O futuro do Afeganistão

01-11-2001
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EDITORIAL

O Futuro do Afeganistão

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Quarta-feira, 03 de Outubro de 2001

Ninguém chorará uma lágrima pela queda dos taliban - uma queda que, espera-se, esteja próxima.

O regime dos "estudantes de teologia" revelou-se um dos mais bárbaros que a humanidade conheceu nas últimas décadas. A aplicação de uma versão radical, dogmática, da lei islâmica, traduziu-se na recusa de toda a modernidade, na destruição dos centros de saber, na mais abjecta opressão das mulheres, na recusa radical de todas as outras culturas, recusa que chegou ao ponto de limplicar a destruição das estátuas gigantes dos Budas de Bamiyan. No Afeganistão, mesmo antes da ameaça de guerra, já havia centenas de milhar de refugiados, gente que tentava escapar da fome e da repressão.

No entanto quando, em 1996, os taliban chegaram ao poder, muitos afegãos acolheram-nos com esperança. E por uma razão simples: a sua vitória militar parecia prenunciar o fim da guerra intestina que dilacerava o país há quase duas décadas. A paz sob os taliban parecia melhor do que a guerra permanente entre os diferentes chefes mudjahidin. Revelou-se pior.

Os ataques terroristas a Nova Iorque e Washington, concretizados por militantes suicidas ligados à rede de Osama bin Laden, um protegido dos taliban, acordou finalmente o Mundo, e os Estados Unidos em particular, para a necessidade de perseguir a serpente no seu ninho - e combater os que a protegem. Isso está a revelar-se fatal para o regime taliban, que perdeu todos os seus apoios internacionais, vive na iminência de ser atacado militarmente e assiste ao renascer das diferentes dissidências e oposições. O cerco chegou mesmo ao ponto do chefe da missão das Nações Unidas para o Afeganistão, Francesc Vendrell, dizer abertamente que não é possível pensar no futuro do país sem acelerar o fim do regime taliban (ver entrevista no PÚBLICO de domingo).

Temos por isso que quer a coligação internacional liderada pelos Estados Unidos, quer as Nações Unidas, trabalham não só para afastar os "estudantes de teologia" do poder, como têm, nos últimos dias, procurado construir uma alternativa. Ora se derrubar os homens do mullah Omar parece um objectivo concretizável, pacificar o país e instalar em Cabul um governo viável é tarefa muito mais difícil.

Na verdade, desde a invasão soviética que o Afeganistão vive em estado de guerra. Primeiro foi a resistência mudjahidin aos russos. Depois, a luta fratricida entre os anteriores companheiros de armas. Por fim, após a chegada dos taliban, a resistência tenaz de uma mão cheia de guerreiros determinados, como os homens do comandante Massoud. Nessas batalhas, os inimigos de ontem tornaram-se muitas vezes nos aliados de hoje (a Aliança do Norte, por exemplo, integra antigos combatentes anticomunistas e generais que apoiaram a invasão soviética). Muitas dessas fracturas têm raízes étnicas num país onde a maioria de pachtuns (a base de apoio dos taliban) convive com minorias tadjiques, uzbeques e hazara, sendo que estes últimos são muçulmanos xiitas. Como se isto não fosse suficiente, países poderosos e rivais - como os vizinhos próximos do Paquistão e do Irão, sem esquecer o Uzbequistão, e os vizinhos menos próximos da China e da Rússia - tentam ter uma palavra a dizer sobre quem manda em Cabul.

Daqui resulta não só a fragilidade da coligação antitaliban, como a dificuldade de construir uma alternativa que seja bem aceite pela maioria pachtun. O que conduz a Zahir Shah, o velho rei deposto em 1973.

Num país dilacerado por conflitos intestinos e dividido entre diversas etnias, o rei pode, com efeito, representar o papel de agregador nacional e de símbolo capaz de unir um povo que muitos outros factores contribuem para desunir. O rei, que vive em Roma e dá sinais de apreciar as virtudes das sociedades abertas e plurais, tem mostrado, apesar da sua idade, que poderia desempenhar tal papel, podendo ser ele a convocar a Loya Jirga, a grande assembleia nacional de que sairia o novo poder político. O facto de muitas figuras da oposição no exílio se estarem a aproximar dele é também um bom sinal.

O importante, no entanto, é termos a noção de que não bastará afastar os taliban do poder, que não será possível abandonar o país ao risco de um novo confronto entre os seus múltiplos "chefes de guerra". O que implica, de novo, o direito de ingerência. Possa esse direito ser exercido com a mesma sabedoria e os mesmos resultados que em Timor-Leste onde, como recordava este domingo Ramos-Horta no PÚBLICO, um primeiro ministro muçulmano preside aos destinos de uma nação 98 por cento católica.

