EXPRESSO: Cartaz

08-09-2001
marcar artigo

Sem Ícaros nem ácaros O breviário de Carlos Alberto Machado, pequenas dores em voz grande VENTILADOR de Carlos Alberto Machado (Elefante, 2000, 58 págs., 1575$00, 7,85 euros) Manuel de Freitas

JORGE SIMÃO Carlos Alberto Machado O nome de Carlos Alberto Machado será certamente mais conhecido na área da dramaturgia, quer pelas várias peças que assinou, quer pelo ensaio que dedicou ao Teatro da Cornucópia (As Regras do Jogo, Frenesi, 1999). Enquanto poeta, o autor revelou-se em 2000 com Mundo de Aventuras (Évora, Ataegina), ao qual se vem agora juntar Ventilador. Logo o poema inicial deste livro nos convence de que estamos perante uma voz discreta, avessa a programas, escolas e ao propósito talvez risível de mudar o mundo (nem sequer o seu, pessoal): «Não é que não pense no fim do mês até já pus o íman no contador angustia-me tanta energia invisível penso no fim do mês e da vida e não sei o que me dói mais os olhos abertos da minha filha esperam por saber como perguntar o teu pai filha ainda espera respostas» (pág. 4). O nome de Carlos Alberto Machado será certamente mais conhecido na área da dramaturgia, quer pelas várias peças que assinou, quer pelo ensaio que dedicou ao Teatro da Cornucópia (, Frenesi, 1999). Enquanto poeta, o autor revelou-se em 2000 com(Évora, Ataegina), ao qual se vem agora juntar. Logo o poema inicial deste livro nos convence de que estamos perante uma voz discreta, avessa a programas, escolas e ao propósito talvez risível de mudar o mundo (nem sequer o seu, pessoal): «Não é que não pense no fim do mês até já pus o íman no contador angustia-me tanta energia invisível penso no fim do mês e da vida e não sei o que me dói mais os olhos abertos da minha filha esperam por saber como perguntar o teu pai filha ainda espera respostas» (pág. 4). E, aqui, honra seja feita ao autor, pois poemas tão assumidamente «paternais» poucas vezes se conseguem furtar à mais rude banalidade sentimental. Mas é também evidente que a poesia de Carlos Alberto Machado não quer entrar muito depressa na noite escura dos cânones disponíveis. O que lhe permite dizer, por exemplo, que se acabaram «as coisas a partilhar corpos desejos lembranças nunca foram aliás senão literatura ou uma hipótese dela como costumavas dizer» (pág. 6). Esta alguma falta de «seriedade» - vinda de quem, em última análise, se reconhece «sem literatura sem vida» (pág. 6) - propicia um modo displicente e «ausentado» de convocar a literatura, mesmo a superlativamente «maior»: «Não há terra da alegria de que me despedir nem barca do amor com a qual me despedaçar os filhos medram sem hinos nem glórias removendo da pele os fracassos alheios» (pág. 7). Já no campo de uma literatura um pouco mais «marginal», merecem destaque os poemas que solicitam, enquanto destinatários e álibis intertextuais, os nomes de Luiz Pacheco ou de José Amaro Dionísio (cf. págs. 10-11). Poder-se-á facilmente alegar que estamos perante uma «poesia menor». Hipótese justa, desde que concedamos à expressão o veemente e depurado sentido com que a consagraram, entre outros, O''Neill, Armando Silva Carvalho ou, mais recentemente, Hélder Moura Pereira. «Há fados assim» (pág. 31), que provam que a poesia se pode atrever a percursos e discursos que nada têm que ver com o bocejo culturalista de Paulo Teixeira ou com o exaurido rigor retórico de Nuno Júdice. Não se pense, porém, que o coloquialismo quase provocatório de Carlos Alberto Machado corresponde a uma desatenção do zelo verbal a que qualquer poeta, por caminhos necessariamente sinuosos, deve obedecer. Sirva de exemplo uma das elegias lapidares que encontramos em Ventilador: «Acabou tudo o corpo na areia fria retenho muito tempo a imagem unem-se as vagas em assalto final resisto» (pág. 18). Apesar de alguns momentos em que o gesto lúdico se deixa esboçar, seríamos tentados a afirmar que é esta uma poesia elegíaca «malgré soi», que resiste o melhor que pode à tentação de saber «o fim agora tão perto» (pág. 5). Como melancolicamente nos diz outro poema, «Olhamos o amor e a morte desdobrando-se no tempo nas rugas das suas estações demasiado tempo mantemos a ilusão de uma diferença mas o tempo comprime-se naquele momento breve em que a nossa vontade julga poder prescindir dele» (pág. 32). Contudo, outras férteis indecisões caracterizam a escrita de Carlos Alberto Machado, fazendo-a oscilar entre o apontamento quotidiano e uma crua visão escatológica: «Mas os outros não imaginam esse prazer (conheço o prazer dos loucos assim lhes chamam) e as crianças com o sujo dos seus corpos entenda-se com o que dele podem extrair das unhas da boca o chulé entre os dedos dos pés» (pág. 16). É no mínimo congruente que uma poesia que se recusa a voar demasiado alto (causa, aliás, de tantos Ícaros e ácaros) busque como serenidade possível a inexistência, um crepúsculo frio que se torna - por assim dizer - tangível, ao reconhecer que «o segredo é não existirmos o sol tardio dos nossos corpos» (pág. 49). A verdade - uma «verdade» que o autor tem o mérito tardio e jocoso de nos relembrar - é que há menos bardos do que nos querem fazer crer. Saúde-se, portanto, a contundente imodéstia de um livro que se assume «repleto de palavras amestradas para oferecer no Natal ou isso ou umas peúgas» (pág. 46). 3 Contudo, outras férteis indecisões caracterizam a escrita de Carlos Alberto Machado, fazendo-a oscilar entre o apontamento quotidiano e uma crua visão escatológica: «Mas os outros não imaginam esse prazer (conheço o prazer dos loucos assim lhes chamam) e as crianças com o sujo dos seus corpos entenda-se com o que dele podem extrair das unhas da boca o chulé entre os dedos dos pés» (pág. 16). É no mínimo congruente que uma poesia que se recusa a voar demasiado alto (causa, aliás, de tantos Ícaros e ácaros) busque como serenidade possível a inexistência, um crepúsculo frio que se torna - por assim dizer - tangível, ao reconhecer que «o segredo é não existirmos o sol tardio dos nossos corpos» (pág. 49). A verdade - uma «verdade» que o autor tem o mérito tardio e jocoso de nos relembrar - é que há menos bardos do que nos querem fazer crer. Saúde-se, portanto, a contundente imodéstia de um livro que se assume «repleto de palavras amestradas para oferecer no Natal ou isso ou umas peúgas» (pág. 46).

