Histórias da Bela e do Monstro

10-11-2001
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Agressões com ácido

Histórias da Bela e do Monstro

Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO

Segunda-feira, 30 de Julho de 2001

O que é que pode levar alguém a marcar, definitivamente, a pessoa que pouco antes dizia amar, provocando-lhe um sofrimento que se prolonga muito para além da quase insuportável dor física? Que vidas se escondem por detrás das agressões com ácido sulfúrico, de que houve vários casos recentes? Há quem diga que elas traduzem a incapacidade de reagir à frustração amorosa por parte de alguém que, afinal, não gosta é de si próprio: "Terei que te transformar a ti num monstro, também, para que fiques ao meu nível ou para que prestes ainda menos do que eu presto. E talvez, então, me possas amar..."

Ana lembra-se das palavras que ouviu, pouco depois de sentir o frio do ácido sulfúrico a escorrer-lhe no rosto e no corpo, depois o calor, e a seguir a dor, insuportável, a anunciar a destruição dos tecidos. "Não te preocupes, eu tomo conta de ti", ter-lhe-á dito o marido. Sentada muito direita, a um canto de uma sala de uma casa de acolhimento para mulheres em risco, hesita, e depois acena, decidida, com a cabeça: sim, foi isso que ele disse. Ou terá sido o filho que lhe contou o que ela não estava em condições de ouvir? Aos poucos, reconstrói uma história que o psicólogo e psicoterapeuta Eduardo Sá descreve como a da Bela e do Monstro. Com um fim ao contrário.

"Eu, que sou monstro, terei que te transformar a ti num monstro, também, para que fiques ao meu nível ou para que prestes ainda menos do que eu presto. E talvez, então, me possas amar...". Poderia ser contado assim, diz Eduardo Sá, um episódio das histórias do Nuno, da Susana e da Ana, o nome que uma mulher de 35 anos quis inventar para se esconder, porque tem medo. O Nuno morreu aos 24 anos de idade, vítima das queimaduras que a namorada lhe provocou. Susana, de 22, jaz, ainda, numa cama da Unidade de Queimados dos Hospitais da Universidade de Coimbra. E Ana reaprende a não ter medo, algures, no país. "Às vezes já saio. Visto-me assim, com golas subidas e mangas compridas, para não dar nas vistas. Não é por mal, eu sei", diz, arregaçando, devagar, uma manga: "É natural que as pessoas olhem".

Ana tem os olhos secos, quando recorda o minuto preciso em que percebeu o que estava a acontecer. Nem sequer tinham tido uma discussão séria. O normal: ele queria que ela se fosse deitar, ela tardava a ir para a cama e preferira sentar-se, no sofá da sala, a ver um episódio da série "Residencial Tejo", na TV. "Ouvi-o a sair do quarto, a aproximar-se e depois senti uma coisa fria a escorrer-me pelo corpo. Como ele apareceu do lado da despensa, percebi, de repente, que era ácido sulfúrico que ele lá tinha posto uns dois dias antes, dizendo que era para uma obra. Já me tinha ameaçado muitas vezes, dizia que havia de me queimar. De repente, percebi".

Foi há mais de um ano. Há dois meses, Ana regressou à Unidade de Queimados para visitar o Nuno, que numa manhã de Abril foi atingido com ácido pela ex-namorada, uma rapariga de 22 anos com quem terminara o relacionamento, há duas semanas. "Fui lá e, através do intercomunicador, disse-lhe para ter coragem, que o pior era a fase do internamento". Ana volta a baixar a manga: "Por um lado é verdade, é o pior: não há cadeia, não há dinheiro que paguem tanto sofrimento e o lado estético não é o mais importante. Consigo picar uma senha do autocarro, abrir um pacote de açúcar. Conheci queimados, no Hospital, que não eram capazes de fazer estas coisas". Mas nem sempre a Ana pensou assim: "O pior foi quando me disseram: 'este braço já está bom' e, depois, mo mostraram. Aquilo era já estar bom? Chorei muito e as enfermeiras diziam: 'não chore, olhe que os médicos fizeram aqui um bom trabalho'. Quando me vi a primeira vez, ao espelho, depois disto, não foi um choque muito grande porque me reconheci [só metade do rosto está queimado]. Agora, já me habituei".

