O arquivamento exemplar do caso Saleiro

19-02-2001
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O Arquivamento Exemplar do Caso Saleiro

Por JOSÉ ANTÓNIO CEREJO

Terça-feira, 9 de Janeiro de 2001 O desfecho das investigações judiciais às actividades de António Saleiro é um notável exemplo do funcionamento da justiça criminal portuguesa. A Polícia Judiciária juntou numerosas provas contra o arguido durante dois anos. Mais tarde, o Ministério Público limitou-se a ouvir Saleiro e cinco testemunhas por ele indicadas. Em meia dúzia de palavras, os seis negam tudo o que a investigação concluiu. E os seus testemunhos foram suficientes para arquivar o caso. O Ministério Público arquivou o processo no qual o deputado socialista António Saleiro estava indiciado pela prática do crime de corrupção passiva com base numa sumaríssima inquirição do arguido e em cinco testemunhos igualmente sumários e nunca contraditados. Graças às declarações destas testemunhas e a um recente documento atribuído a uma sociedade macaense que a Polícia Judiciária (PJ) não conseguiu localizar, o procurador da República de Beja atirou para a prateleira o resultado de mais de dois anos de investigações judiciais. Passando por cima de muitos dos indícios e das provas carreados para os autos pela PJ, o Ministério Público (MP) ignorou também a proposta de realização de uma busca no escritório do advogado e antigo deputado e dirigente socialista Roque Lino. Ao longo de mais de 1100 páginas de inquirições e documentos, a que se juntam vários apêndices referentes às contas bancárias de Saleiro e da empresa da mulher, a Polícia Judiciária aprofundou alguns dos aspectos das actividades do ex-autarca que foram objecto de tratamento jornalístico nas páginas do PÚBLICO. De fora ficaram, no entanto, assuntos como a Fundação de Amizade Portugal-Holanda e a Rádio Voz de Almodôvar. Por investigar ficou igualmente um enigmático fax em que o empresário chinês que encabeçava um projecto imobiliário no concelho de Almodôvar - conhecido por Semblana Golfe e que nunca passou do papel - se referia a um cheque, sem mencionar o seu valor, e a uma carta enviados a Saleiro, juntamente com um outro cheque de cerca de 22 mil contos destinado ao pagamento de taxas municipais que não eram devidas naquele momento. No Verão de 1997, quando o PÚBLICO consultou a documentação relativa ao licenciamento do Semblana Golfe, a pista do cheque mandado pelos chineses ao empresário e então autarca ainda se encontrava no processo arquivado na câmara. Ao que tudo indica, quando a PJ investigou esse mesmo processo, meses depois, isso já não sucedia. Pelo menos é o que se pode deduzir do facto de a polícia ter feito inúmeras diligências referentes ao cheque dos 22 mil contos e não fazer uma única alusão ao outro. MP ignora proposta de busca No despacho que encerra a investigação da PJ, datado de Novembro do ano passado, um dos seus directores escreve que "existem indícios nos autos, pelo menos, de que o suspeito António Saleiro terá recebido vantagens económicas concomitantes com a 'simplificação' de procedimentos na aprovação de um empreendimento urbanístico da iniciativa do designado grupo empresarial 'Concourse Group'" - a "holding" dos chineses - e propõe que Saleiro seja constituído arguido. Rosário Teixeira acrescenta que "atenta a posição do senhor advogado [Roque Lino tinha invocado o sigilo profissional para não prestar declarações à polícia] e sendo de presumir que terá na sua posse documentação útil para os autos, seria de ponderar a possibilidade de realização de uma busca no seu escritório, pese embora se reconheça a acrescida demora que daí poderá resultar". O procurador da República junto do Tribunal Judicial de Beja, Luís Lança, a quem o processo foi remetido pouco depois, acompanhou a proposta de constituição do deputado como arguido, mas nada disse sobre o pedido de busca. Nos onze meses que se seguiram, até à emissão do despacho de arquivamento, em 20 de Outubro passado, o MP limitou-se a diligenciar no sentido do levantamento da imunidade parlamentar de Saleiro e a inquirir o arguido mais as cinco testemunhas sugeridas pelo seu advogado, João Nabais. Ouvido por Luís Lança no início de Maio, António Saleiro pronunciou-se sumariamente sobre aquilo que lhe foi perguntado e que se prende exclusivamente com as conclusões a que a PJ chegou em cinco dos casos investigados. As suas explicações resumem-se a três páginas dos autos e negam toda a prova apresentada pela Judiciária. Em causa estiveram as condições privilegiadas em que a Petrogal lhe atribuiu a concessão de quatro postos de abastecimento de combustíveis; o recebimento pelo arguido de 4300 contos a título de rendas de uma propriedade dos chineses; a cobrança a Joaquim Botelho de uma comissão de 2500 contos, relacionada com a venda de uma propriedade aos mesmos chineses; o pagamento por estes de uma viagem do arguido, mulher e filhos a Hong Kong e à China, no valor de 1400 contos, numa altura em que estava em apreciação o licenciamento do Semblana Golfe; e o recebimento pela Câmara de Almodôvar de um cheque de cerca de 22 mil contos relativos ao mesmo licenciamento. Quanto às cinco testemunhas indicadas pelo advogado, os seus depoimentos (ver outro texto) limitaram-se a contrariar os testemunhos e documentos reunidos pela PJ, sem que fosse efectuada qualquer diligência adicional para esclarecer onde é que estava a verdade. Perante as provas reunidas pela Judiciária, por um lado, e os depoimentos do arguido e das suas testemunhas, bem como um recente documento atribuído ao Concourse Group sobre o indiciado pagamento pelos chineses da viagem da família Saleiro ao Oriente, por outro, o Ministério Público concluiu, em dez linhas, que não existem "elementos de prova suficientes que conduzam à dedução de acusação do arguido por prática de ilícito criminal", razão pela qual determinou o arquivamento dos autos. Esta decisão foi tomada pelo mesmo procurador da República, Luís Lança, que recorreu para o Tribunal da Relação de Évora das decisões do Tribunal de Almodôvar que mandaram arquivar, por falta de provas, as queixas de António Saleiro contra vários jornalistas do PÚBLICO - entre os quais, o autor deste texto - , um jornalista do "Diário do Alentejo" e ainda Marcelo Rebelo de Sousa, na altura líder da oposição, por alegados crimes de difamação relacionados com todos estes casos. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE O arquivamento exemplar do caso Saleiro