ENVIAR COMENTÁRIO

Sem Ícaros nem ácaros O breviário de Carlos Alberto Machado, pequenas dores em voz grande VENTILADOR de Carlos Alberto Machado (Elefante, 2000, 58 págs., 1575$00, 7,85 euros) Manuel de Freitas

JORGE SIMÃO Carlos Alberto Machado O nome de Carlos Alberto Machado será certamente mais conhecido na área da dramaturgia, quer pelas várias peças que assinou, quer pelo ensaio que dedicou ao Teatro da Cornucópia (As Regras do Jogo, Frenesi, 1999). Enquanto poeta, o autor revelou-se em 2000 com Mundo de Aventuras (Évora, Ataegina), ao qual se vem agora juntar Ventilador. Logo o poema inicial deste livro nos convence de que estamos perante uma voz discreta, avessa a programas, escolas e ao propósito talvez risível de mudar o mundo (nem sequer o seu, pessoal): «Não é que não pense no fim do mês até já pus o íman no contador angustia-me tanta energia invisível penso no fim do mês e da vida e não sei o que me dói mais os olhos abertos da minha filha esperam por saber como perguntar o teu pai filha ainda espera respostas» (pág. 4). O nome de Carlos Alberto Machado será certamente mais conhecido na área da dramaturgia, quer pelas várias peças que assinou, quer pelo ensaio que dedicou ao Teatro da Cornucópia (, Frenesi, 1999). Enquanto poeta, o autor revelou-se em 2000 com(Évora, Ataegina), ao qual se vem agora juntar. Logo o poema inicial deste livro nos convence de que estamos perante uma voz discreta, avessa a programas, escolas e ao propósito talvez risível de mudar o mundo (nem sequer o seu, pessoal): «Não é que não pense no fim do mês até já pus o íman no contador angustia-me tanta energia invisível penso no fim do mês e da vida e não sei o que me dói mais os olhos abertos da minha filha esperam por saber como perguntar o teu pai filha ainda espera respostas» (pág. 4). E, aqui, honra seja feita ao autor, pois poemas tão assumidamente «paternais» poucas vezes se conseguem furtar à mais rude banalidade sentimental. Mas é também evidente que a poesia de Carlos Alberto Machado não quer entrar muito depressa na noite escura dos cânones disponíveis. O que lhe permite dizer, por exemplo, que se acabaram «as coisas a partilhar corpos desejos lembranças nunca foram aliás senão literatura ou uma hipótese dela como costumavas dizer» (pág. 6). Esta alguma falta de «seriedade» - vinda de quem, em última análise, se reconhece «sem literatura sem vida» (pág. 6) - propicia um modo displicente e «ausentado» de convocar a literatura, mesmo a superlativamente «maior»: «Não há terra da alegria de que me despedir nem barca do amor com a qual me despedaçar os filhos medram sem hinos nem glórias removendo da pele os fracassos alheios» (pág. 7). Já no campo de uma literatura um pouco mais «marginal», merecem destaque os poemas que solicitam, enquanto destinatários e álibis intertextuais, os nomes de Luiz Pacheco ou de José Amaro Dionísio (cf. págs. 10-11). Poder-se-á facilmente alegar que estamos perante uma «poesia menor». Hipótese justa, desde que concedamos à expressão o veemente e depurado sentido com que a consagraram, entre outros, O''Neill, Armando Silva Carvalho ou, mais recentemente, Hélder Moura Pereira. «Há