BENTO DE JESUS CARAÇA

06-10-2001
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Bento de Jesus Caraça, cidadão e amante da Serra da Estrela Carlos Manuel Ribeiro da Silva Dobreira

I nvestigador e professor do ensino secundário “ A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade. E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem da fadiga da ladeira. Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. Tudo aquilo que for empreendido sem a resolução prévia, radical e séria, desse problema, não passará, ou duma tentativa ingénua, com vaga tinta filantrópica, destinada a perder-se na impotência, ou de uma mão-cheia de pó, atirada aos olhos dos incautos.” Bento de Jesus Caraça, A Cultura Integral do Indivíduo – problema central do nosso tempo, conferência realizada em 25 de Maio de 1933 (1) A iniciativa de realizar a investigação subjacente à crónica intitulada Professor Bento de Jesus Caraça, amante da Serra da Estrela, publicada no jornal Porta da Estrela teve origem num momento de identidade para um são romanense que vive em terras de Bracara Augusta. Trata-se da fotografia de Bento Caraça na Cabeça da Velha, em 1934, exposta no salão nobre da Escola Secundária de Sá de Miranda, onde fui professor no ano lectivo de 1998-99. Essa imagem magna despoletou o renovar de um trabalho iniciado há já alguns anos, mais precisamente em Agosto de 1989. Sempre procurei aprofundar a história da presença deste humanista na nossa região, mas a distância, os inúmeros afazeres e uma ausência de fontes históricas que só a persistência e o contacto directo com contemporâneos poderia clarificar, levaram a guardar o pouco que possuía sobre este tema. Contudo, um forte interesse e regozijo por indagar esta temática levou-me, desde Maio de 1999, a produzir farta investigação que, neste momento, já não se pode incluir em mera crónica da imprensa local. Para que este estudo fosse possível, alcançei o apoio e a colaboração de pessoas e entidades, e a quem reconheço o mérito e a humildade de me transmitirem o mundo idealista, humano e moderno do Professor Bento de Jesus Caraça. Especial referência para a Dra. Luísa Irene Dias Amado, Engª Guida Lami Dias da Silva, Engº António Reis, Engº João dos Santos Caraça e o Prof. Dr. João Manuel Caraça. Os artigos publicados suscitaram a congregação de vontades para a definição da tipologia de homenagem que se justificava, destacando-se o empenho do Professor Alexandre Martins, coordenador do pólo de Seia do Instituto Politécnico da Guarda, da Engª Guida Lami, do jornal Porta da Estrela e da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Lisboa e Delães). Assim, resultou esta homenagem, a 9 de Junho de 2000, que é simples e assume um carácter pedagógico e humanista, incidindo no contributo educacional do matemático, não esquecendo a virtude política, o afecto à nossa região e suas gentes e a incessante procura do saber. (1) A Cultura Integral do Indivíduo - problema central do nosso tempo, conferência promovida pela União Cultural “Mocidade Livre” e realizada em 25 de Maio de 1933, Ed, Mocidade Livre, Cadernos de Cultura Vanguardista, nº1, Lisboa, 1933. Bento de Jesus Caraça foi um homem marcante neste século pela sua inteligência, o seu trato e humanismo. Em constante perseguição pelo ideal da perfeição, notabilizou-se na vida académica, sendo, com 28 anos, um dos mais jovens professores catedráticos do século XX português. Distinguiu-se ainda como matemático, conferencista, professor cativante, escritor, articulista, director editorial, resistente antifascista e anti-salazarista e homem do povo. Deixou-nos cedo, com 47 anos de idade, vítima de doença cardíaca, irreversível na época. A Serra da Estrela, em particular a Vila de São Romão, constituiram para o Mestre como que as musas de inspiração e um dos seus retiros de descanso físico e psíquico, análise social e