Recordação dos mais puros e indefesos portugueses que foram à guerra

12-02-2002
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Recordação dos Mais Puros e Indefesos Portugueses Que Foram à Guerra

Por EDUARDO DÂMASO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

"Aqueles somos nós, os mais indefesos e os mais puros dos portugueses, aqui mais uma vez trazidos dos campos e da pobreza para embarcarem numa aventura em que se transcenderam."

Carlos Matos Gomes, no livro "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola"

Depois de um silêncio pesado que atravessou os primeiros anos do pós-guerra, acentuou-se na última década e meia uma ânsia quase torrencial de enfrentar o passado. Nos últimos meses saíram um punhado de obras de que o ensaio "A Guerra e a Literatura", de Rui de Azevedo Teixeira, o romance "As Lágrimas de Aquiles", de José Manuel Saraiva, o álbum fotográfico "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola", de Fernando Farinha e Carlos Matos Gomes, "Guerra Colonial", de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (livro que condensa os fascículos editados em coleccionável pelo "Diário de Notícias"), são a mais importante expressão. São também um conjunto riquíssimo de experiências e olhares sobre a guerra de um professor universitário com passagem pelas armas, de um guerreiro e escritor que se associa a um fotógrafo e a um académico militar e, por fim, de um jornalista que regressa ao passado e a um confronto com a morte e a consciência.

A guerra colonial é ainda um mundo sem saída para milhares de portugueses que nela combateram. Quarenta anos depois de ter começado e ainda a alguma distância de se comemorar os 30 anos do seu fim, ela continua a representar o universo indecifrável de um trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de 13 intermináveis anos. Ela foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou 800 mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida, a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de oito mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de "stress" de guerra. Mas se a guerra pode reduzir-se a números, como escreve João Paulo Guerra no seu livro "Memória das Guerras Coloniais", Edições Afrontamento, "não há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor". É essa memória que nos traz o álbum fotográfico "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola", nos textos de Carlos Matos Gomes e nas fotografias de Fernando Farinha.

Poucos meses depois de ter começado, em Março de 1961, ela significava já o território mítico de heroísmos individuais nunca sonhados ou de medos aniquiladores. Esta nova guerra africana devolvia ao Portugal de então o desafio de sair do rectângulo europeu de armas em punho na defesa das parcelas sagradas do velho império. Anos mais tarde, porém, ela passou a ser sobretudo o sorvedouro de recursos materiais e da juventude de um país que se via naufragar na inutilidade de um conflito que ia contra toda a lógica dos tempos.

Em Abril de 1974, a guerra deu aos homens de que se alimentava a maior alegria das respectivas vidas: o fim do pesadelo das emboscadas, das minas, dos bombardeamentos, dos crimes de guerra que levavam mulheres e crianças pela frente na fúria cega da morte, o fim do confronto com o inimigo omnipresente em cada mata, em cada savana, em cada esquina, em casa casa colonial.

Por esses primeiros tempos da libertação Portugal permaneceu quase em silêncio. Quis saborear cada segundo novo, livre da incerteza de cada minuto. Só muito devagar a literatura, na ficção, testemunho, documento, ensaio, foi sorvendo em pequenos tragos uma tão rica e dilacerante realidade. Só muito timidamente as feridas do pós-guerra eram aceites na nova sociedade civil e mesmo militar. Estava tudo muito a quente para a libertação freudiana do testemunho, dos medos recalcados, da embriaguez da adrenalina que não se voltava a ter. Agora, quando muitos dos protagonistas já morreram, mas a esmagadora maioria já há muito dobrou a fasquia dos 50 anos, tudo tem vindo a ser diferente. Muitos deles, de forma mais individual e anárquica, no refúgio de uma escrita simples e de uma modesta edição de autor, outros mais organizados, conhecedores profundos da guerra e da política, escritores ou talentosos investigadores, estão empenhados em deixar-nos um testemunho sereno, objectivo e factual. É esse o caso já consagrado de Carlos Matos Gomes ou no pseudónimo Carlos Vale Ferraz que nos dedica uma obra de referência imprescindível no campo da ficção ("Nó Cego"; "Os Lobos não Usam Coleira"; "ASP" e "Soldadó"), mas se transformou também no incontornável cronista e divulgador dessa quase década e meia tão decisiva para Portugal.

