Couto de caça não paga a proprietários

17-11-2000
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Irene Rovisco: a dona da Terrosa pensava que as suas terras ficariam mais protegidas dentro da reserva. Afinal, os prejuízos já vão em 20 mil contos

A situação é comum a quase metade dos cerca de 50 proprietários das terra anexadas àquela que é das maiores coutada de Portugal, com 8500 hectares. A Câmara e os responsáveis da empresa reconhecem o erro e responsabilizam o anterior presidente da autarquia e presidente do conselho de administração da Enasel, o deputado do PSD Torres Pereira, que deixou aqueles cargos depois das últimas eleições autárquicas de 1995.

D. Irene Rovisco, 75 anos, cansou-se de «esperar que se resolvesse tudo a bem» e decidiu processar a Câmara, exigindo uma indemnização «pelos danos causados e pelas rendas não pagas», cujo valor «ultrapassa os 20 mil contos».

Foi a primeira, mas há outros proprietários que equacionam seguir-lhe o exemplo. A Enasel está, entretanto, à beira da falência. Logo à entrada da Herdade da Terrosa, a propriedade de D. Irene, encontram-se caixas de cartucho vazias e latas de cerveja que testemunham a passagem dos caçadores. «A minha terra é conhecida aqui nas redondezas pelo 'hotel do coelho'. É um sítio muito procurado na época de caça». Mais adiante aponta para uma cerca derrubada: «É isto todos os anos. Destroem-nos as vedações, deixam lixo, e nós é que temos de pagar tudo. Eles têm ganho para aqui dinheiro que nunca mais acaba à nossa custa e nós não vemos um tostão.»

Quando foi contactada pela Câmara para que os seus cerca de 200 hectares de terras fizessem parte daquela que viria a Zona de Caça Turística de Sousel, Irene Teles Rovisco acreditava que podia ser benéfico para a sua propriedade: «Os caçadores destruíam tudo, levavam a azeitona, e eu acreditava que com os guardas que eles prometiam íamos ficar mais protegidos», justifica.

Alteração de documentos

Este foi o motivo que levou D. Irene a assinar um «acordo prévio», no qual se comprometia ao «arrendamento da exploração comercial da caça» na sua propriedade à CMS, a partir da temporada de caça de 1988/99, «em condições de retribuição a fixar oportunamente no respectivo contrato de arrendamento».

Mas o contrato que lhe foi posteriormente apresentado continha condições que considerou «inaceitáveis». «Por exemplo, éramos obrigados a encurralar os animais durante a época de caça e tínhamos de avisar sempre que fizéssemos tratamentos químicos nas culturas», assevera a proprietária. «Assinar aquele contrato era assinar a minha pena de morte», sublinha D.Irene. «Não assinei e pensei que o assunto estava arrumado.»

Mas não estava. Dois anos depois foi confrontada com a colocação de placas na sua propriedade que diziam «reserva de caça número um». «Desde então fiz de tudo para saber o que se tinha passado sem nunca conseguir resposta e, entretanto, fui vendo a minha terra ser invadida», afirma. «Só depois de mudar o governo e de sair daqui o presidente do PSD, Torres Pereira, é que conseguimos consultar o processo. Ficámos boquiabertos com o que vimos.»

De acordo com o processo, a que o EXPRESSO também teve acesso, mesmo sem o contrato, o referido «acordo prévio» serviu para que a Câmara tomasse conta da exploração comercial da caça na propriedade. À folha única que constituía o compromisso de arrendamento foi anexada uma segunda, sem o conhecimento da proprietária, na qual está escrito que o acordo «é válido pelo período mínimo de seis anos». Assina em baixo Artur Torres Pereira. Este período viria depois a ser alargado por mais seis anos, também sem o conhecimento dos proprietários.

O advogado Carlos Mouro Pereira, que representa D. Irene Rovisco no processo contra a Câmara, acredita que se está «perante um crime de vício e alteração de documentos» e vai pedir ao Ministério Público que confirme a sua suspeita e instaure um processo contra o deputado social-democrata.

Os serviços jurídicos do Ministério da Agricultura reconheceram, num parecer elaborado em 1996, que há irregularidades em todo o processo, mas dizem não poder fazer nada porque o prazo de reclamação (um ano) já tinha terminado. «Isto foi tudo feito de tal forma que os proprietários ficaram de mãos atadas. Nunca nos falaram do prazo para reclamar», diz Ângelo Gonçalves, dono de cerca de 600 hectares de terras integradas na coutada, sem que, tal como Irene Rovisco, assinasse qualquer contrato.

«Tenciono pedir a desanexação das minhas terras, o que é caricato, já que nunca autorizei a sua anexação, e exigir ser ressarcido de todos os prejuízos que tenho tido», diz D. Irene.