reflexão. Apaixonou-se pelas paisagens, gentes e suas condições de vida, recursos naturais e qualidade ambiental. Ao longo de mais de 20 anos, era frequente vê-lo em várias épocas do ano, inicialmente em Seia, depois sempre na Vila de São Romão onde se hospedava na Pensão Reis, ou na Pensão Estrela d`Alva, Senhora do Desterro, na contemplação da Cabeça da Velha, pelos caminhos do pastoreio, nas serranias, em povoações esquecidas como Sobral, Bodelhão, Erada entre outras, nas obras da Barragem da Lagoa Comprida, nas ribeiras - por exemplo de Casegas -, nas fragas e na sua amada Lapa dos Charcos. Acompanhavam-no amigos e intelectuais. Remy Freire, Pilar Ribeiro, Hugo Baptista Ribeiro, Guida Lami, António Reis (filho de D. Teresa Barata), Luís Dias Amado, entre outros. Para quê? Bento Caraça queria viver o fascínio dos largos horizontes, das grandes caminhadas, do contacto com o povo simples e transmitir essa percepção a quem com ele convivia na urbe. O Professor Sebastião e Silva recorda essa força humana que era Bento Caraça: “ A ele devo, por exemplo, o ter-me ajudado indirectamente, como pioneiro, a descobrir os encantos da Serra da Estrela e o prazer das rijas caminhadas, respirando o ar fino da montanha: partir da Senhora do Desterro (S. Romão), às três da manhã, por ali acima, em alegre companhia; visitar a Lapa dos Charcos e a Lagoa Escura; contemplar Loriga do alto de mil metros; trepar até ao cimo do Cântaro Magro e cantar vitória à beira do abismo; descer as Penhas da Saúde e chegar à Covilhã pelas 10 da noite… E recomeçar depois, em busca de novos horizontes!” (2) Porém, é conhecida a sua preferência pelo recolhimento, ao lado do seu íntimo confidente, o José Lau (1884-1956), guia da Serra, natural de São Romão, carismático e bondoso, com quem calcorreava quilómetros, acampava durante dias na Lapa dos Charcos, e pernoitava em passeios a que chama “excursão”. (3) O Lau lá estava ao seu lado. Que honra ter estado ao lado de um homem tão humano e lúcido! Nas décadas de 20 e 30 e nos primeiros anos da década de 40, Bento Caraça e contemporâneos comungam na Serra de ideais e paisagens deslumbrantes. Ficam registadas em fotografia a sua vivência em São Romão, no Sabugueiro, em Vouzela, em vários pontos da Serra (Penhas Douradas, Lagoas, Poço do Inferno, Cântaros, Penha do Gato). O Dr. Luís Ernâni Dias Amado obtem muitas fotografias, datadas de 1929 e 1934, que reune mais tarde, em álbum. A mais conhecida apresenta-nos Bento Caraça deitado na Cabeça da Velha, em 1934. Essa imagem já percorreu o país, pois está integrada na exposição itinerante Bento Caraça – o Homem e o Tempo, painel 15, O viajante Breve, e no livro Fragmentos de uma vida breve, editado pela Escola Profissional Bento de Jesus Caraça. O vasto registo fotográfico destas duas visitas encontra-se na posse de Luísa Irene Dias Amado, filha de Luís Ernâni Dias Amado, afilhada de Bento Caraça. Publicam-se algumas dessas fotografias no álbum anexo a este texto. Existem muitas outras fotografias obtidas por Bento Caraça, registos que ainda não foi possível ter acesso, e por Guida Lami, cujo espólio será apresentado em livro a publicar. É Luís Ernâni Dias Amado que numa carta sem data, escrita à maquina, revela de Bento Caraça o seu humanismo, o afecto pelo Lau e os primeiros indícios da doença que iria vitimar o matemático. Cito: “Foi em 1919, que adoeceu com reumatismo articular agudo, a doença que lhe deixou em herança o mal que mais tarde o vitimou. Lembro-me que nessa altura foi tratado pelo velho Professor Bello de Morais que por ele tinha grande ternura e admiração. (2) Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, No vigésimo aniversário da morte de Bento de Jesus Caraça, Ano XLVI, nº1472, Junho, 1968, p. 185; (3) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; Desta doença, cujos efeitos futuros ele não conhecia, ficou-lhe a ideia que os seus pulmões não eram fortes e então todos os anos ia passar um mês à Serra da Estrela, onde ia contactar com a natureza andando dias seguidos pelas alturas da Serra acompanhado pelo guia, o “LAU”. Este era um pobre homem, que passando miséria no Inverno, ganhava no Verão alguma coisa com os turistas que queriam fazer uma estadia na Serra. Mas, quando Bento Caraça lhe anunciava que chegaria em determinado dia, o LAU já não queria mais turistas, esperava por ele, dizendo: “Vem aí o meu paizinho!”