fados assim» (pág. 31), que provam que a poesia se pode atrever a percursos e discursos que nada têm que ver com o bocejo culturalista de Paulo Teixeira ou com o exaurido rigor retórico de Nuno Júdice. Não se pense, porém, que o coloquialismo quase provocatório de Carlos Alberto Machado corresponde a uma desatenção do zelo verbal a que qualquer poeta, por caminhos necessariamente sinuosos, deve obedecer. Sirva de exemplo uma das elegias lapidares que encontramos em Ventilador: «Acabou tudo o corpo na areia fria retenho muito tempo a imagem unem-se as vagas em assalto final resisto» (pág. 18). Apesar de alguns momentos em que o gesto lúdico se deixa esboçar, seríamos tentados a afirmar que é esta uma poesia elegíaca «malgré soi», que resiste o melhor que pode à tentação de saber «o fim agora tão perto» (pág. 5). Como melancolicamente nos diz outro poema, «Olhamos o amor e a morte desdobrando-se no tempo nas rugas das suas estações demasiado tempo mantemos a ilusão de uma diferença mas o tempo comprime-se naquele momento breve em que a nossa vontade julga poder prescindir dele» (pág. 32). Contudo, outras férteis indecisões caracterizam a escrita de Carlos Alberto Machado, fazendo-a oscilar entre o apontamento quotidiano e uma crua visão escatológica: «Mas os outros não imaginam esse prazer (conheço o prazer dos loucos assim lhes chamam) e as crianças com o sujo dos seus corpos entenda-se com o que dele podem extrair das unhas da boca o chulé entre os dedos dos pés» (pág. 16). É no mínimo congruente que uma poesia que se recusa a voar demasiado alto (causa, aliás, de tantos Ícaros e ácaros) busque como serenidade possível a inexistência, um crepúsculo frio que se torna - por assim dizer - tangível, ao reconhecer que «o segredo é não existirmos o sol tardio dos nossos corpos» (pág. 49). A verdade - uma «verdade» que o autor tem o mérito tardio e jocoso de nos relembrar - é que há menos bardos do que nos querem fazer crer. Saúde-se, portanto, a contundente imodéstia de um livro que se assume «repleto de palavras amestradas para oferecer no Natal ou isso ou umas peúgas» (pág. 46). 3 Contudo, outras férteis indecisões caracterizam a escrita de Carlos Alberto Machado, fazendo-a oscilar entre o apontamento quotidiano e uma crua visão escatológica: «Mas os outros não imaginam esse prazer (conheço o prazer dos loucos assim lhes chamam) e as crianças com o sujo dos seus corpos entenda-se com o que dele podem extrair das unhas da boca o chulé entre os dedos dos pés» (pág. 16). É no mínimo congruente que uma poesia que se recusa a voar demasiado alto (causa, aliás, de tantos Ícaros e ácaros) busque como serenidade possível a inexistência, um crepúsculo frio que se torna - por assim dizer - tangível, ao reconhecer que «o segredo é não existirmos o sol tardio dos nossos corpos» (pág. 49). A verdade - uma «verdade» que o autor tem o mérito tardio e jocoso de nos relembrar - é que há menos bardos do que nos querem fazer crer. Saúde-se, portanto, a contundente imodéstia de um livro que se assume «repleto de palavras amestradas para oferecer no Natal ou isso ou umas peúgas» (pág. 46).

ENVIAR COMENTÁRIO

marcar artigo