Ana recortou tudo o que saiu nos jornais sobre os outros casos de queimaduras por ácido, mas ligou-se principalmente ao Nuno. Falou com a mãe dele e convenceu-se de que se tratou de um caso semelhante ao seu. Não lhe passa pela cabeça que o agressor não tenha avaliado, rigorosamente, a proporção entre o material corrosivo que usou e a gravidade das consequências: "O caso da Susana é diferente, quem deita dois litros de ácido quer, com certeza, matar". Não foi, ainda, visitá-la, à jovem de 22 anos que, na noite de 29 de Junho, quando chegava a casa, segundos depois de parar o automóvel, foi regada com ácido sulfúrico pelo ex-namorado.

Eduardo Sá não conhece nenhum destes casos concretos, tal como acontece com os psiquiatras Carlos Braz Saraiva e Adriano Vaz Serra, também professores na Universidade de Coimbra. Mas nenhum mostra ter dúvidas quando adivinha que a história que terminou com as manchetes dos jornais começou muito antes, talvez dezenas de anos antes, quando as condições de vida de três crianças - os agressores - se começaram a formar no sentido de que, um dia, elas viessem a sentir-se assim: 'monstros'.

"São, com certeza, pessoas com uma auto-estima muito reduzida e que passaram por acontecimentos traumáticos na infância, na adolescência e, talvez, também, na vida adulta", acredita Carlos Braz Saraiva. E Vaz Serra faz notar que, quando, ao longo do seu desenvolvimento, um indivíduo passa por experiências frequentes de rejeição, que lhe evocam emoções negativas, amargas e repetidas, pode desenvolver aquilo que é denominado por 'sensibilidade à rejeição'". "É como uma instalação eléctrica: o interruptor está lá, para a reacção se desencadear basta que alguém ou alguma coisa o accione", reforça Saraiva.

Eduardo Sá considera que não há amores doentios: "Há amor e há esta espécie de toxicodependência em que as pessoas se consomem e consomem os outros numa relação que destrói ambos". Ana sofreu a primeira agressão pouco depois do casamento. "Um dia, deu-me uma tareia tal que eu tive de ir para o hospital. Quando voltei para casa, disse-lhe que tinha contado tudo aos médicos e avisei-o de que, se ele voltasse a bater-me, dizia à polícia. Não voltou a tocar-me", conta. Começaram, então, as agressões verbais e Ana sabia como magoar um homem que já fora abandonado pela primeira mulher: ameaçava deixá-lo. Só no ano passado, no entanto, percebeu o que aquele homem seria capaz de fazer para tentar que a jura que repetiu dezenas de vezes se concretizasse: "Hás-de viver comigo o resto da vida".

Nos três casos, os detonadores poderão ter sido as sensações de rejeição, de abandono, de humilhação, vividas pelos agressores: Ana (ela própria abandonada num primeiro casamento) ameaçava deixar o marido; Nuno e Susana haviam terminado namoros de anos com os respectivos companheiros. "Num cenário de uma baixíssima auto-estima, se alguém me ameaça com uma separação, fica ainda mais claro aquilo que eu já sabia: que eu não presto", interpreta Eduardo Sá. Desencadeia-se, então, diz o psicoterapeuta, a história da Bela e do Monstro: "Talvez assim me possas amar".

"Não estou arrependido do que fiz, mas quando sair da prisão voltarei a aceitá-la com todos os defeitos físicos que tiver", terá dito o ex-namorado de Susana, depois de se entregar à polícia. "Não te preocupes, que tomo conta de ti", terá assegurado o marido de Ana, enquanto o corpo se lhe desfazia sob o efeito do ácido.