EDITORIAL

O Futuro do Afeganistão

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Quarta-feira, 03 de Outubro de 2001

Ninguém chorará uma lágrima pela queda dos taliban - uma queda que, espera-se, esteja próxima.

O regime dos "estudantes de teologia" revelou-se um dos mais bárbaros que a humanidade conheceu nas últimas décadas. A aplicação de uma versão radical, dogmática, da lei islâmica, traduziu-se na recusa de toda a modernidade, na destruição dos centros de saber, na mais abjecta opressão das mulheres, na recusa radical de todas as outras culturas, recusa que chegou ao ponto de limplicar a destruição das estátuas gigantes dos Budas de Bamiyan. No Afeganistão, mesmo antes da ameaça de guerra, já havia centenas de milhar de refugiados, gente que tentava escapar da fome e da repressão.

No entanto quando, em 1996, os taliban chegaram ao poder, muitos afegãos acolheram-nos com esperança. E por uma razão simples: a sua vitória militar parecia prenunciar o fim da guerra intestina que dilacerava o país há quase duas décadas. A paz sob os taliban parecia melhor do que a guerra permanente entre os diferentes chefes mudjahidin. Revelou-se pior.

Os ataques terroristas a Nova Iorque e Washington, concretizados por militantes suicidas ligados à rede de Osama bin Laden, um protegido dos taliban, acordou finalmente o Mundo, e os Estados Unidos em particular, para a necessidade de perseguir a serpente no seu ninho - e combater os que a protegem. Isso está a revelar-se fatal para o regime taliban, que perdeu todos os seus apoios internacionais, vive na iminência de ser atacado militarmente e assiste ao renascer das diferentes dissidências e oposições. O cerco chegou mesmo ao ponto do chefe da missão das Nações Unidas para o Afeganistão, Francesc Vendrell, dizer abertamente que não é possível pensar no futuro do país sem acelerar o fim do regime taliban (ver entrevista no PÚBLICO de domingo).

Temos por isso que quer a coligação internacional liderada pelos Estados Unidos, quer as Nações Unidas, trabalham não só para afastar os "estudantes de teologia" do poder, como têm, nos últimos dias, procurado construir uma alternativa. Ora se derrubar os homens do mullah Omar parece um objectivo concretizável, pacificar o país e instalar em Cabul um governo viável é tarefa muito mais difícil.

Na verdade, desde a invasão soviética que o Afeganistão vive em estado de guerra. Primeiro foi a resistência mudjahidin aos russos. Depois, a luta fratricida entre os anteriores companheiros de armas. Por fim, após a chegada dos taliban, a resistência tenaz de uma mão cheia de guerreiros determinados, como os homens do comandante Massoud. Nessas batalhas, os inimigos de ontem tornaram-se muitas vezes nos aliados de hoje (a Aliança do Norte, por exemplo, integra antigos combatentes anticomunistas e generais que apoiaram a invasão soviética). Muitas dessas fracturas têm raízes étnicas num país onde a maioria de pachtuns (a base de apoio dos taliban) convive com minorias tadjiques, uzbeques e hazara, sendo que estes últimos são muçulmanos xiitas. Como se isto não fosse suficiente, países poderosos e rivais - como os vizinhos próximos do Paquistão e do Irão, sem esquecer o Uzbequistão, e os vizinhos menos próximos da China e da Rússia - tentam ter uma palavra a dizer sobre quem manda em Cabul.

Daqui resulta não só a fragilidade da coligação antitaliban, como a dificuldade de construir uma alternativa que seja bem aceite pela maioria pachtun. O que conduz a Zahir Shah, o velho rei deposto em 1973.

Num país dilacerado por conflitos intestinos e dividido entre diversas etnias, o rei pode, com efeito, representar o papel de agregador nacional e de símbolo capaz de unir um povo que muitos outros factores contribuem para desunir. O rei, que vive em Roma e dá sinais de apreciar as virtudes das sociedades abertas e plurais, tem mostrado, apesar da sua idade, que poderia desempenhar tal papel, podendo ser ele a convocar a Loya Jirga, a grande assembleia nacional de que sairia o novo poder político. O facto de muitas figuras da oposição no exílio se estarem a aproximar dele é também um bom sinal.

O importante, no entanto, é termos a noção de que não bastará afastar os taliban do poder, que não será possível abandonar o país ao risco de um novo confronto entre os seus múltiplos "chefes de guerra". O que implica, de novo, o direito de ingerência. Possa esse direito ser exercido com a mesma sabedoria e os mesmos resultados que em Timor-Leste onde, como recordava este domingo Ramos-Horta no PÚBLICO, um primeiro ministro muçulmano preside aos destinos de uma nação 98 por cento católica.

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