A guerra do Ultramar e a enorme perplexidade que ela ainda representa para gerações inteiras está tão simplesmente na extraordinária constatação que Carlos de Matos Gomes faz ao olhar para as fotografias dessa essência visceral de repórter que foi o jornalista Fernando Farinha e publicadas no álbum "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola": "Aqueles somos nós, os mais indefesos e os mais puros dos portugueses, aqui mais uma vez trazidos dos campos e da pobreza para embarcarem numa aventura em que se transcenderam."

Na verdade, longe da consciencialização política, a anos-luz do activismo clandestino contra a guerra e o regime de Oliveira Salazar, a guerra foi para milhares de jovens portugueses uma primeira ânsia de acção, de iniciação na idade adulta, que superava todas as fitas de "western-spaghetti" ou os épicos retratos das batalhas míticas da Segunda Guerra Mundial que estavam habituados a ver nos velhos cinemas de província. Ali estariam eles na caça ao "turra" e não meramente no sonho que o "technicolor" prometia. Nesse início longínquo da guerra em Angola, depois dos massacres da UPA em Março de 1961, milhares de jovens portugueses embarcaram de peito feito às marés atlânticas, acreditando que iam libertar Portugal de uma nova invasão, já não moura mas genuinamente africana.

Só mais tarde, depois dos primeiros desaires, depois do endurecer do conflito nos seus teatros mais implacáveis - Guiné e Moçambique - , depois de as imagens épicas de uma nova partida para mundos desconhecidos em novas caravelas de aço serem substituídas por um regresso do soldadinho no seu caixão de pinho sussurrado na clandestinidade da dor é que começa progressivamente a emergir a mais incontrolável das perplexidades, gerada pela raiva e pela indignação: "O que está a acontecer? Porque me está a acontecer a mim?"

Essas interrogações atravessam a escrita de Matos Gomes e a sensibilidade de Fernando Farinha através da máquina fotográfica, transformando-os nos cronistas de um tempo que ainda hoje nos desafia a compreensão, mas também num elo decisivo para as gerações que não viveram a guerra mas que a anteviam no horizonte a caminhar em direcção às suas vidas. Essas fotografias e essa escrita fazem, afinal, parte do conjunto de instrumentos necessários ao seu estudo e à construção da memória possível para quem possui o distanciamento da idade mas igualmente a vantagem da ausência em tais trincheiras.

Fernando Farinha, desde logo, foi um repórter desses que hoje são muito raros. Iniciou-se no jornalismo em 1941, no jornal "O Comércio de Luanda", e não é apenas mais um dos muitos protagonistas desses tempos que regressou com um excelente álbum de recordações fotográficas. Foi um viajante de África, percorreu as frentes de guerra de lés a lés, palmilhou matos e desertos, saltou de pára-quedas, escapou a desastres de helicóptero e a mordidelas de cobras venenosas, fotografou e escreveu a glória da sobrevivência, o silêncio da morte, a fúria e a raiva da perda, captou os rostos de uma juventude improvável nos soldados que acompanhava até às linhas de combate, foi o cronista dos acontecimentos marcantes do conflito.

Quando o tenente-coronel Maçanita reconquistou Nambuangongo, ele foi o primeiro repórter a dizer "presente". Quando o 25 de Abril de 1974 irrompeu e abriu novas claridades, Fernando Farinha foi de novo o primeiro jornalista português a percorrer as matas do Leste de Angola.

O repórter fotográfico colocou-se instintivamente do lado dos "homens valorosos" que viu, os soldados com quem partilhou medos e bravatas, ainda que o homem de escrita que também foi escrevesse palavras "ideologicamente datadas", como nota Matos Gomes. Por elas perpassa a glorificação das Forças Armadas Portuguesas e do regime colonial, mas sobretudo dos heróis anónimos do pelotão que rastejavam pelo capim, que cavalgavam a savana num regresso ainda hoje inverosímil ao ambiente medieval das cargas de cavalaria ou voavam a plenitude dos céus africanos nos helicópteros que encurtavam as distâncias entre a serenidade da vida de Luanda e a hostilidade adivinhada debaixo das copas da floresta densa que cobria o chão do Leste de Angola, essa imensidão das "terras do fim do mundo", os "cus de Judas", de António Lobo Antunes.