O marido de Ana queimou-lhe o rosto e o peito, atingindo-a também nos braços e nas pernas. O mesmo aconteceu com Susana, e o Nuno, esse, recebeu o ácido na cara e nos órgãos genitais. Não se tratou de um acaso ou de uma coincidência, acreditam os especialistas: Ana, Susana e Nuno foram atingidos naquilo que representa a sua identidade e que, simultaneamente, poderia ser apelativo para o sexo oposto. A mensagem, adivinham, terá sido: "Se não fores minha/meu, não serás de mais ninguém".

Na perspectiva de Eduardo Sá e Carlos Braz Saraiva, a reacção dos agressores resulta da incapacidade de lidar com a frustração amorosa, como insistem, devido a acontecimentos traumáticos anteriores. "Um prego exige um martelo, um parafuso exige uma chave de fendas. Mas há quem, não tendo as ferramentas interiores necessárias para lidar com a dor, tente aplicar um parafuso com um martelo", explica Braz Saraiva. Eduardo Sá tem uma interpretação ligeiramente diferente: "Incapaz de reparar a própria dor, o agressor sente-se compelido a triunfar sobre ela, branqueando-a".

O resultado não é, obviamente, o que poderiam esperar. Ana tortura-se de raiva: "Deviam deitar ácido em cima deles [dos agressores] e deixá-los queimar até ao fim", diz. Depois cai em si, explica que disse aquilo porque está "revoltada". É uma forma de reacção à dor de uma mulher que, segundo o psiquiatra que a acompanha, "está relativamente bem".

Ana desejaria que o marido pudesse avaliar, na pele, o sofrimento físico e psicológico que lhe causou, tal como o marido a fez sentir, na pele, o sofrimento que as ameaças de abandono lhe causaram. Mas Ana não faz nada para concretizar o desejo, antes se vai reconstruindo, orgulhosa, na dor. "Não quero que ele me veja, nunca mais, não quero dar-lhe o prazer de ver o estado em que me deixou. Mas quero que ele saiba que eu venci: não morri, não fui para o pé dele, e levo a minha vida, vou levar a minha vida", promete.

Anseia pela condenação do marido que, tal como o agressor de Susana, ainda está em prisão preventiva. Já a ex-namorada do Nuno está internada numa instituição psiquiátrica. Nem os psiquiatras nem o psicólogo consideram estar em condições de avaliar a possibilidade de os agressores serem considerados inimputáveis. Mas Eduardo Sá acredita que, de uma forma geral, quem comete este tipo de agressão está muito perturbado, precisa de ajuda. E Braz Saraiva considera que esta forma "vil e diabólica de lutar contra alguém" pode denunciar, em termos psiquiátricos, "doenças de personalidade, que englobam distúrbios impulsivos e comportamentos explosivos".

"Foi um acto chocante que não implica, necessariamente, a presença de um transtorno psiquiátrico. Representa um acto determinado por grande tensão emocional, mas esta não rouba, obrigatoriamente, o conhecimento da diferença entre o bem e o mal, o lícito e o ilícito, a consequência dos próprios actos. Quem pode compreender, ao certo, o que se passa na cabeça de alguém que comete um acto tresloucado?", questiona-se Adriano Vaz Serra. Mais para sublinhar a interrogação do que em jeito de resposta, cita Oscar Wilde: "Mas que estranho não me terem dito/ Que o cérebro pode conter/Numa pequena célula de marfim/ O céu de Deus e o inferno".

Longe dali, Ana, que ainda há pouco desejara a tortura ao marido, inclina-se para a frente e baixa o tom de voz: "Gostava de saber porque é que ele fez isto, se é pelo que eu penso. Não quero pensar que tenha sido por maldade. Espero que tenha sido para eu ficar dependente dele, para me ter a vida toda. Assim é um amor doentio, mas sempre posso pensar que ele me amava, à maneira dele...".