. Era “paizinho” porque era ele o herdeiro da roupa de Bento Caraça e era este que o ajudava a manter-se durante o Inverno. Isto só o soube uma vez que fui com o meu querido amigo para S. Romão e fizemos uma volta de três dias pela Serra e me foi contado pelo próprio guia, não pelo benemérito. Era assim Bento Caraça, “a mão direita ignorava completamente o que dava a esquerda.” (4) Este humilde guia - celebrizado por conhecer todos os caminhos e atalhos que com segurança levavam aos mais recônditos locais -, foi testemunho da bondade e do amor ao próximo revelados por Bento Caraça. O Lau, orfão de pais em jovem idade, sentia, depois de muitos anos de vida, o carinho que não tivera e estimava-o. Mas este humanismo, a procura das reais condições de vida dos portugueses e o incentivo de Bento Caraça à melhoria dessas condições, através da exigência dos seus direitos sociais, passaram por muitas gentes beirãs. Seriam os trabalhadores que na altura erguiam, com a força dos seus braços, a Barragem da Lagoa Comprida, com a falta de maquinaria adequada, comparativamente aos nossos dias, que sentiram nas suas palavras a defesa dos interesses dos trabalhadores, por quem pugnava. Esta sensibilidade pelos direitos dos trabalhadores fica bem patente se atentarmos na descrição que nos deixou ao visitar as Minas da Panasqueira, em 16 de Agosto de 1933: "Perguntei ao José Machado se os mineiros tinham um sindicato, disse-me que não. Mais me disse que alguns já tinham tentado fazer isso mas que eram despedidos logo que a empreza sabia. Claro! Procurei demonstrar-lhe a vantagem que para todos viria da fundação dum sindicato explicando-lhe grosso modo o seu funcionamento e para que serviria, fundando uma cooperativa, associação de socorros mútuos, em caso de greve, etc. (...) Respondeu-me por fim: "eu é que para lá não vou, pois se eu preciso de ganhar a vida e eles despedem-me!" Pobre povo! Senti uma vontade enorme de me fazer mineiro e ir para as minas da Panasqueira. Mas há muito mais que fazer e não sei bem como." (5) E em Unhais da Serra, em 17 de Agosto de 1933: “Unhais é pobre, com a vida muito difícil para a gente do povo. Há uma fábrica de lanifícios que emprega um cento de homens e mulheres e que proporciona uma grande fortuna aos donos à custa dos salários de fome que pagam aos pobres proletários. Uma mulher ganha 2$50 e 3$00 por dia (secos) e são raras as que fazem 3$50 ou 4$00. Os homens ganham 6$00 o máximo 7$50 por dia. Trabalham dez horas por dia. O pessoal está em greve, pretendem o dia de 8 horas e aumento de salário mas os industriais opõem-se e a questão não está resolvida ainda. Falei há pouco com um tecelão, o Sr. Francisco, que numa conversa com outras pessoas defendia os donos da fábrica. Procurei demonstrar-lhe o mau procedimento dos industriais, que era um crime o que estavam fazendo, que não tinham consciência em se aproveitarem da miséria para pagar salários de fome aos empregados. Não se convenceu e argumentou dizendo que ninguém os obriga a estar lá e que se não quiserem sujeitar-se procurem outro trabalho. Perguntei-lhe que outro trabalho havia que eles (4) Arquivo da Dra. Luísa Irene Dias Amado: carta escrita à máquina por Luís Ernâni Dias Amado, sem data. (5) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; procurassem e averiguou-se que nada havia melhor que procurar com o que o homem ficou todo contente convencido da sua razão. Procurei provar-lhe que precisamente nisso residia o crime dos industriais mas não se convenceu. Pobre povo, que sorte será a tua, com víboras a morderem-te assim no teu próprio seio!