Aceitando e porventura aderindo de convicção aos condicionalismos da época - censura, tomar partido pela pátria -, Farinha foi sobretudo uma testemunha vital desse período da história portuguesa. "Na melhor tradição dos repórteres de guerra, Fernando Farinha transmitiu os factos a quente. Correndo riscos, tomando partido, Hemingway foi isso que fez em Espanha e em Paris. Os repórteres da celebrada CNN é isso que fazem todos os dias", acentua Carlos Matos Gomes. E fê-lo com essa estranha mistura portuguesa de imprevidência e coragem, de desenrascanço e engenho. É pelas suas reportagens que percebemos - e que os portugueses desses anos de chumbo perceberam - que a guerra existe para lá da festividade das paradas e dos uniformes impecavelmente alinhados.

A universalidade das fotografias e dos textos de Farinha está na massa humana que retratam e no testemunho que deixam. Ao olhar para elas não é evidente que se encontre exclusivamente uma intenção propagandística. Mais do que isso, elas comportam o fascinante jogo do destino daquelas gerações e exprimem a dimensão histórica da encruzilhada portuguesa vivida nas frentes de combate, na dúvida, primeiro, e no forte cepticismo, depois, sobre o rumo da guerra e da nação.

"Sendo textos e imagens de fé, de quem acreditava e queria fazer os outros acreditar, as reportagens poderiam ter sido condenadas ao esquecimento a que são votados os vencidos, sejam homens, sejam ideias, se não contivessem o aspecto fascinante que as dota de universalidade e as faz resistir ao tempo, de modo a transmitirem a perplexidade do ser humano que se pode resumir nas frases: o que está a acontecer? Porque me está a acontecer a mim?"

Recordação dos Mais Puros e Indefesos Portugueses Que Foram à Guerra

Por EDUARDO DÂMASO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

"Aqueles somos nós, os mais indefesos e os mais puros dos portugueses, aqui mais uma vez trazidos dos campos e da pobreza para embarcarem numa aventura em que se transcenderam."

Carlos Matos Gomes, no livro "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola"

Depois de um silêncio pesado que atravessou os primeiros anos do pós-guerra, acentuou-se na última década e meia uma ânsia quase torrencial de enfrentar o passado. Nos últimos meses saíram um punhado de obras de que o ensaio "A Guerra e a Literatura", de Rui de Azevedo Teixeira, o romance "As Lágrimas de Aquiles", de José Manuel Saraiva, o álbum fotográfico "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola", de Fernando Farinha e Carlos Matos Gomes, "Guerra Colonial", de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (livro que condensa os fascículos editados em coleccionável pelo "Diário de Notícias"), são a mais importante expressão. São também um conjunto riquíssimo de experiências e olhares sobre a guerra de um professor universitário com passagem pelas armas, de um guerreiro e escritor que se associa a um fotógrafo e a um académico militar e, por fim, de um jornalista que regressa ao passado e a um confronto com a morte e a consciência.

A guerra colonial é ainda um mundo sem saída para milhares de portugueses que nela combateram. Quarenta anos depois de ter começado e ainda a alguma distância de se comemorar os 30 anos do seu fim, ela continua a representar o universo indecifrável de um trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de 13 intermináveis anos. Ela foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou 800 mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida, a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de oito mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de "stress" de guerra. Mas se a guerra pode reduzir-se a números, como escreve João Paulo Guerra no seu livro "Memória das Guerras Coloniais", Edições Afrontamento, "não há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor". É essa memória que nos traz o álbum fotográfico "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola", nos textos de Carlos Matos Gomes e nas fotografias de Fernando Farinha.

