núcleo de teatro que poderá ter alguma continuidade, a verdade é que outros benefícios resultaram de um ano de trocas com o exterior. "Muitos entraram no projecto timidamente, a pensar 'não sou capaz'. À medida que a formação foi decorrendo, conseguiu criar-se neles um gosto enorme pelo projecto. Há até um recluso que saiu recentemente em liberdade e pediu à Direcção Geral dos Serviços Prisionais para continuar a ter ensaios regulares até à estreia. Isto diz muito", garante. Contas feitas, a participação nesta "Oresteia" foi "uma descoberta": durante um ano, os membros de A Retaguarda puderam "sair do mundo da reclusão".

"Não quero ficar aqui / Onde sou rejeitado / Quero ir-me embora / Daqui para outro lado"*

À beira da estreia, o crime cometido pelos homens do Teatro Fechado parece irrelevante. Pelo menos enquanto a peça for peça e ali dentro todos forem actores apenas, com passados que não vêm ao caso. Para que o retrato não fique incompleto, esclareça-se que entre os 23 "há de tudo um pouco", para utilizar a expressão de Zélia Fernandes: tráfico de estupefaccientes, violação, furto e burla. Homicidas também já houve, mas saíram. Entredentes, comenta-se que "os senhores de Amarante", condenados no caso da "boîte" Mea Culpa, também por ali passaram.

É possível falar com a Retaguarda sem beliscar assuntos delicados, mas há momentos em que as culpas que cada um tem no cartório vêm ao de cima. Por tudo e por nada, aliás. Mesmo que a conversa seja sobre o significado do teatro antes desta experiência pioneira: há quem já tivesse feito na paróquia, como o Horácio, quem tenha sido o caçador do "Capuchinho Vermelho" na escola primária, como o Glória, e quem, como um dos Fernandos, conhecesse o teatro. Amador, subentende-se. "A profissão dele é ladrão, vigário", esclarece alguém: "A verdade é para ser dita, não estás aqui por ir à missa". Quando o outro Fernando toma a palavra, para dizer que só tinha visto actores na televisão, logo surge o retrato-robô: "O Fernando é peça única. Por não ter dentes. E porque não chega a velho, é como o Egisto". "Sou seropositivo. Apanhei em 92, em Custóias. A picar com seringas dos outros". Saiu de Custóias mas acabou por voltar, desta feita para o EPPF. A informação curricular é pronta: "Tentou arrombar uma cabina para ficar com as moedas!". Só isso? "E assaltou uma residência na Foz".

Histórias de vida à parte, o teatro é uma benção consensual. Do público, esperam-se mudanças de atitude. "Queremos que gostem. E que vejam que somos capazes. Lá fora pensam que somos bandidos, mas somos tão humanos como os outros. Estamos a pagar por qualquer coisa que fizemos de errado, mas não somos bichos do mato", desabafa Mário. Durante as horas diárias de ensaio, pelo menos, a prisão é com certeza um mundo melhor. Porque "PRJ X. Oresteia" não é uma peça vulgar, não é só um passatempo, não é só uma aprendizagem. Para o Filipe, por exemplo, "é ter um bocadinho da vida lá de fora". Mesmo que o texto seja "uma tragédia dentro da tragédia maior que é a prisão", como define o António Guedes, há momentos em que a imaginação dos 23 detidos já quase não está "entre os muros da prisão". E passeia lá fora, alheia ao pior, garante o Manuel: "Quando estou aqui, esqueço-me de tudo. Durante estas horas não estou preso".

*Fragmentos da autoria de Fernando Martins Lobo, recluso número 509.

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