…” (6) Seriam todos aqueles que tiveram o privilégio de com ele contactar as testemunhas do seu fino trato e do seu carinho pelos mais desfavorecidos, sentimentos que podem perfeitamente ser reconhecidos, através de uma passagem presente no “diário de excursão” feito em Agosto de 1933: “Muito para diante encontramos a Eirada (refere-se a Erada) , pequena povoação de aspecto pobre, onde bebi água dum jarro que uma mulherzinha me emprestou. Um pequeno encostado a uma parede deitava sangue pelo nariz sem que ninguém se importasse com ele. Procurei conseguir que ele fosse lavar o nariz à fonte mas não quis e as mulheres pareciam admiradas de me ver a ocupar-me do rapaz.” (7) E no depoimento de Manuel Rodrigues Barata, primo de Teresa Barata, proprietária da Pensão Reis, em São Romão: “Ele vinha na camioneta da Arganilense desde Coimbra. E eu ia esperá-lo. Eu tinha a mania de esperar as pessoas que procuravam a pensão e trazer as malitas na mão…Chegavam aqui (à pensão), recebia uns tostãozitos. Era com isso que me ia governando. (…) Em questão de humanidade foi a pessoa mais extraordinária que passou pela minha vida. (emocionado) Amigo dos pobres. Política…era só com os políticos. A rapaziada aqui, toda a gente o respeitava….” (8) Aqui fica um pequeno retrato de quem hoje homenageamos, tão reduzido quanto o tempo que me é reservado. Aos oradores seguintes caberá evocar outras facetas da sua vida, nomeadamente as ligadas à ciência da Matemática, de que foi insigne Professor. (6) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; (7) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; (8) Arquivo de Carlos Dobreira: registo magnético realizado em Dezembro de 1999.

Bento de Jesus Caraça, cidadão e amante da Serra da Estrela Carlos Manuel Ribeiro da Silva Dobreira

I nvestigador e professor do ensino secundário “ A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade. E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem da fadiga da ladeira. Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. Tudo aquilo que for empreendido sem a resolução prévia, radical e séria, desse problema, não passará, ou duma tentativa ingénua, com vaga tinta filantrópica, destinada a perder-se na impotência, ou de uma mão-cheia de pó, atirada aos olhos dos incautos.” Bento de Jesus Caraça, A Cultura Integral do Indivíduo – problema central do nosso tempo, conferência realizada em 25 de Maio de 1933 (1) A iniciativa de realizar a investigação subjacente à crónica intitulada Professor Bento de Jesus Caraça, amante da Serra da Estrela, publicada no jornal Porta da Estrela teve origem num momento de identidade para um são romanense que vive em terras de Bracara Augusta. Trata-se da fotografia de Bento Caraça na Cabeça da Velha, em 1934, exposta no salão nobre da Escola Secundária de Sá de Miranda, onde fui professor no ano lectivo de 1998-99. Essa imagem magna despoletou o renovar de um trabalho iniciado há já alguns anos, mais precisamente em Agosto de 1989. Sempre procurei aprofundar a história da presença deste humanista na nossa região, mas a distância, os inúmeros afazeres e uma ausência de fontes históricas que só a persistência e o contacto directo com contemporâneos poderia clarificar, levaram a guardar o pouco que possuía sobre este tema. Contudo, um forte interesse e regozijo por indagar esta temática levou-me, desde Maio de 1999, a produzir farta investigação que, neste momento, já não se pode incluir em mera crónica da imprensa local. Para que este estudo fosse possível, alcançei o apoio e a colaboração de pessoas e entidades, e a quem reconheço o mérito e a humildade de me transmitirem o mundo idealista, humano