Poucos meses depois de ter começado, em Março de 1961, ela significava já o território mítico de heroísmos individuais nunca sonhados ou de medos aniquiladores. Esta nova guerra africana devolvia ao Portugal de então o desafio de sair do rectângulo europeu de armas em punho na defesa das parcelas sagradas do velho império. Anos mais tarde, porém, ela passou a ser sobretudo o sorvedouro de recursos materiais e da juventude de um país que se via naufragar na inutilidade de um conflito que ia contra toda a lógica dos tempos.

Em Abril de 1974, a guerra deu aos homens de que se alimentava a maior alegria das respectivas vidas: o fim do pesadelo das emboscadas, das minas, dos bombardeamentos, dos crimes de guerra que levavam mulheres e crianças pela frente na fúria cega da morte, o fim do confronto com o inimigo omnipresente em cada mata, em cada savana, em cada esquina, em casa casa colonial.

Por esses primeiros tempos da libertação Portugal permaneceu quase em silêncio. Quis saborear cada segundo novo, livre da incerteza de cada minuto. Só muito devagar a literatura, na ficção, testemunho, documento, ensaio, foi sorvendo em pequenos tragos uma tão rica e dilacerante realidade. Só muito timidamente as feridas do pós-guerra eram aceites na nova sociedade civil e mesmo militar. Estava tudo muito a quente para a libertação freudiana do testemunho, dos medos recalcados, da embriaguez da adrenalina que não se voltava a ter. Agora, quando muitos dos protagonistas já morreram, mas a esmagadora maioria já há muito dobrou a fasquia dos 50 anos, tudo tem vindo a ser diferente. Muitos deles, de forma mais individual e anárquica, no refúgio de uma escrita simples e de uma modesta edição de autor, outros mais organizados, conhecedores profundos da guerra e da política, escritores ou talentosos investigadores, estão empenhados em deixar-nos um testemunho sereno, objectivo e factual. É esse o caso já consagrado de Carlos Matos Gomes ou no pseudónimo Carlos Vale Ferraz que nos dedica uma obra de referência imprescindível no campo da ficção ("Nó Cego"; "Os Lobos não Usam Coleira"; "ASP" e "Soldadó"), mas se transformou também no incontornável cronista e divulgador dessa quase década e meia tão decisiva para Portugal.

A guerra do Ultramar e a enorme perplexidade que ela ainda representa para gerações inteiras está tão simplesmente na extraordinária constatação que Carlos de Matos Gomes faz ao olhar para as fotografias dessa essência visceral de repórter que foi o jornalista Fernando Farinha e publicadas no álbum "Guerra Colonial - Um Repórter em Angola": "Aqueles somos nós, os mais indefesos e os mais puros dos portugueses, aqui mais uma vez trazidos dos campos e da pobreza para embarcarem numa aventura em que se transcenderam."

Na verdade, longe da consciencialização política, a anos-luz do activismo clandestino contra a guerra e o regime de Oliveira Salazar, a guerra foi para milhares de jovens portugueses uma primeira ânsia de acção, de iniciação na idade adulta, que superava todas as fitas de "western-spaghetti" ou os épicos retratos das batalhas míticas da Segunda Guerra Mundial que estavam habituados a ver nos velhos cinemas de província. Ali estariam eles na caça ao "turra" e não meramente no sonho que o "technicolor" prometia. Nesse início longínquo da guerra em Angola, depois dos massacres da UPA em Março de 1961, milhares de jovens portugueses embarcaram de peito feito às marés atlânticas, acreditando que iam libertar Portugal de uma nova invasão, já não moura mas genuinamente africana.

Só mais tarde, depois dos primeiros desaires, depois do endurecer do conflito nos seus teatros mais implacáveis - Guiné e Moçambique - , depois de as imagens épicas de uma nova partida para mundos desconhecidos em novas caravelas de aço serem substituídas por um regresso do soldadinho no seu caixão de pinho sussurrado na clandestinidade da dor é que começa progressivamente a emergir a mais incontrolável das perplexidades, gerada pela raiva e pela indignação: "O que está a acontecer? Porque me está a acontecer a mim?"