Torres Pereira contesta

Torres Pereira responde às acusações com um lacónico «não é a tentar encontrar bodes expiatórios para os problemas que eles se resolvem». O deputado do PSD diz desconhecer as dívidas referidas pela actual direcção e garante que «foram feitos os acordos exigidos pela lei com todos os proprietários». Tendo deixado a presidência do conselho de administração da Enasel em 1995 - quando trocou a presidência da Câmara pelo Parlamento -, não entende «porque é que nestes três anos a situações litigiosas não foram regularizadas».

Recusa-se a aceitar qualquer «insinuação» de que houve «alteração de conteúdo de documentos». «A lei dizia que a validade mínima das concessões era de seis anos e, ao assinarem o acordo prévio, já sabiam isso», afirma. «Desejo sinceramente aos meus sucessores que não desfaleçam e que consigam resolver os problemas que lhes surjam, tal como fiz durante os 17 anos que estive à frente da edilidade», acrescenta ainda.

D. Irene Teles Varela Pais Rovisco não hesita nem um segundo e está disposta a ir até «às últimas consequências» com o processo. «Esse senhor deputado fez-nos muito mal, mas eu nunca deixei que fizessem pouco de mim e não é agora aos 75 anos que vou deixar. Não tenho medo de morrer.»

Valentina Marcelino

Caçadas a mil contos por dia

A ENASEL encontra-se em «colapso financeiro», causado, nas palavras do actual director, Augusto Calça e Pina, «por uma gestão ruinosa da anterior administração» (presidida por Torres Pereira). Segundo Calça e Pina, a «falência técnica» foi confirmada por uma auditoria às contas da empresa.

As dívidas ascendem aos 90 mil contos, entre as quais 46 mil por falta de pagamento de rendas aos proprietários das terras integradas na reserva.

O presidente da Câmara de Sousel, Emílio Sabido, do Partido Socialista, admite que «é uma situação triste» e assegura que está, «em conjunto com a Enasel, a fazer todos os possíveis para desbloquear a situação». Calça e Pina tem-se reunido com os proprietários, apresentando-lhes um plano de viabilização da empresa. «Queremos pagar tudo o que está em atraso mas temos de viabilizar a empresa», afirma, «e com uma gestão correcta isso é possível. Na época 1999/2000 esperamos facturar cerca de 42 mil contos e na seguinte prevemos facturar 50 mil». Ainda segundo o responsável da Enasel, as caçadas chegam a render «mil contos por dia».

Irene Rovisco: a dona da Terrosa pensava que as suas terras ficariam mais protegidas dentro da reserva. Afinal, os prejuízos já vão em 20 mil contos

A situação é comum a quase metade dos cerca de 50 proprietários das terra anexadas àquela que é das maiores coutada de Portugal, com 8500 hectares. A Câmara e os responsáveis da empresa reconhecem o erro e responsabilizam o anterior presidente da autarquia e presidente do conselho de administração da Enasel, o deputado do PSD Torres Pereira, que deixou aqueles cargos depois das últimas eleições autárquicas de 1995.

D. Irene Rovisco, 75 anos, cansou-se de «esperar que se resolvesse tudo a bem» e decidiu processar a Câmara, exigindo uma indemnização «pelos danos causados e pelas rendas não pagas», cujo valor «ultrapassa os 20 mil contos».

Foi a primeira, mas há outros proprietários que equacionam seguir-lhe o exemplo. A Enasel está, entretanto, à beira da falência. Logo à entrada da Herdade da Terrosa, a propriedade de D. Irene, encontram-se caixas de cartucho vazias e latas de cerveja que testemunham a passagem dos caçadores. «A minha terra é conhecida aqui nas redondezas pelo 'hotel do coelho'. É um sítio muito procurado na época de caça». Mais adiante aponta para uma cerca derrubada: «É isto todos os anos. Destroem-nos as vedações, deixam lixo, e nós é que temos de pagar tudo. Eles têm ganho para aqui dinheiro que nunca mais acaba à nossa custa e nós não vemos um tostão.»

Quando foi contactada pela Câmara para que os seus cerca de 200 hectares de terras fizessem parte daquela que viria a Zona de Caça Turística de Sousel, Irene Teles Rovisco acreditava que podia ser benéfico para a sua propriedade: «Os caçadores destruíam tudo, levavam a azeitona, e eu acreditava que com os guardas que eles prometiam íamos ficar mais protegidos», justifica.

Alteração de documentos

Este foi o motivo que levou D. Irene a assinar um «acordo prévio», no qual se comprometia ao «arrendamento da exploração comercial da caça» na sua propriedade à CMS, a partir da temporada de caça de 1988/99, «em condições de retribuição a fixar oportunamente no respectivo contrato de arrendamento».