Agressões com ácido

Histórias da Bela e do Monstro

Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO

Segunda-feira, 30 de Julho de 2001

O que é que pode levar alguém a marcar, definitivamente, a pessoa que pouco antes dizia amar, provocando-lhe um sofrimento que se prolonga muito para além da quase insuportável dor física? Que vidas se escondem por detrás das agressões com ácido sulfúrico, de que houve vários casos recentes? Há quem diga que elas traduzem a incapacidade de reagir à frustração amorosa por parte de alguém que, afinal, não gosta é de si próprio: "Terei que te transformar a ti num monstro, também, para que fiques ao meu nível ou para que prestes ainda menos do que eu presto. E talvez, então, me possas amar..."

Ana lembra-se das palavras que ouviu, pouco depois de sentir o frio do ácido sulfúrico a escorrer-lhe no rosto e no corpo, depois o calor, e a seguir a dor, insuportável, a anunciar a destruição dos tecidos. "Não te preocupes, eu tomo conta de ti", ter-lhe-á dito o marido. Sentada muito direita, a um canto de uma sala de uma casa de acolhimento para mulheres em risco, hesita, e depois acena, decidida, com a cabeça: sim, foi isso que ele disse. Ou terá sido o filho que lhe contou o que ela não estava em condições de ouvir? Aos poucos, reconstrói uma história que o psicólogo e psicoterapeuta Eduardo Sá descreve como a da Bela e do Monstro. Com um fim ao contrário.

"Eu, que sou monstro, terei que te transformar a ti num monstro, também, para que fiques ao meu nível ou para que prestes ainda menos do que eu presto. E talvez, então, me possas amar...". Poderia ser contado assim, diz Eduardo Sá, um episódio das histórias do Nuno, da Susana e da Ana, o nome que uma mulher de 35 anos quis inventar para se esconder, porque tem medo. O Nuno morreu aos 24 anos de idade, vítima das queimaduras que a namorada lhe provocou. Susana, de 22, jaz, ainda, numa cama da Unidade de Queimados dos Hospitais da Universidade de Coimbra. E Ana reaprende a não ter medo, algures, no país. "Às vezes já saio. Visto-me assim, com golas subidas e mangas compridas, para não dar nas vistas. Não é por mal, eu sei", diz, arregaçando, devagar, uma manga: "É natural que as pessoas olhem".

Ana tem os olhos secos, quando recorda o minuto preciso em que percebeu o que estava a acontecer. Nem sequer tinham tido uma discussão séria. O normal: ele queria que ela se fosse deitar, ela tardava a ir para a cama e preferira sentar-se, no sofá da sala, a ver um episódio da série "Residencial Tejo", na TV. "Ouvi-o a sair do quarto, a aproximar-se e depois senti uma coisa fria a escorrer-me pelo corpo. Como ele apareceu do lado da despensa, percebi, de repente, que era ácido sulfúrico que ele lá tinha posto uns dois dias antes, dizendo que era para uma obra. Já me tinha ameaçado muitas vezes, dizia que havia de me queimar. De repente, percebi".

Foi há mais de um ano. Há dois meses, Ana regressou à Unidade de Queimados para visitar o Nuno, que numa manhã de Abril foi atingido com ácido pela ex-namorada, uma rapariga de 22 anos com quem terminara o relacionamento, há duas semanas. "Fui lá e, através do intercomunicador, disse-lhe para ter coragem, que o pior era a fase do internamento". Ana volta a baixar a manga: "Por um lado é verdade, é o pior: não há cadeia, não há dinheiro que paguem tanto sofrimento e o lado estético não é o mais importante. Consigo picar uma senha do autocarro, abrir um pacote de açúcar. Conheci queimados, no Hospital, que não eram capazes de fazer estas coisas". Mas nem sempre a Ana pensou assim: "O pior foi quando me disseram: 'este braço já está bom' e, depois, mo mostraram. Aquilo era já estar bom? Chorei muito e as enfermeiras diziam: 'não chore, olhe que os médicos fizeram aqui um bom trabalho'. Quando me vi a primeira vez, ao espelho, depois disto, não foi um choque muito grande porque me reconheci [só metade do rosto está queimado]. Agora, já me habituei".