e moderno do Professor Bento de Jesus Caraça. Especial referência para a Dra. Luísa Irene Dias Amado, Engª Guida Lami Dias da Silva, Engº António Reis, Engº João dos Santos Caraça e o Prof. Dr. João Manuel Caraça. Os artigos publicados suscitaram a congregação de vontades para a definição da tipologia de homenagem que se justificava, destacando-se o empenho do Professor Alexandre Martins, coordenador do pólo de Seia do Instituto Politécnico da Guarda, da Engª Guida Lami, do jornal Porta da Estrela e da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Lisboa e Delães). Assim, resultou esta homenagem, a 9 de Junho de 2000, que é simples e assume um carácter pedagógico e humanista, incidindo no contributo educacional do matemático, não esquecendo a virtude política, o afecto à nossa região e suas gentes e a incessante procura do saber. (1) A Cultura Integral do Indivíduo - problema central do nosso tempo, conferência promovida pela União Cultural “Mocidade Livre” e realizada em 25 de Maio de 1933, Ed, Mocidade Livre, Cadernos de Cultura Vanguardista, nº1, Lisboa, 1933. Bento de Jesus Caraça foi um homem marcante neste século pela sua inteligência, o seu trato e humanismo. Em constante perseguição pelo ideal da perfeição, notabilizou-se na vida académica, sendo, com 28 anos, um dos mais jovens professores catedráticos do século XX português. Distinguiu-se ainda como matemático, conferencista, professor cativante, escritor, articulista, director editorial, resistente antifascista e anti-salazarista e homem do povo. Deixou-nos cedo, com 47 anos de idade, vítima de doença cardíaca, irreversível na época. A Serra da Estrela, em particular a Vila de São Romão, constituiram para o Mestre como que as musas de inspiração e um dos seus retiros de descanso físico e psíquico, análise social e reflexão. Apaixonou-se pelas paisagens, gentes e suas condições de vida, recursos naturais e qualidade ambiental. Ao longo de mais de 20 anos, era frequente vê-lo em várias épocas do ano, inicialmente em Seia, depois sempre na Vila de São Romão onde se hospedava na Pensão Reis, ou na Pensão Estrela d`Alva, Senhora do Desterro, na contemplação da Cabeça da Velha, pelos caminhos do pastoreio, nas serranias, em povoações esquecidas como Sobral, Bodelhão, Erada entre outras, nas obras da Barragem da Lagoa Comprida, nas ribeiras - por exemplo de Casegas -, nas fragas e na sua amada Lapa dos Charcos. Acompanhavam-no amigos e intelectuais. Remy Freire, Pilar Ribeiro, Hugo Baptista Ribeiro, Guida Lami, António Reis (filho de D. Teresa Barata), Luís Dias Amado, entre outros. Para quê? Bento Caraça queria viver o fascínio dos largos horizontes, das grandes caminhadas, do contacto com o povo simples e transmitir essa percepção a quem com ele convivia na urbe. O Professor Sebastião e Silva recorda essa força humana que era Bento Caraça: “ A ele devo, por exemplo, o ter-me ajudado indirectamente, como pioneiro, a descobrir os encantos da Serra da Estrela e o prazer das rijas caminhadas, respirando o ar fino da montanha: partir da Senhora do Desterro (S. Romão), às três da manhã, por ali acima, em alegre companhia; visitar a Lapa dos Charcos e a Lagoa Escura; contemplar Loriga do alto de mil metros; trepar até ao cimo do Cântaro Magro e cantar vitória à beira do abismo; descer as Penhas da Saúde e chegar à Covilhã pelas 10 da noite… E recomeçar depois, em busca de novos horizontes!” (2) Porém, é conhecida a sua preferência pelo recolhimento, ao lado do seu íntimo confidente, o José Lau (1884-1956), guia da Serra, natural de São Romão, carismático e bondoso, com quem calcorreava quilómetros, acampava durante dias na Lapa dos Charcos, e pernoitava em passeios a que chama “excursão”. (3) O Lau lá estava ao seu lado. Que honra ter estado ao lado de um homem tão humano e lúcido! Nas décadas de 20 e 30 e nos primeiros anos da década de 40, Bento