O regresso da Praça Pública

18-07-2001
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O Regresso da Praça Pública

Por EDUARDO CINTRA TORRES

Segunda, 25 de Junho de 2001 O Praça Pública foi uma das novidades da SIC na TV portuguesa no início dos anos 90. O povo saltava de rompante pelo ecrã fora e obrigava o poder a estar alerta. Além das eleições, o cidadão comum passava a exprimir a sua escolha, todos os dias, na TV. As obras que não acabam, a falta de respeito de autarcas, empresários e governos pelos mais fracos - essas coisas comezinhas do controle do exercício do poder faziam-se agora com a ajuda do ecrã. A actividade política tinha fatalmente de alterar-se perante o novo meio de comunicação de massa. Muitos políticos tremeram com o Praça Pública da SIC - não por causa do "populismo" e do "mau gosto" (as duas expressões que vêm a calhar quando a classe média e as elites temem o que vem "de baixo"), mas porque temiam o escrutínio público. Perceberam que muito pior do que um grupo revoltado numa Assembleia Municipal é uma voz certeira na televisão. A mudança de Governo em 1995 do PSD de Cavaco Silva, ícone de autoridade democrática, para António Guterres, arauto de diálogo democrático, relaciona-se com a nova maneira de fazer política que passa por uma atenção maior às expressões de opinião pública nos meios de comunicação. O PSD já não foi a tempo de mudar. A par do desgaste no poder, havia também desacerto entre a forma de fazer política e a forma como o país começava a expressar-se nos meios de informação. Estes, em especial a SIC, abriram-se às formas emergentes de recurso aos meios de informação para protestar. O processo não foi apenas transparente: recorde-se Armando Vara nos bastidores da Ponte 25 de Abril organizando o buzinão que simbolizou a queda do cavaquismo. E Estrela Serrano, em tese académica, revelou como a estratégia comunicacional do então Presidente da República Mário Soares a partir da sua reeleição visava desgastar o governo de Cavaco e encontrar pontos de fricção entre a governação e a sociedade. A tese desta assessora de Soares durante dez anos comprova o que todos sabíamos por intuição: a acção política de Soares visava derrubar Cavaco. A prática política e a prática jornalística entrelaçaram-se então como dois braços de uma trepadeira. Hoje, à distância de quase uma década, podemos comparar a Praça Pública da SIC com as presidências abertas de Soares. Cronologicamente, começaram no mesmo momento político. Mas mais: as presidências abertas de Soares coincidiram nos efeitos, talvez nos objectivos, e muitas vezes na forma com as notícias do Praça Pública. As presidências abertas eram "hipóteses de reportagem" do tipo das do Praça Pública. Com uma única diferença importante: na presidência aberta o repórter de serviço era o Presidente da República. As queixas eram as mesmas. Em ambos os casos dava-se a voz a um dos lados da notícia e parecia não haver o princípio do contraditório: os atacados não estavam lá para se defender ou faziam-no no papel de culpados. Quer o Praça Pública quer Soares encontravam temas "fracturantes" que incomodavam o poder cavaquista. Se essa é uma missão do jornalismo, era-o pela primeira vez da presidência. Em ambos os casos a consequência política da comunicação