EDITORIAL Uma história exemplar

Testemunhos sumários anulam provas da PJ

Os casos que o Ministério Público ignorou

O Arquivamento Exemplar do Caso Saleiro

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Terça-feira, 9 de Janeiro de 2001 O desfecho das investigações judiciais às actividades de António Saleiro é um notável exemplo do funcionamento da justiça criminal portuguesa. A Polícia Judiciária juntou numerosas provas contra o arguido durante dois anos. Mais tarde, o Ministério Público limitou-se a ouvir Saleiro e cinco testemunhas por ele indicadas. Em meia dúzia de palavras, os seis negam tudo o que a investigação concluiu. E os seus testemunhos foram suficientes para arquivar o caso. O Ministério Público arquivou o processo no qual o deputado socialista António Saleiro estava indiciado pela prática do crime de corrupção passiva com base numa sumaríssima inquirição do arguido e em cinco testemunhos igualmente sumários e nunca contraditados. Graças às declarações destas testemunhas e a um recente documento atribuído a uma sociedade macaense que a Polícia Judiciária (PJ) não conseguiu localizar, o procurador da República de Beja atirou para a prateleira o resultado de mais de dois anos de investigações judiciais. Passando por cima de muitos dos indícios e das provas carreados para os autos pela PJ, o Ministério Público (MP) ignorou também a proposta de realização de uma busca no escritório do advogado e antigo deputado e dirigente socialista Roque Lino. Ao longo de mais de 1100 páginas de inquirições e documentos, a que se juntam vários apêndices referentes às contas bancárias de Saleiro e da empresa da mulher, a Polícia Judiciária aprofundou alguns dos aspectos das actividades do ex-autarca que foram objecto de tratamento jornalístico nas páginas do PÚBLICO. De fora ficaram, no entanto, assuntos como a Fundação de Amizade Portugal-Holanda e a Rádio Voz de Almodôvar. Por investigar ficou igualmente um enigmático fax em que o empresário chinês que encabeçava um projecto imobiliário no concelho de Almodôvar - conhecido por Semblana Golfe e que nunca passou do papel - se referia a um cheque, sem mencionar o seu valor, e a uma carta enviados a Saleiro, juntamente com um outro cheque de cerca de 22 mil contos destinado ao pagamento de taxas municipais que não eram devidas naquele momento. No Verão de 1997, quando o PÚBLICO consultou a documentação relativa ao licenciamento do Semblana Golfe, a pista do cheque mandado pelos chineses ao empresário e então autarca ainda se encontrava no processo arquivado na câmara. Ao que tudo indica, quando a PJ investigou esse mesmo processo, meses depois, isso já não sucedia. Pelo menos é o que se pode deduzir do facto de a polícia ter feito inúmeras diligências referentes ao cheque dos 22 mil contos e não fazer uma única alusão ao outro. MP ignora proposta de busca No despacho que encerra a investigação da PJ, datado de Novembro do ano passado, um dos seus directores escreve que "existem indícios nos autos, pelo menos, de que o suspeito António Saleiro terá recebido vantagens económicas concomitantes com a 'simplificação' de procedimentos na aprovação de um empreendimento urbanístico da iniciativa do designado grupo empresarial 'Concourse Group'" - a "holding" dos chineses - e propõe que