O tempo presente do futuro

13-02-2002
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O Tempo Presente do Futuro

Por CLARA ROWLAND

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

"Uma Casa no Fim do Mundo" é um romance excessivo. É da lenta construção de uma casa que se fala, daqueles que a assumem e daqueles que a abandonam. São muitas as histórias, demasiadas talvez, muitas as direcções que tenta seguir ao mesmo tempo, deixando que algumas se percam, sacrificando a força de outras.

Quando, em 1999, Michael Cunningham venceu o prémio Pulitzer com "As Horas", nada de seu tinha sido publicado em Portugal. A Gradiva apressou-se a editar o romance e desde então fez-lhe seguir, em ordem temporal inversa, as obras anteriores do autor. Depois da tradução de Fernanda Pinto Rodrigues de "As Horas", em 2000 foi a vez de "Flesh and Blood" ("Sangue do meu Sangue"), de 1995, e recentemente deste "A Home at the End of the World" ("Uma Casa no Fim do Mundo"), escrito entre 1984 e 1990, ambos com tradução de Rui Pires Cabral. É interessante, para a leitura de Michael Cunningham, seguir esta cronologia invertida. Em primeiro lugar, porque a estrutura de "As Horas" apresenta um considerável esforço de construção e de concisão, fazendo-nos procurar, nas obras anteriores, o percurso feito para que se chegasse a semelhante condensação de elementos soltos e dispersos; por outro lado, o facto de "As Horas" ser um romance construído sobre a obra de Virginia Woolf e de, enquanto tal, conseguir alcançar uma coerência surpreendente, uma harmonia entre o ponto de partida e a representação de histórias aparentemente distantes, afastadas no tempo e no ambiente, leva-nos a interrogar os livros anteriores em busca daquilo que o torna possível. O que faz com que livros tão diferentes, tão ligados a um contexto americano, a uma dada realidade, possam encontrar no universo de Virginia Woolf um ponto de união, uma linha de força? E são vários os temas, as situações, as obsessões recorrentes de livro para livro, que ali - com Virginia Woolf - encaixaram perfeitamente.

Tal como "Sangue do meu Sangue", também este "Uma Casa no Fim do Mundo" é um romance excessivo. São muitas as histórias, demasiadas talvez, muitas as direcções que tenta seguir ao mesmo tempo, deixando que algumas se percam, sacrificando a força de outras. Mas os temas que o estruturam estão presentes em todas as suas partes, como se pode ver também na epígrafe, "O Poema que Tomou o Lugar de uma Montanha", de Wallace Stevens. "A exacta rocha onde as suas inexactidões / Descobririam, por fim, a vista para a qual tinham avançado. // Onde poderia deitar-se, fitando o mar lá em baixo, / E reconhecer a sua única e solitária casa.": no limiar do romance, este poema faz sentido (assim como a epígrafe de "Sangue do meu Sangue", retirada de "The Making of Americans", de Gertrud Stein, se insere inteiramente no conflito de gerações que será encenado) e antecipa a própria estrutura do texto. Uma tentativa de seguir as escolhas, os erros, os desvios, as fugas e o regresso de quatro personagens, tendo em vista a possibilidade de fundação de um lar, de uma outra forma de família que preencha o vazio que herdaram, que responda a uma fidelidade a um mundo morto. E será da lenta construção de uma casa que se falará, daqueles que a assumem e daqueles que a abandonam.

Como "As Horas", este romance organiza-se em capítulos identificados pelo nome da personagem que os ocupa, e que neles, directa ou indirectamente, fala. Bobby, Jonathan, Alice e Clare vão sendo acompanhados no tempo. O facto de se seguir um arco cronológico muito amplo, capítulo a capítulo, apenas com a variação da voz narrativa, está mais próximo do romance seguinte, estruturado em datas. Da infância de Bobby e de Jonathan à construção da casa em Woodstock e ao nascimento da criança, resultado do triângulo amoroso construído por uma mulher e dois homens, há casas, há também aqui mães que fazem bolos. Há a desintegração da família e a destruição do passado a ser substituída por uma outra forma de solidariedade, de proximidade. E ao nascimento de algo corresponde a vivência da morte, na ameaça e na destruição que a sida constitui.

Quatro personagens: uma mãe, que como tal (e na sua relação excessivamente possessiva com o filho) se define e vive num tempo de desejo não realizado; o filho, homossexual, que vive em Nova Iorque numa fuga permanente; Clare, a sua companheira, ligada a ele por uma relação amorosa que não envolve sexo; e finalmente Bobby, o neutro. É aquele que ama e é amado sem exigir, que se adapta à vontade dos outros, que não é ofuscado pelo desejo, que parece não perceber mas sobre quem assenta a construção da casa, do futuro. Trata-se da criação de uma comunidade problemática, em que os sonhos de cada um poderão gerar mais ruínas, mas em que a vida poderá (num futuro que o presente do texto deixa de fora, remete para longe) realmente ser outra.

Quatro personagens, e a criação de um neutro: a suspensão que o romance cria em torno da figura de Bobby é a de um texto que corre para um ponto de fuga que não o quer concluir. Mesmo no seu excesso, em tudo o que no romance está a mais, a estrutura que não deixa voltar atrás, pensar para trás, reforça a ideia da casa por habitar, da construção. Lê-se então uma coincidência de uma vontade formal - a resposta à epígrafe - e a construção de um presente que ainda não será: "(...) estamos aqui para preservar um presente, para que as pessoas possam regressar quando lhes faltar um futuro. Foi tão longa a caminhada que nos trouxe a esta casa" (p. 356).