Ana recortou tudo o que saiu nos jornais sobre os outros casos de queimaduras por ácido, mas ligou-se principalmente ao Nuno. Falou com a mãe dele e convenceu-se de que se tratou de um caso semelhante ao seu. Não lhe passa pela cabeça que o agressor não tenha avaliado, rigorosamente, a proporção entre o material corrosivo que usou e a gravidade das consequências: "O caso da Susana é diferente, quem deita dois litros de ácido quer, com certeza, matar". Não foi, ainda, visitá-la, à jovem de 22 anos que, na noite de 29 de Junho, quando chegava a casa, segundos depois de parar o automóvel, foi regada com ácido sulfúrico pelo ex-namorado.

Eduardo Sá não conhece nenhum destes casos concretos, tal como acontece com os psiquiatras Carlos Braz Saraiva e Adriano Vaz Serra, também professores na Universidade de Coimbra. Mas nenhum mostra ter dúvidas quando adivinha que a história que terminou com as manchetes dos jornais começou muito antes, talvez dezenas de anos antes, quando as condições de vida de três crianças - os agressores - se começaram a formar no sentido de que, um dia, elas viessem a sentir-se assim: 'monstros'.

"São, com certeza, pessoas com uma auto-estima muito reduzida e que passaram por acontecimentos traumáticos na infância, na adolescência e, talvez, também, na vida adulta", acredita Carlos Braz Saraiva. E Vaz Serra faz notar que, quando, ao longo do seu desenvolvimento, um indivíduo passa por experiências frequentes de rejeição, que lhe evocam emoções negativas, amargas e repetidas, pode desenvolver aquilo que é denominado por 'sensibilidade à rejeição'". "É como uma instalação eléctrica: o interruptor está lá, para a reacção se desencadear basta que alguém ou alguma coisa o accione", reforça Saraiva.

Eduardo Sá considera que não há amores doentios: "Há amor e há esta espécie de toxicodependência em que as pessoas se consomem e consomem os outros numa relação que destrói ambos". Ana sofreu a primeira agressão pouco depois do casamento. "Um dia, deu-me uma tareia tal que eu tive de ir para o hospital. Quando voltei para casa, disse-lhe que tinha contado tudo aos médicos e avisei-o de que, se ele voltasse a bater-me, dizia à polícia. Não voltou a tocar-me", conta. Começaram, então, as agressões verbais e Ana sabia como magoar um homem que já fora abandonado pela primeira mulher: ameaçava deixá-lo. Só no ano passado, no entanto, percebeu o que aquele homem seria capaz de fazer para tentar que a jura que repetiu dezenas de vezes se concretizasse: "Hás-de viver comigo o resto da vida".

Nos três casos, os detonadores poderão ter sido as sensações de rejeição, de abandono, de humilhação, vividas pelos agressores: Ana (ela própria abandonada num primeiro casamento) ameaçava deixar o marido; Nuno e Susana haviam terminado namoros de anos com os respectivos companheiros. "Num cenário de uma baixíssima auto-estima, se alguém me ameaça com uma separação, fica ainda mais claro aquilo que eu já sabia: que eu não presto", interpreta Eduardo Sá. Desencadeia-se, então, diz o psicoterapeuta, a história da Bela e do Monstro: "Talvez assim me possas amar".

"Não estou arrependido do que fiz, mas quando sair da prisão voltarei a aceitá-la com todos os defeitos físicos que tiver", terá dito o ex-namorado de Susana, depois de se entregar à polícia. "Não te preocupes, que tomo conta de ti", terá assegurado o marido de Ana, enquanto o corpo se lhe desfazia sob o efeito do ácido.