Essas interrogações atravessam a escrita de Matos Gomes e a sensibilidade de Fernando Farinha através da máquina fotográfica, transformando-os nos cronistas de um tempo que ainda hoje nos desafia a compreensão, mas também num elo decisivo para as gerações que não viveram a guerra mas que a anteviam no horizonte a caminhar em direcção às suas vidas. Essas fotografias e essa escrita fazem, afinal, parte do conjunto de instrumentos necessários ao seu estudo e à construção da memória possível para quem possui o distanciamento da idade mas igualmente a vantagem da ausência em tais trincheiras.

Fernando Farinha, desde logo, foi um repórter desses que hoje são muito raros. Iniciou-se no jornalismo em 1941, no jornal "O Comércio de Luanda", e não é apenas mais um dos muitos protagonistas desses tempos que regressou com um excelente álbum de recordações fotográficas. Foi um viajante de África, percorreu as frentes de guerra de lés a lés, palmilhou matos e desertos, saltou de pára-quedas, escapou a desastres de helicóptero e a mordidelas de cobras venenosas, fotografou e escreveu a glória da sobrevivência, o silêncio da morte, a fúria e a raiva da perda, captou os rostos de uma juventude improvável nos soldados que acompanhava até às linhas de combate, foi o cronista dos acontecimentos marcantes do conflito.

Quando o tenente-coronel Maçanita reconquistou Nambuangongo, ele foi o primeiro repórter a dizer "presente". Quando o 25 de Abril de 1974 irrompeu e abriu novas claridades, Fernando Farinha foi de novo o primeiro jornalista português a percorrer as matas do Leste de Angola.

O repórter fotográfico colocou-se instintivamente do lado dos "homens valorosos" que viu, os soldados com quem partilhou medos e bravatas, ainda que o homem de escrita que também foi escrevesse palavras "ideologicamente datadas", como nota Matos Gomes. Por elas perpassa a glorificação das Forças Armadas Portuguesas e do regime colonial, mas sobretudo dos heróis anónimos do pelotão que rastejavam pelo capim, que cavalgavam a savana num regresso ainda hoje inverosímil ao ambiente medieval das cargas de cavalaria ou voavam a plenitude dos céus africanos nos helicópteros que encurtavam as distâncias entre a serenidade da vida de Luanda e a hostilidade adivinhada debaixo das copas da floresta densa que cobria o chão do Leste de Angola, essa imensidão das "terras do fim do mundo", os "cus de Judas", de António Lobo Antunes.

Aceitando e porventura aderindo de convicção aos condicionalismos da época - censura, tomar partido pela pátria -, Farinha foi sobretudo uma testemunha vital desse período da história portuguesa. "Na melhor tradição dos repórteres de guerra, Fernando Farinha transmitiu os factos a quente. Correndo riscos, tomando partido, Hemingway foi isso que fez em Espanha e em Paris. Os repórteres da celebrada CNN é isso que fazem todos os dias", acentua Carlos Matos Gomes. E fê-lo com essa estranha mistura portuguesa de imprevidência e coragem, de desenrascanço e engenho. É pelas suas reportagens que percebemos - e que os portugueses desses anos de chumbo perceberam - que a guerra existe para lá da festividade das paradas e dos uniformes impecavelmente alinhados.

A universalidade das fotografias e dos textos de Farinha está na massa humana que retratam e no testemunho que deixam. Ao olhar para elas não é evidente que se encontre exclusivamente uma intenção propagandística. Mais do que isso, elas comportam o fascinante jogo do destino daquelas gerações e exprimem a dimensão histórica da encruzilhada portuguesa vivida nas frentes de combate, na dúvida, primeiro, e no forte cepticismo, depois, sobre o rumo da guerra e da nação.

"Sendo textos e imagens de fé, de quem acreditava e queria fazer os outros acreditar, as reportagens poderiam ter sido condenadas ao esquecimento a que são votados os vencidos, sejam homens, sejam ideias, se não contivessem o aspecto fascinante que as dota de universalidade e as faz resistir ao tempo, de modo a transmitirem a perplexidade do ser humano que se pode resumir nas frases: o que está a acontecer? Porque me está a acontecer a mim?"

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