Mas o contrato que lhe foi posteriormente apresentado continha condições que considerou «inaceitáveis». «Por exemplo, éramos obrigados a encurralar os animais durante a época de caça e tínhamos de avisar sempre que fizéssemos tratamentos químicos nas culturas», assevera a proprietária. «Assinar aquele contrato era assinar a minha pena de morte», sublinha D.Irene. «Não assinei e pensei que o assunto estava arrumado.»

Mas não estava. Dois anos depois foi confrontada com a colocação de placas na sua propriedade que diziam «reserva de caça número um». «Desde então fiz de tudo para saber o que se tinha passado sem nunca conseguir resposta e, entretanto, fui vendo a minha terra ser invadida», afirma. «Só depois de mudar o governo e de sair daqui o presidente do PSD, Torres Pereira, é que conseguimos consultar o processo. Ficámos boquiabertos com o que vimos.»

De acordo com o processo, a que o EXPRESSO também teve acesso, mesmo sem o contrato, o referido «acordo prévio» serviu para que a Câmara tomasse conta da exploração comercial da caça na propriedade. À folha única que constituía o compromisso de arrendamento foi anexada uma segunda, sem o conhecimento da proprietária, na qual está escrito que o acordo «é válido pelo período mínimo de seis anos». Assina em baixo Artur Torres Pereira. Este período viria depois a ser alargado por mais seis anos, também sem o conhecimento dos proprietários.

O advogado Carlos Mouro Pereira, que representa D. Irene Rovisco no processo contra a Câmara, acredita que se está «perante um crime de vício e alteração de documentos» e vai pedir ao Ministério Público que confirme a sua suspeita e instaure um processo contra o deputado social-democrata.

Os serviços jurídicos do Ministério da Agricultura reconheceram, num parecer elaborado em 1996, que há irregularidades em todo o processo, mas dizem não poder fazer nada porque o prazo de reclamação (um ano) já tinha terminado. «Isto foi tudo feito de tal forma que os proprietários ficaram de mãos atadas. Nunca nos falaram do prazo para reclamar», diz Ângelo Gonçalves, dono de cerca de 600 hectares de terras integradas na coutada, sem que, tal como Irene Rovisco, assinasse qualquer contrato.

«Tenciono pedir a desanexação das minhas terras, o que é caricato, já que nunca autorizei a sua anexação, e exigir ser ressarcido de todos os prejuízos que tenho tido», diz D. Irene.

Torres Pereira contesta

Torres Pereira responde às acusações com um lacónico «não é a tentar encontrar bodes expiatórios para os problemas que eles se resolvem». O deputado do PSD diz desconhecer as dívidas referidas pela actual direcção e garante que «foram feitos os acordos exigidos pela lei com todos os proprietários». Tendo deixado a presidência do conselho de administração da Enasel em 1995 - quando trocou a presidência da Câmara pelo Parlamento -, não entende «porque é que nestes três anos a situações litigiosas não foram regularizadas».

Recusa-se a aceitar qualquer «insinuação» de que houve «alteração de conteúdo de documentos». «A lei dizia que a validade mínima das concessões era de seis anos e, ao assinarem o acordo prévio, já sabiam isso», afirma. «Desejo sinceramente aos meus sucessores que não desfaleçam e que consigam resolver os problemas que lhes surjam, tal como fiz durante os 17 anos que estive à frente da edilidade», acrescenta ainda.

D. Irene Teles Varela Pais Rovisco não hesita nem um segundo e está disposta a ir até «às últimas consequências» com o processo. «Esse senhor deputado fez-nos muito mal, mas eu nunca deixei que fizessem pouco de mim e não é agora aos 75 anos que vou deixar. Não tenho medo de morrer.»

Valentina Marcelino

Caçadas a mil contos por dia

A ENASEL encontra-se em «colapso financeiro», causado, nas palavras do actual director, Augusto Calça e Pina, «por uma gestão ruinosa da anterior administração» (presidida por Torres Pereira). Segundo Calça e Pina, a «falência técnica» foi confirmada por uma auditoria às contas da empresa.

As dívidas ascendem aos 90 mil contos, entre as quais 46 mil por falta de pagamento de rendas aos proprietários das terras integradas na reserva.

O presidente da Câmara de Sousel, Emílio Sabido, do Partido Socialista, admite que «é uma situação triste» e assegura que está, «em conjunto com a Enasel, a fazer todos os possíveis para desbloquear a situação». Calça e Pina tem-se reunido com os proprietários, apresentando-lhes um plano de viabilização da empresa. «Queremos pagar tudo o que está em atraso mas temos de viabilizar a empresa», afirma, «e com uma gestão correcta isso é possível. Na época 1999/2000 esperamos facturar cerca de 42 mil contos e na seguinte prevemos facturar 50 mil». Ainda segundo o responsável da Enasel, as caçadas chegam a render «mil contos por dia».

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