Caraça e contemporâneos comungam na Serra de ideais e paisagens deslumbrantes. Ficam registadas em fotografia a sua vivência em São Romão, no Sabugueiro, em Vouzela, em vários pontos da Serra (Penhas Douradas, Lagoas, Poço do Inferno, Cântaros, Penha do Gato). O Dr. Luís Ernâni Dias Amado obtem muitas fotografias, datadas de 1929 e 1934, que reune mais tarde, em álbum. A mais conhecida apresenta-nos Bento Caraça deitado na Cabeça da Velha, em 1934. Essa imagem já percorreu o país, pois está integrada na exposição itinerante Bento Caraça – o Homem e o Tempo, painel 15, O viajante Breve, e no livro Fragmentos de uma vida breve, editado pela Escola Profissional Bento de Jesus Caraça. O vasto registo fotográfico destas duas visitas encontra-se na posse de Luísa Irene Dias Amado, filha de Luís Ernâni Dias Amado, afilhada de Bento Caraça. Publicam-se algumas dessas fotografias no álbum anexo a este texto. Existem muitas outras fotografias obtidas por Bento Caraça, registos que ainda não foi possível ter acesso, e por Guida Lami, cujo espólio será apresentado em livro a publicar. É Luís Ernâni Dias Amado que numa carta sem data, escrita à maquina, revela de Bento Caraça o seu humanismo, o afecto pelo Lau e os primeiros indícios da doença que iria vitimar o matemático. Cito: “Foi em 1919, que adoeceu com reumatismo articular agudo, a doença que lhe deixou em herança o mal que mais tarde o vitimou. Lembro-me que nessa altura foi tratado pelo velho Professor Bello de Morais que por ele tinha grande ternura e admiração. (2) Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, No vigésimo aniversário da morte de Bento de Jesus Caraça, Ano XLVI, nº1472, Junho, 1968, p. 185; (3) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; Desta doença, cujos efeitos futuros ele não conhecia, ficou-lhe a ideia que os seus pulmões não eram fortes e então todos os anos ia passar um mês à Serra da Estrela, onde ia contactar com a natureza andando dias seguidos pelas alturas da Serra acompanhado pelo guia, o “LAU”. Este era um pobre homem, que passando miséria no Inverno, ganhava no Verão alguma coisa com os turistas que queriam fazer uma estadia na Serra. Mas, quando Bento Caraça lhe anunciava que chegaria em determinado dia, o LAU já não queria mais turistas, esperava por ele, dizendo: “Vem aí o meu paizinho!”. Era “paizinho” porque era ele o herdeiro da roupa de Bento Caraça e era este que o ajudava a manter-se durante o Inverno. Isto só o soube uma vez que fui com o meu querido amigo para S. Romão e fizemos uma volta de três dias pela Serra e me foi contado pelo próprio guia, não pelo benemérito. Era assim Bento Caraça, “a mão direita ignorava completamente o que dava a esquerda.” (4) Este humilde guia - celebrizado por conhecer todos os caminhos e atalhos que com segurança levavam aos mais recônditos locais -, foi testemunho da bondade e do amor ao próximo revelados por Bento Caraça. O Lau, orfão de pais em jovem idade, sentia, depois de muitos anos de vida, o carinho que não tivera e estimava-o. Mas este humanismo, a procura das reais condições de vida dos portugueses e o incentivo de Bento Caraça à melhoria dessas condições, através da exigência dos seus direitos sociais, passaram por muitas gentes beirãs. Seriam os trabalhadores que na altura erguiam, com a força dos seus braços, a Barragem da Lagoa Comprida, com a falta de maquinaria adequada, comparativamente aos nossos dias, que sentiram nas suas palavras a defesa dos interesses dos trabalhadores, por quem pugnava. Esta sensibilidade pelos direitos dos trabalhadores fica bem patente se atentarmos na descrição que nos deixou ao visitar as Minas da Panasqueira, em 16 de Agosto de 1933: "Perguntei ao José Machado se os mineiros tinham um sindicato, disse-me que não. Mais me disse que alguns já tinham tentado fazer isso mas que eram despedidos logo que a empreza sabia. Claro! Procurei