era o desgaste do poder, a irritação com o Governo. Ainda antes de eleger um presidente (o do Benfica), a SIC mostrava que a TV pode contribuir em muito para derrubar governos. O Governo PSD caiu e as coincidências prosseguiram: Soares não voltou a fazer presidências abertas e o Praça Pública desapareceu da SIC; depois, Jorge Sampaio não fez presidências abertas do tipo soarista (o Governo é do mesmo partido) no primeiro mandato e também a SIC continuou sem Praça Pública. Várias vezes escrevi que o Praça Pública não deveria ter acabado e que as razões por que havia terminado eram suspeitamente políticas. Emídio Rangel declarou repetidamente que terminara o Praça Pública porque o modelo estava esgotado. Afinal, o modelo do Praça Pública não estava esgotado - voltou à SIC e à SIC Notícias e está pela primeira vez em directo no Jornal da Noite, o programa nobre por excelência da SIC, e três vezes por dia na SIC Notícias. A leitura comparada política/TV não termina, porém: neste mesmo momento Sampaio retomou no Alto Minho o conceito soarista de presidência aberta protagonizante (quer distanciar-se do Governo desgastado). É certo que Sampaio conseguiu orientar a presidência aberta contra o chumbo nacional da regionalização em referendo (coisa bizarra para um Presidente democrático), afastando-a dos temas antigovernamentais. Tal como a presidência aberta, também o Praça Pública está "descentrado": faz hoje, pela primeira vez, o contraponto do poder às queixas do povo. O Praça Pública voltou diferente, com o princípio do contraditório: o povo está mais manso, e, depois de ouvir os acusadores, o Praça Pública ouve agora os desmentidos dos acusados, o que amacia o conceito original - está mais certo agora do que ouvir apenas uma das partes, mas pode perguntar-se por que não era assim nos anos 90. O regresso do Praça Pública significa em primeiro lugar que o modelo só esteve "esgotado" durante o primeiro mandato do Governo de Guterres; segundo, que estando a TVI a fazer a sua própria "praça pública" e por isso a capitalizar audiências, a SIC tinha que retomar o contacto directo com os mais fracos; terceiro, que a SIC não quer ficar demasiado identificada com a actual governação guterrista quando essa governação já não tem "audiências". A SIC percebeu tarde, como tantas vezes aconteceu com a nossa imprensa, que nenhum órgão de informação de massa mantém um grande público quando se aproxima do poder e se afasta dos mais fracos. Quando um órgão de informação se liga ao poder, os leitores ou espectadores deixam de o sentir como "seu". A queda de audiências da SIC acompanhou a queda de popularidade do Governo. Apesar de fora de tempo e do enquadramento político em que se inscreve, é positivo o regresso do Praça Pública à SIC, no que tem de melhor: a TV em directo, o dar a voz "aos outros", o propor-se revelar casos de incompetência, aldrabice, incúria, promessas vãs, demagogia, desrespeito da lei e abandono a que poderosos, públicos e privados, votam os seus concidadãos. É vantajoso para os cidadãos que haja escrutínio do poder através da televisão. É uma das suas formas de fazer política. O directo não pode ficar apenas para os políticos. OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Redacção da SIC ameaça romper com SIC-Notícias