Saleiro seja constituído arguido. Rosário Teixeira acrescenta que "atenta a posição do senhor advogado [Roque Lino tinha invocado o sigilo profissional para não prestar declarações à polícia] e sendo de presumir que terá na sua posse documentação útil para os autos, seria de ponderar a possibilidade de realização de uma busca no seu escritório, pese embora se reconheça a acrescida demora que daí poderá resultar". O procurador da República junto do Tribunal Judicial de Beja, Luís Lança, a quem o processo foi remetido pouco depois, acompanhou a proposta de constituição do deputado como arguido, mas nada disse sobre o pedido de busca. Nos onze meses que se seguiram, até à emissão do despacho de arquivamento, em 20 de Outubro passado, o MP limitou-se a diligenciar no sentido do levantamento da imunidade parlamentar de Saleiro e a inquirir o arguido mais as cinco testemunhas sugeridas pelo seu advogado, João Nabais. Ouvido por Luís Lança no início de Maio, António Saleiro pronunciou-se sumariamente sobre aquilo que lhe foi perguntado e que se prende exclusivamente com as conclusões a que a PJ chegou em cinco dos casos investigados. As suas explicações resumem-se a três páginas dos autos e negam toda a prova apresentada pela Judiciária. Em causa estiveram as condições privilegiadas em que a Petrogal lhe atribuiu a concessão de quatro postos de abastecimento de combustíveis; o recebimento pelo arguido de 4300 contos a título de rendas de uma propriedade dos chineses; a cobrança a Joaquim Botelho de uma comissão de 2500 contos, relacionada com a venda de uma propriedade aos mesmos chineses; o pagamento por estes de uma viagem do arguido, mulher e filhos a Hong Kong e à China, no valor de 1400 contos, numa altura em que estava em apreciação o licenciamento do Semblana Golfe; e o recebimento pela Câmara de Almodôvar de um cheque de cerca de 22 mil contos relativos ao mesmo licenciamento. Quanto às cinco testemunhas indicadas pelo advogado, os seus depoimentos (ver outro texto) limitaram-se a contrariar os testemunhos e documentos reunidos pela PJ, sem que fosse efectuada qualquer diligência adicional para esclarecer onde é que estava a verdade. Perante as provas reunidas pela Judiciária, por um lado, e os depoimentos do arguido e das suas testemunhas, bem como um recente documento atribuído ao Concourse Group sobre o indiciado pagamento pelos chineses da viagem da família Saleiro ao Oriente, por outro, o Ministério Público concluiu, em dez linhas, que não existem "elementos de prova suficientes que conduzam à dedução de acusação do arguido por prática de ilícito criminal", razão pela qual determinou o arquivamento dos autos. Esta decisão foi tomada pelo mesmo procurador da República, Luís Lança, que recorreu para o Tribunal da Relação de Évora das decisões do Tribunal de Almodôvar que mandaram arquivar, por falta de provas, as queixas de António Saleiro contra vários jornalistas do PÚBLICO - entre os quais, o autor deste texto - , um jornalista do "Diário do Alentejo" e ainda Marcelo Rebelo de Sousa, na altura líder da oposição, por alegados crimes de difamação relacionados com todos estes casos. 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Os casos que o Ministério Público ignorou

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