Suplemento Mil Folhas

13-02-2002
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Argel

Por ALEXANDRA PRADO COELHO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Um escritor com pseudónimo de mulher revelou a sua identidade de soldado do Exército argelino e descobriu que, aos olhos dos leitores europeus, o facto de ser militar prejudica a sua condição de autor.

Há pouco mais de um ano Yasmina Khadra decidiu deixar a Argélia. Em França, onde os seus livros tinham sido publicados com sucesso, onde tinha leitores atentos e interessados, pensou que podia finalmente assumir a sua verdadeira identidade.

Foi um choque. Em primeiro lugar para os leitores, que tinham construído, por detrás do nome Yasmina Khadra e das suas histórias de uma Argélia dilacerada pela guerra, a imagem de uma mulher corajosa, mas oprimida, a tentar sobreviver num país difícil. E depois descobriram que quem desde 1997 se escondia por detrás do nome, que significa "Jasmim Verde", era Mohammed Moulessehoul, um homem e um oficial do Exército argelino.

Foi um choque também para Moulessehoul, que pensou que a sua identidade não tinha importância para quem gostava dos seus livros. Em Janeiro passado manifestou a sua desilusão num texto intitulado "L'Imposture des Mots". "É sobre o choque de um homem que sonhou com literatura por detrás das paredes de um quartel durante quase 36 anos", explica. "Pensava que só os soldados gostavam de combater. Descobri que os intelectuais batem com mais força e magoam mais".

Aos nove anos de idade, o pai colocou-o numa academia militar e Moulessehoul nunca mais conheceu outra vida. Quando, em 1992, a guerra civil argelina começou, lutou contra os islamistas armados e viveu o horror como nunca o imaginara. "Depois de vermos crianças assassinadas nunca mais podemos voltar a ser felizes", diz o homem que viu o corpo de um bebé espetado numa barra de metal, crianças desfeitas, uma mulher cujos pés tinham sido cortadas deixada a sangrar até à morte.

Os seus livros falam desta Argélia mergulhada no horror, em que, na descrição do "Guardian", os políticos são corruptos e estúpidos, os islamistas são amargos e vingativos, e a religião é apenas mais uma desculpa para continuar o massacre. Os seus livros mais famosos são a trilogia policial em que a figura principal é superintendente Llob, um "duro" e cínico detective do submundo de Argel, convencido de que mais cedo ou mais tarde será morto.

No quartel, a vida de Moulessehoul não era fácil. "O dia dividia-se em dois. Na maior parte do tempo estava na guerra. O resto era para escrever". Os seus superiores não desconfiavam, achando impossível que alguém que passara o dia a combater tivesse ainda forças para escrever. Por isso os livros iam saindo e Yasmina Khadra ia dando entrevistas misteriosas, por fax ou disfarçando a voz ao telefone, para França, onde o mistério sobre a sua identidade se adensava (editados em francês estão "Le dingue au bistouri", "Morituri", "Double blanc", "L'automne des Chiméres", "Les Agneaux du Seigneur" e "À quoi rêvent les loups?").

Hoje Moulessehoul não sabe onde pertence. Sente-se magoado com a decisão do Parlamento Internacional dos Escritores de lhe retirar, a ele e à sua família, a protecção que lhe fora prometida quando saísse da Argélia. Pensa que isso aconteceu porque, ao contrário de outros oficiais argelinos que desertaram e denunciaram a participação do Exército na "guerra suja", nomeadamente em massacres de civis, ele nunca o fez. "Só posso falar do que vi", diz. "Em oito anos nunca vi nada semelhante a um massacre praticado pelo Exército".

Não foi opção sua ser soldado. "O meu pai abandonou-nos, e o Exército acolheu-me". Ao princípio, em 1984, escreveu usando o seu nome verdadeiro, mas era vigiado pelos militares e por si próprio. "Decidi parar. Entre a autocensura e a censura não restava espaço para as palavras". Só por detrás de Yasmina Khadra é que esse espaço voltou. Agora que as duas identidades se fundiram numa só, Yasmina/Mohammed enfrenta um novo dilema: "O meu estatuto de soldado destrói a minha condição de escritor".

