Trabalhos de Hércules

02-03-2002
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Trabalhos de Hércules

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Terça-feira, 18 de Dezembro de 2001

Guterres demitiu-se, o Governo caiu, o Presidente da República medita no que fazer e nos corredores da política a fulanização é absoluta: quem vai suceder a Guterres? Vitorino? Gama? Coelho? Ferro Rodrigues? o jovem António Costa? o experiente Cravinho?

E Guterres? Vai ainda à luta, recandidata-se, ou retira-se para o olimpo da República, onde repousa um crescente número de senadores? Não haverá nada para ele em Bruxelas? Como vai gerir o tempo até 2006, data do provável confronto presidencial com Cavaco Silva?

E à direita? Paulo Portas aguenta-se? Monteiro tem apoios suficientes? Barroso só tem de percorrer a passadeira vermelha até se tornar primeiro ministro? Santana Lopes ficará socegado em Lisboa? E como conter as ambições de Marcelo?

O cataclismo eleitoral de domingo passado deixou tudo em aberto. Há congressos partidários marcados, outros que terão de ser agendados, facas longas que são desembainhadas, lutas de galos e jogos de pequenas traições que, estou certo, vão ocupar resmas de páginas em toda a imprensa.

Antes porém que se reduza o pós-16 de Dezembro à dimensão de meras eliminatórias para um inevitável "combate de chefes", era bom que olhássemos para o país e para os seus bloqueios.

É, talvez, sonhar muito alto, mas o que se esperaria de todos os que nas próximas semanas de degladiarão para ocupar o lugar deixado vago por António Guterres é que estes se ocupassem em primeiro lugar de saber como vai ser possível ultrapassar esses tais bloqueios.

Nós conhecemo-los: uma administração pública gorda, gastadora e ineficiente; uma administração local disfuncional; uma grave crise orçamental; lei arcaicas que protegem corporações presas em privilégios do passado; uma cultura de irresponsabilidade, uma elite olha sempre para o Estado de mão estendida e prega os olhos no chão quando se lhe pedem resultados; um território ao desbarato, paisagens a saque, infraestruturas novas que já funcionam tão mal como as velhas. E por aí adiante.

Resolver qualquer destes problemas implica afrontar interesses instalados, requer legitimidade eleitoral, implica ter a confiança dos cidadãos e um povo preparado para aceitar sacrifícios. Exige um governo forte e que fale claro, um governo que decida hoje e mantenha amanhã a sua decisão. E implica, sobretudo, conhecer o caminho que se quer seguir.

Alianças à esquerda ou à direita de qualquer dos maiores partidos não podem ser apenas medidas instrumentais para garantir maiorias pontuais: têm de obedecer a uma comunhão essencial de objectivos, com um mínimo de prolongamento no tempo. Não é este o momento certo para discutir qual deve ser esse caminho, mas ele terá de assentar num pacto plurianual - pelo menos uma legislatura - e ser coerente. Não pode comportar zigue-zagues, alianças ora à esquerda, ora à direita. O que impões opções de fundo, sobretudo no seio do PS.

Tomemos dois exemplos. Quando tomou conta do Partido Trabalhista britânico, Tony Blair não se limitou a apanhar os cacos de um partido destroçado por sucessivas derrotas eleitorais, antes travou uma intensa batalha ideológica para transformar o seu carácter, fazendo do que era um partido de sindicatos arcaicamente socialista, um partido que é hoje mais liberal do que social-democrata. Inversamente em França, o movimento que levou Leonel Jospin a primeiro-ministro assentou no princípio da "esquerda plural", daí resultando uma plataforma que por vezes é mais esquerdista do que socialista. Em qualquer dos casos houve necessidade de clarificar e escolher - exactamente o contrário do que foi o PS de António Guterres, um PS que o líder cessante conquistou reunindo uma federação de descontentamentos (contra Jorge Sampaio) e que governou num permanente equilibrismo.

Este estilo, que é a essência do guterrismo, morreu. O erro que o PS não deve cometer ao querer superá-lo é pensar que lhe basta encontrar um bom "cabo eleitoral" (como tentou fazer um PSD já exangue no seu mítico congresso do Coliseu de Lisboa). Deveria antes escolher, nomeadamente, se lhe interessa ir pela sua esquerda ou pela sua direita. Sem complexos. Mas consciente de que qualquer das opções terá consequências. Ir ora com uma, ora com outra, em concubinato, é que é fatal: leva ao pântano em que estamos.

Fazer este debate sob a pressão de eleições à porta é tarefa de Hércules - mas é nos momentos difíceis que os verdadeiros líderes se destacam.

