A outra face das cheias

26-02-2001
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A Outra Face das Cheias

Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO

Quinta-feira, 1 de Fevereiro de 2001 JOSÉ MOIO, O HOMEM QUE TINHA SAUDADES DAS CHEIAS EM MONTEMOR-O-VELHO Cresceu em pleno Mondego, em cima da barcaça que atravessava os agricultores e os carros de bois para o outro lado do rio. Na segunda-feira, as cheias ajudaram-no a desfiar memórias do tempo em que a subida das águas lhe anunciava o descanso Na segunda-feira, José Moio foi um dos muitos homens que desceram a colina do castelo, em Montemor-o-Velho, para voltar a encher os olhos de rio. Desceu devagar (que aos 72 anos pouco há que mereça pressa), em contramão dos que fugiam da cheia, e passou ao lado da tragédia com uma serenidade que só a saudade pode explicar. Tinha voltado, o Mondego. Não é fácil imaginar José Moio com sete anos de idade. Temos de recuar muito tempo para o ver, ainda franzino, por entre a algazarra dos homens, ao nascer do sol. Pode dizer-se que vivia ali, dentro da barcaça que anulava a fronteira entre Montemor e os campos férteis do vale, traçada pelas fúrias do rio. Não era um barquinho. E José Moio abre os braços para explicar que não era um barquinho: nela, na velha barcaça, cabiam três carros de bois e mais "uma junta de gado atravessada". Todos os anos o pai arrematava, na praça, a dita embarcação. E o direito de explorar, a troco de moedas ou de alqueires de milho, aquela espécie de ponte oscilante. No tempo do cultivo, poucas vezes a família ia a casa. Vivia numa barraca, junto ao barco e ao rio, e José Moio recorda a alegria com que saudava as cheias - "A gente levantava-se e, quando ia a pôr os pés no chão, estava na água...". Era tempo de descanso. Não que se cansasse muito: só perto dos 10 anos ganhou corpo para pegar na vara e ajudar o pai na dura tarefa de empurrar a barcaça, à força de braços, até ao outro lado do Mondego. Mas queria brincar. Lá em cima, na vila, as cheias não arrastavam a tragédia que este ano trouxeram. Pelo menos não é isso que José Moio recorda. As pessoas já contavam com ela, com a água, e corriam ao sabor dela, da água. Quando o rio subia, tiravam os animais do piso térreo e protegiam os haveres no primeiro andar. Os barcos subiam do rio até à vila e cruzavam-se, nas ruas, com os mais afoitos, que atravessavam a estrada naquilo a que José Moio chama muletas, umas antas que lhes emprestavam mais meio metro de altura. O padeiro, num bote, avisava da chegada com uma corneta e as mulheres faziam descer da janela uma saca de pão, pendurada na ponta de um cordel. A feira quinzenal mudava de poiso e já ninguém perguntava onde ela estava e os rapazes novos aproveitavam para dar largas à folia, em serenatas improvisadas naquela Veneza temporária. As raparigas respondiam com gargalhadas e arrefeciam-lhe a ousadia com baldes de água. Devia haver coisas más, certamente que havia. A sardinha dividida por dois ou por três, os cereais que escasseavam, a humidade e o frio. Mas não é isso que José Moio quer recordar, hoje. Passaram muitos anos, alguns a fazer a época das vinhas no Ribatejo, muitos mais a trabalhar na quinta dos choupos, primeiro como agricultor e depois como encarregado, do outro lado do rio. Ganhou então a outra cara, a que usava depois de atravessar o Mondego, quando tinha homens ao seu serviço. "Depois de passar o rio ninguém lhe via os dentes", riem os amigos. Trabalhou, diz que trabalhou muito. Aprendeu a escrever o nome e a fazer contas, já homem feito, na escola da noite. Criou duas filhas, deu-lhes os estudos que não teve e orgulha-se disso. Depois, os donos da quinta venderam-na e José Moio percebeu que já não tinha pernas para subir aos tractores. Voltou ao sossego da vila e a um descanso que distraía com passeios de bicicleta até à ponte do rio velho, porque o Mondego, desviado e encanado desde Coimbra até perto da Figueira da Foz, ficou-lhe longe de mais. No domingo, o rio voltou. Destruiu com fúria a velha ponte, invadiu os campos e subiu à vila, alagando casas e desalojando centenas de famílias. José Moio sabe disso e disfarça uma pontinha de culpa quando deixa os olhos sorrirem às recordações. Explica que "é bom que as pessoas saibam o que isto era", mas depois não sabe explicar porquê. E volta a contar que depois de construírem as novas travessias e de o terem domesticado, ao Mondego, "a barcaça morreu", inútil, "debaixo da ponte velha". OUTROS TÍTULOS EM ÚLTIMA PÁGINA A outra face das cheias

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