Cenário de ruptura

Nova entidade reguladora do audiovisual em debate público

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Segunda, 25 de Junho de 2001 O Praça Pública foi uma das novidades da SIC na TV portuguesa no início dos anos 90. O povo saltava de rompante pelo ecrã fora e obrigava o poder a estar alerta. Além das eleições, o cidadão comum passava a exprimir a sua escolha, todos os dias, na TV. As obras que não acabam, a falta de respeito de autarcas, empresários e governos pelos mais fracos - essas coisas comezinhas do controle do exercício do poder faziam-se agora com a ajuda do ecrã. A actividade política tinha fatalmente de alterar-se perante o novo meio de comunicação de massa. Muitos políticos tremeram com o Praça Pública da SIC - não por causa do "populismo" e do "mau gosto" (as duas expressões que vêm a calhar quando a classe média e as elites temem o que vem "de baixo"), mas porque temiam o escrutínio público. Perceberam que muito pior do que um grupo revoltado numa Assembleia Municipal é uma voz certeira na televisão. A mudança de Governo em 1995 do PSD de Cavaco Silva, ícone de autoridade democrática, para António Guterres, arauto de diálogo democrático, relaciona-se com a nova maneira de fazer política que passa por uma atenção maior às expressões de opinião pública nos meios de comunicação. O PSD já não foi a tempo de mudar. A par do desgaste no poder, havia também desacerto entre a forma de fazer política e a forma como o país começava a expressar-se nos meios de informação. Estes, em especial a SIC, abriram-se às formas emergentes de recurso aos meios de informação para protestar. O processo não foi apenas transparente: recorde-se Armando Vara nos bastidores da Ponte 25 de Abril organizando o buzinão que simbolizou a queda do cavaquismo. E Estrela Serrano, em tese académica, revelou como a estratégia comunicacional do então Presidente da República Mário Soares a partir da sua reeleição visava desgastar o governo de Cavaco e encontrar pontos de fricção entre a governação e a sociedade. A tese desta assessora de Soares durante dez anos comprova o que todos sabíamos por intuição: a acção política de Soares visava derrubar Cavaco. A prática política e a prática jornalística entrelaçaram-se então como dois braços de uma trepadeira. Hoje, à distância de quase uma década, podemos comparar a Praça Pública da SIC com as presidências abertas de Soares. Cronologicamente, começaram no mesmo momento político. Mas mais: as presidências abertas de Soares coincidiram nos efeitos, talvez nos objectivos, e muitas vezes na forma com as notícias do Praça Pública. As presidências abertas eram "hipóteses de reportagem" do tipo das do Praça Pública. Com uma única diferença importante: na presidência aberta o repórter de serviço era o Presidente da República. As queixas eram as mesmas. Em ambos os casos dava-se a voz a um dos lados da notícia e parecia não haver o princípio do contraditório: os atacados não estavam lá para se defender ou faziam-no no papel de culpados. Quer o Praça Pública quer Soares encontravam temas "fracturantes" que incomodavam o poder cavaquista. Se essa é uma missão do jornalismo, era-o pela primeira vez da presidência. Em ambos os casos a consequência política da comunicação era o desgaste do poder, a irritação com o Governo. Ainda antes de eleger um presidente (o do Benfica), a SIC mostrava que a TV pode contribuir em muito para derrubar governos. O Governo PSD caiu e as coincidências prosseguiram: Soares não voltou a fazer presidências abertas e o Praça Pública desapareceu da SIC; depois, Jorge Sampaio não fez presidências abertas do tipo soarista (o Governo é do mesmo partido) no primeiro mandato e também a SIC continuou sem Praça Pública. Várias vezes escrevi que o Praça Pública não deveria ter acabado e que as razões por que havia terminado eram suspeitamente políticas. Emídio Rangel declarou repetidamente que terminara o Praça Pública porque o modelo estava esgotado. Afinal, o modelo do Praça Pública não estava esgotado - voltou à SIC e à SIC Notícias e está pela primeira vez em directo no Jornal da Noite, o programa nobre por excelência da SIC, e três vezes por dia na SIC Notícias. A leitura comparada política/TV não termina, porém: neste mesmo momento Sampaio retomou no Alto Minho o conceito soarista de presidência aberta protagonizante (quer distanciar-se do Governo desgastado). É certo que Sampaio conseguiu orientar a presidência aberta contra o chumbo nacional da regionalização em referendo (coisa bizarra para um Presidente democrático), afastando-a dos temas antigovernamentais. Tal como a presidência aberta, também o Praça Pública está "descentrado": faz hoje, pela primeira vez, o contraponto do poder às queixas do povo. O Praça Pública voltou diferente, com o princípio do contraditório: o povo está mais manso, e, depois de ouvir os acusadores, o Praça Pública ouve agora os desmentidos dos acusados, o que amacia o conceito original - está mais certo agora do que ouvir apenas uma das partes, mas pode perguntar-se por que não era assim nos anos 90. O regresso do Praça Pública significa em primeiro lugar que o modelo só esteve "esgotado" durante o primeiro mandato do Governo de Guterres; segundo, que estando a TVI a fazer a sua própria "praça pública" e por isso a capitalizar audiências, a SIC tinha que retomar o contacto directo com os mais fracos; terceiro, que a SIC não quer ficar demasiado identificada com a actual governação guterrista quando essa governação já não tem "audiências". A SIC percebeu tarde, como tantas vezes aconteceu com a nossa imprensa, que nenhum órgão de informação de massa mantém um grande público quando se aproxima do poder e se afasta dos mais fracos. Quando um órgão de informação se liga ao poder, os leitores ou espectadores deixam de o sentir como "seu". A queda de audiências da SIC acompanhou a queda de popularidade do Governo. Apesar de fora de tempo e do enquadramento político em que se inscreve, é positivo o regresso do Praça Pública à SIC, no que tem de melhor: a TV em directo, o dar a voz "aos outros", o propor-se revelar casos de incompetência, aldrabice, incúria, promessas vãs, demagogia, desrespeito da lei e abandono a que poderosos, públicos e privados, votam os seus concidadãos. É vantajoso para os cidadãos que haja escrutínio do poder através da televisão. É uma das suas formas de fazer política. O directo não pode ficar apenas para os políticos. OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Redacção da SIC ameaça romper com SIC-Notícias

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