demonstrar-lhe a vantagem que para todos viria da fundação dum sindicato explicando-lhe grosso modo o seu funcionamento e para que serviria, fundando uma cooperativa, associação de socorros mútuos, em caso de greve, etc. (...) Respondeu-me por fim: "eu é que para lá não vou, pois se eu preciso de ganhar a vida e eles despedem-me!" Pobre povo! Senti uma vontade enorme de me fazer mineiro e ir para as minas da Panasqueira. Mas há muito mais que fazer e não sei bem como." (5) E em Unhais da Serra, em 17 de Agosto de 1933: “Unhais é pobre, com a vida muito difícil para a gente do povo. Há uma fábrica de lanifícios que emprega um cento de homens e mulheres e que proporciona uma grande fortuna aos donos à custa dos salários de fome que pagam aos pobres proletários. Uma mulher ganha 2$50 e 3$00 por dia (secos) e são raras as que fazem 3$50 ou 4$00. Os homens ganham 6$00 o máximo 7$50 por dia. Trabalham dez horas por dia. O pessoal está em greve, pretendem o dia de 8 horas e aumento de salário mas os industriais opõem-se e a questão não está resolvida ainda. Falei há pouco com um tecelão, o Sr. Francisco, que numa conversa com outras pessoas defendia os donos da fábrica. Procurei demonstrar-lhe o mau procedimento dos industriais, que era um crime o que estavam fazendo, que não tinham consciência em se aproveitarem da miséria para pagar salários de fome aos empregados. Não se convenceu e argumentou dizendo que ninguém os obriga a estar lá e que se não quiserem sujeitar-se procurem outro trabalho. Perguntei-lhe que outro trabalho havia que eles (4) Arquivo da Dra. Luísa Irene Dias Amado: carta escrita à máquina por Luís Ernâni Dias Amado, sem data. (5) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; procurassem e averiguou-se que nada havia melhor que procurar com o que o homem ficou todo contente convencido da sua razão. Procurei provar-lhe que precisamente nisso residia o crime dos industriais mas não se convenceu. Pobre povo, que sorte será a tua, com víboras a morderem-te assim no teu próprio seio!…” (6) Seriam todos aqueles que tiveram o privilégio de com ele contactar as testemunhas do seu fino trato e do seu carinho pelos mais desfavorecidos, sentimentos que podem perfeitamente ser reconhecidos, através de uma passagem presente no “diário de excursão” feito em Agosto de 1933: “Muito para diante encontramos a Eirada (refere-se a Erada) , pequena povoação de aspecto pobre, onde bebi água dum jarro que uma mulherzinha me emprestou. Um pequeno encostado a uma parede deitava sangue pelo nariz sem que ninguém se importasse com ele. Procurei conseguir que ele fosse lavar o nariz à fonte mas não quis e as mulheres pareciam admiradas de me ver a ocupar-me do rapaz.” (7) E no depoimento de Manuel Rodrigues Barata, primo de Teresa Barata, proprietária da Pensão Reis, em São Romão: “Ele vinha na camioneta da Arganilense desde Coimbra. E eu ia esperá-lo. Eu tinha a mania de esperar as pessoas que procuravam a pensão e trazer as malitas na mão…Chegavam aqui (à pensão), recebia uns tostãozitos. Era com isso que me ia governando. (…) Em questão de humanidade foi a pessoa mais extraordinária que passou pela minha vida. (emocionado) Amigo dos pobres. Política…era só com os políticos. A rapaziada aqui, toda a gente o respeitava….” (8) Aqui fica um pequeno retrato de quem hoje homenageamos, tão reduzido quanto o tempo que me é reservado. Aos oradores seguintes caberá evocar outras facetas da sua vida, nomeadamente as ligadas à ciência da Matemática, de que foi insigne Professor. (6) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; (7) Fundação Mário Soares – Arquivo Mário Soares, Espólio de Bento de Jesus Caraça, Documentos Pessoais, 4399.030 Notas de Viagem – Serra da Estrela, 1933; (8) Arquivo de Carlos Dobreira: registo magnético realizado em Dezembro de 1999.

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