Argel

Por ALEXANDRA PRADO COELHO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Um escritor com pseudónimo de mulher revelou a sua identidade de soldado do Exército argelino e descobriu que, aos olhos dos leitores europeus, o facto de ser militar prejudica a sua condição de autor.

Há pouco mais de um ano Yasmina Khadra decidiu deixar a Argélia. Em França, onde os seus livros tinham sido publicados com sucesso, onde tinha leitores atentos e interessados, pensou que podia finalmente assumir a sua verdadeira identidade.

Foi um choque. Em primeiro lugar para os leitores, que tinham construído, por detrás do nome Yasmina Khadra e das suas histórias de uma Argélia dilacerada pela guerra, a imagem de uma mulher corajosa, mas oprimida, a tentar sobreviver num país difícil. E depois descobriram que quem desde 1997 se escondia por detrás do nome, que significa "Jasmim Verde", era Mohammed Moulessehoul, um homem e um oficial do Exército argelino.

Foi um choque também para Moulessehoul, que pensou que a sua identidade não tinha importância para quem gostava dos seus livros. Em Janeiro passado manifestou a sua desilusão num texto intitulado "L'Imposture des Mots". "É sobre o choque de um homem que sonhou com literatura por detrás das paredes de um quartel durante quase 36 anos", explica. "Pensava que só os soldados gostavam de combater. Descobri que os intelectuais batem com mais força e magoam mais".

Aos nove anos de idade, o pai colocou-o numa academia militar e Moulessehoul nunca mais conheceu outra vida. Quando, em 1992, a guerra civil argelina começou, lutou contra os islamistas armados e viveu o horror como nunca o imaginara. "Depois de vermos crianças assassinadas nunca mais podemos voltar a ser felizes", diz o homem que viu o corpo de um bebé espetado numa barra de metal, crianças desfeitas, uma mulher cujos pés tinham sido cortadas deixada a sangrar até à morte.

Os seus livros falam desta Argélia mergulhada no horror, em que, na descrição do "Guardian", os políticos são corruptos e estúpidos, os islamistas são amargos e vingativos, e a religião é apenas mais uma desculpa para continuar o massacre. Os seus livros mais famosos são a trilogia policial em que a figura principal é superintendente Llob, um "duro" e cínico detective do submundo de Argel, convencido de que mais cedo ou mais tarde será morto.

No quartel, a vida de Moulessehoul não era fácil. "O dia dividia-se em dois. Na maior parte do tempo estava na guerra. O resto era para escrever". Os seus superiores não desconfiavam, achando impossível que alguém que passara o dia a combater tivesse ainda forças para escrever. Por isso os livros iam saindo e Yasmina Khadra ia dando entrevistas misteriosas, por fax ou disfarçando a voz ao telefone, para França, onde o mistério sobre a sua identidade se adensava (editados em francês estão "Le dingue au bistouri", "Morituri", "Double blanc", "L'automne des Chiméres", "Les Agneaux du Seigneur" e "À quoi rêvent les loups?").

Hoje Moulessehoul não sabe onde pertence. Sente-se magoado com a decisão do Parlamento Internacional dos Escritores de lhe retirar, a ele e à sua família, a protecção que lhe fora prometida quando saísse da Argélia. Pensa que isso aconteceu porque, ao contrário de outros oficiais argelinos que desertaram e denunciaram a participação do Exército na "guerra suja", nomeadamente em massacres de civis, ele nunca o fez. "Só posso falar do que vi", diz. "Em oito anos nunca vi nada semelhante a um massacre praticado pelo Exército".

Não foi opção sua ser soldado. "O meu pai abandonou-nos, e o Exército acolheu-me". Ao princípio, em 1984, escreveu usando o seu nome verdadeiro, mas era vigiado pelos militares e por si próprio. "Decidi parar. Entre a autocensura e a censura não restava espaço para as palavras". Só por detrás de Yasmina Khadra é que esse espaço voltou. Agora que as duas identidades se fundiram numa só, Yasmina/Mohammed enfrenta um novo dilema: "O meu estatuto de soldado destrói a minha condição de escritor".

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