O Tempo Presente do Futuro

Por CLARA ROWLAND

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

"Uma Casa no Fim do Mundo" é um romance excessivo. É da lenta construção de uma casa que se fala, daqueles que a assumem e daqueles que a abandonam. São muitas as histórias, demasiadas talvez, muitas as direcções que tenta seguir ao mesmo tempo, deixando que algumas se percam, sacrificando a força de outras.

Quando, em 1999, Michael Cunningham venceu o prémio Pulitzer com "As Horas", nada de seu tinha sido publicado em Portugal. A Gradiva apressou-se a editar o romance e desde então fez-lhe seguir, em ordem temporal inversa, as obras anteriores do autor. Depois da tradução de Fernanda Pinto Rodrigues de "As Horas", em 2000 foi a vez de "Flesh and Blood" ("Sangue do meu Sangue"), de 1995, e recentemente deste "A Home at the End of the World" ("Uma Casa no Fim do Mundo"), escrito entre 1984 e 1990, ambos com tradução de Rui Pires Cabral. É interessante, para a leitura de Michael Cunningham, seguir esta cronologia invertida. Em primeiro lugar, porque a estrutura de "As Horas" apresenta um considerável esforço de construção e de concisão, fazendo-nos procurar, nas obras anteriores, o percurso feito para que se chegasse a semelhante condensação de elementos soltos e dispersos; por outro lado, o facto de "As Horas" ser um romance construído sobre a obra de Virginia Woolf e de, enquanto tal, conseguir alcançar uma coerência surpreendente, uma harmonia entre o ponto de partida e a representação de histórias aparentemente distantes, afastadas no tempo e no ambiente, leva-nos a interrogar os livros anteriores em busca daquilo que o torna possível. O que faz com que livros tão diferentes, tão ligados a um contexto americano, a uma dada realidade, possam encontrar no universo de Virginia Woolf um ponto de união, uma linha de força? E são vários os temas, as situações, as obsessões recorrentes de livro para livro, que ali - com Virginia Woolf - encaixaram perfeitamente.

Tal como "Sangue do meu Sangue", também este "Uma Casa no Fim do Mundo" é um romance excessivo. São muitas as histórias, demasiadas talvez, muitas as direcções que tenta seguir ao mesmo tempo, deixando que algumas se percam, sacrificando a força de outras. Mas os temas que o estruturam estão presentes em todas as suas partes, como se pode ver também na epígrafe, "O Poema que Tomou o Lugar de uma Montanha", de Wallace Stevens. "A exacta rocha onde as suas inexactidões / Descobririam, por fim, a vista para a qual tinham avançado. // Onde poderia deitar-se, fitando o mar lá em baixo, / E reconhecer a sua única e solitária casa.": no limiar do romance, este poema faz sentido (assim como a epígrafe de "Sangue do meu Sangue", retirada de "The Making of Americans", de Gertrud Stein, se insere inteiramente no conflito de gerações que será encenado) e antecipa a própria estrutura do texto. Uma tentativa de seguir as escolhas, os erros, os desvios, as fugas e o regresso de quatro personagens, tendo em vista a possibilidade de fundação de um lar, de uma outra forma de família que preencha o vazio que herdaram, que responda a uma fidelidade a um mundo morto. E será da lenta construção de uma casa que se falará, daqueles que a assumem e daqueles que a abandonam.

Como "As Horas", este romance organiza-se em capítulos identificados pelo nome da personagem que os ocupa, e que neles, directa ou indirectamente, fala. Bobby, Jonathan, Alice e Clare vão sendo acompanhados no tempo. O facto de se seguir um arco cronológico muito amplo, capítulo a capítulo, apenas com a variação da voz narrativa, está mais próximo do romance seguinte, estruturado em datas. Da infância de Bobby e de Jonathan à construção da casa em Woodstock e ao nascimento da criança, resultado do triângulo amoroso construído por uma mulher e dois homens, há casas, há também aqui mães que fazem bolos. Há a desintegração da família e a destruição do passado a ser substituída por uma outra forma de solidariedade, de proximidade. E ao nascimento de algo corresponde a vivência da morte, na ameaça e na destruição que a sida constitui.

Quatro personagens: uma mãe, que como tal (e na sua relação excessivamente possessiva com o filho) se define e vive num tempo de desejo não realizado; o filho, homossexual, que vive em Nova Iorque numa fuga permanente; Clare, a sua companheira, ligada a ele por uma relação amorosa que não envolve sexo; e finalmente Bobby, o neutro. É aquele que ama e é amado sem exigir, que se adapta à vontade dos outros, que não é ofuscado pelo desejo, que parece não perceber mas sobre quem assenta a construção da casa, do futuro. Trata-se da criação de uma comunidade problemática, em que os sonhos de cada um poderão gerar mais ruínas, mas em que a vida poderá (num futuro que o presente do texto deixa de fora, remete para longe) realmente ser outra.

Quatro personagens, e a criação de um neutro: a suspensão que o romance cria em torno da figura de Bobby é a de um texto que corre para um ponto de fuga que não o quer concluir. Mesmo no seu excesso, em tudo o que no romance está a mais, a estrutura que não deixa voltar atrás, pensar para trás, reforça a ideia da casa por habitar, da construção. Lê-se então uma coincidência de uma vontade formal - a resposta à epígrafe - e a construção de um presente que ainda não será: "(...) estamos aqui para preservar um presente, para que as pessoas possam regressar quando lhes faltar um futuro. Foi tão longa a caminhada que nos trouxe a esta casa" (p. 356).

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