Trabalhos de Hércules

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Terça-feira, 18 de Dezembro de 2001

Guterres demitiu-se, o Governo caiu, o Presidente da República medita no que fazer e nos corredores da política a fulanização é absoluta: quem vai suceder a Guterres? Vitorino? Gama? Coelho? Ferro Rodrigues? o jovem António Costa? o experiente Cravinho?

E Guterres? Vai ainda à luta, recandidata-se, ou retira-se para o olimpo da República, onde repousa um crescente número de senadores? Não haverá nada para ele em Bruxelas? Como vai gerir o tempo até 2006, data do provável confronto presidencial com Cavaco Silva?

E à direita? Paulo Portas aguenta-se? Monteiro tem apoios suficientes? Barroso só tem de percorrer a passadeira vermelha até se tornar primeiro ministro? Santana Lopes ficará socegado em Lisboa? E como conter as ambições de Marcelo?

O cataclismo eleitoral de domingo passado deixou tudo em aberto. Há congressos partidários marcados, outros que terão de ser agendados, facas longas que são desembainhadas, lutas de galos e jogos de pequenas traições que, estou certo, vão ocupar resmas de páginas em toda a imprensa.

Antes porém que se reduza o pós-16 de Dezembro à dimensão de meras eliminatórias para um inevitável "combate de chefes", era bom que olhássemos para o país e para os seus bloqueios.

É, talvez, sonhar muito alto, mas o que se esperaria de todos os que nas próximas semanas de degladiarão para ocupar o lugar deixado vago por António Guterres é que estes se ocupassem em primeiro lugar de saber como vai ser possível ultrapassar esses tais bloqueios.

Nós conhecemo-los: uma administração pública gorda, gastadora e ineficiente; uma administração local disfuncional; uma grave crise orçamental; lei arcaicas que protegem corporações presas em privilégios do passado; uma cultura de irresponsabilidade, uma elite olha sempre para o Estado de mão estendida e prega os olhos no chão quando se lhe pedem resultados; um território ao desbarato, paisagens a saque, infraestruturas novas que já funcionam tão mal como as velhas. E por aí adiante.

Resolver qualquer destes problemas implica afrontar interesses instalados, requer legitimidade eleitoral, implica ter a confiança dos cidadãos e um povo preparado para aceitar sacrifícios. Exige um governo forte e que fale claro, um governo que decida hoje e mantenha amanhã a sua decisão. E implica, sobretudo, conhecer o caminho que se quer seguir.

Alianças à esquerda ou à direita de qualquer dos maiores partidos não podem ser apenas medidas instrumentais para garantir maiorias pontuais: têm de obedecer a uma comunhão essencial de objectivos, com um mínimo de prolongamento no tempo. Não é este o momento certo para discutir qual deve ser esse caminho, mas ele terá de assentar num pacto plurianual - pelo menos uma legislatura - e ser coerente. Não pode comportar zigue-zagues, alianças ora à esquerda, ora à direita. O que impões opções de fundo, sobretudo no seio do PS.

Tomemos dois exemplos. Quando tomou conta do Partido Trabalhista britânico, Tony Blair não se limitou a apanhar os cacos de um partido destroçado por sucessivas derrotas eleitorais, antes travou uma intensa batalha ideológica para transformar o seu carácter, fazendo do que era um partido de sindicatos arcaicamente socialista, um partido que é hoje mais liberal do que social-democrata. Inversamente em França, o movimento que levou Leonel Jospin a primeiro-ministro assentou no princípio da "esquerda plural", daí resultando uma plataforma que por vezes é mais esquerdista do que socialista. Em qualquer dos casos houve necessidade de clarificar e escolher - exactamente o contrário do que foi o PS de António Guterres, um PS que o líder cessante conquistou reunindo uma federação de descontentamentos (contra Jorge Sampaio) e que governou num permanente equilibrismo.

Este estilo, que é a essência do guterrismo, morreu. O erro que o PS não deve cometer ao querer superá-lo é pensar que lhe basta encontrar um bom "cabo eleitoral" (como tentou fazer um PSD já exangue no seu mítico congresso do Coliseu de Lisboa). Deveria antes escolher, nomeadamente, se lhe interessa ir pela sua esquerda ou pela sua direita. Sem complexos. Mas consciente de que qualquer das opções terá consequências. Ir ora com uma, ora com outra, em concubinato, é que é fatal: leva ao pântano em que estamos.

Fazer este debate sob a pressão de eleições à porta é tarefa de Hércules - mas é nos momentos difíceis que os verdadeiros líderes se destacam.

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