O marido de Ana queimou-lhe o rosto e o peito, atingindo-a também nos braços e nas pernas. O mesmo aconteceu com Susana, e o Nuno, esse, recebeu o ácido na cara e nos órgãos genitais. Não se tratou de um acaso ou de uma coincidência, acreditam os especialistas: Ana, Susana e Nuno foram atingidos naquilo que representa a sua identidade e que, simultaneamente, poderia ser apelativo para o sexo oposto. A mensagem, adivinham, terá sido: "Se não fores minha/meu, não serás de mais ninguém".

Na perspectiva de Eduardo Sá e Carlos Braz Saraiva, a reacção dos agressores resulta da incapacidade de lidar com a frustração amorosa, como insistem, devido a acontecimentos traumáticos anteriores. "Um prego exige um martelo, um parafuso exige uma chave de fendas. Mas há quem, não tendo as ferramentas interiores necessárias para lidar com a dor, tente aplicar um parafuso com um martelo", explica Braz Saraiva. Eduardo Sá tem uma interpretação ligeiramente diferente: "Incapaz de reparar a própria dor, o agressor sente-se compelido a triunfar sobre ela, branqueando-a".

O resultado não é, obviamente, o que poderiam esperar. Ana tortura-se de raiva: "Deviam deitar ácido em cima deles [dos agressores] e deixá-los queimar até ao fim", diz. Depois cai em si, explica que disse aquilo porque está "revoltada". É uma forma de reacção à dor de uma mulher que, segundo o psiquiatra que a acompanha, "está relativamente bem".

Ana desejaria que o marido pudesse avaliar, na pele, o sofrimento físico e psicológico que lhe causou, tal como o marido a fez sentir, na pele, o sofrimento que as ameaças de abandono lhe causaram. Mas Ana não faz nada para concretizar o desejo, antes se vai reconstruindo, orgulhosa, na dor. "Não quero que ele me veja, nunca mais, não quero dar-lhe o prazer de ver o estado em que me deixou. Mas quero que ele saiba que eu venci: não morri, não fui para o pé dele, e levo a minha vida, vou levar a minha vida", promete.

Anseia pela condenação do marido que, tal como o agressor de Susana, ainda está em prisão preventiva. Já a ex-namorada do Nuno está internada numa instituição psiquiátrica. Nem os psiquiatras nem o psicólogo consideram estar em condições de avaliar a possibilidade de os agressores serem considerados inimputáveis. Mas Eduardo Sá acredita que, de uma forma geral, quem comete este tipo de agressão está muito perturbado, precisa de ajuda. E Braz Saraiva considera que esta forma "vil e diabólica de lutar contra alguém" pode denunciar, em termos psiquiátricos, "doenças de personalidade, que englobam distúrbios impulsivos e comportamentos explosivos".

"Foi um acto chocante que não implica, necessariamente, a presença de um transtorno psiquiátrico. Representa um acto determinado por grande tensão emocional, mas esta não rouba, obrigatoriamente, o conhecimento da diferença entre o bem e o mal, o lícito e o ilícito, a consequência dos próprios actos. Quem pode compreender, ao certo, o que se passa na cabeça de alguém que comete um acto tresloucado?", questiona-se Adriano Vaz Serra. Mais para sublinhar a interrogação do que em jeito de resposta, cita Oscar Wilde: "Mas que estranho não me terem dito/ Que o cérebro pode conter/Numa pequena célula de marfim/ O céu de Deus e o inferno".

Longe dali, Ana, que ainda há pouco desejara a tortura ao marido, inclina-se para a frente e baixa o tom de voz: "Gostava de saber porque é que ele fez isto, se é pelo que eu penso. Não quero pensar que tenha sido por maldade. Espero que tenha sido para eu ficar dependente dele, para me ter a vida toda. Assim é um amor doentio, mas sempre posso pensar que ele me amava, à maneira dele...".

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