Suplemento Mil Folhas

13-02-2002
marcar artigo

O Tigre

Por ANA TERESA PEREIRA

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

É estranho que nunca nos tenhamos encontrado. Afinal, vivemos no mesmo lugar: uma infinita biblioteca de livros ingleses. Eu sei que quando nasci já ele se afundara nas sombras amarelas e cinzentas; mas não é menos certo que uma das escolas de Tlon nega o tempo e outra declara que já decorreu todo o tempo e a nossa vida é a recordação de um passado mais ou menos ilusório. Como é natural, o primeiro conto dele que li foi o primeiro que escreveu, a história desse Pierre Menard que dedicou a vida a reescrever o "Quixote" (não ficaram rascunhos do seu trabalho, ele queimava-os todas as tardes, mas alguns recordam os cadernos quadriculados, as páginas cheias de anotações...). Esta obra (repetir um livro preexistente), que infelizmente ficou incompleta, foi a mais importante mas não a única, ele talvez tenha escrito o conto "Pierre Menard, autor do Quixote", como aquele misterioso "Nîmes, 1939" no final parece sugerir. Menard conduziu-me aos territórios familiares de "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius" (procurei inutilmente em escuras livrarias o volume XLVI da Anglo-American Cyclopaedia, mas comprei uma edição de 1908 de "New Arabian Nights" de Stevenson e uma de 1901 de "A Summer Twilight" de James); percorri na penumbra o jardim dos caminhos que se bifurcam, confirmei a ideia antiga de que alguém me sonha e de que eu mesma sonho o mundo ("talvez eu tenha criado as estrelas, e o sol, e a enorme casa, mas não me lembro") e estudei longamente a escrita do deus na pele do tigre, voltei àquele ponto na cave, debaixo das escadas, onde está o universo todo (incluindo a cave, e as escadas, e eu mesma), e uma manhã no meio de uma cidade em ruínas senti algo parecido com a felicidade quando começou a chover.

Ele contou-me pela primeira vez a história de Wakefield e a do Simurgh; ensinou-me que é inútil escrever romances de quinhentas páginas quando podemos escrever notas sobre livros imaginários ou escritores que não existem, que toda a arte é ficção (e no cinema todos os efeitos são especiais, como sabia Billy Wilder), que o sonho é uma parte (talvez não a menos importante) da realidade, que os livros devem escrever-se sozinhos ("Art happens", dizia Whistler), que todos os paraísos são paraísos perdidos, e que num labirinto se deve virar sempre à esquerda. Por sua causa escrevi o meu primeiro conto fantástico, li o "Quixote" e partes de "As Mil e Uma Noites" (ninguém o pode ler na totalidade) e aprendi a jogar xadrez. Como muitos autores ele sonhou escrever histórias policiais, "O jardim dos caminhos que se bifurcam" ganhou um prémio da Ellery Queen's Mystery Magazine; com a colaboração de Bioy Casares organizou uma antologia de contos policiais onde não faltam o meu John Dickson Carr e o meu William Irish.

Esta moeda que tenho na mão não é o Zahir, porque esse já o encontrei há muito tempo, tinha a forma de um livro cujo título não vou indicar. Mas lembro-me de que ele gostava de moedas, e de que uma vez revelou (mas só a poucos leitores, a muito poucos leitores) que a realidade começava a ceder (o certo é que desejava ceder). Estou novamente na torre de "The Good Apprentice" (nunca fiz nada na vida além de subir as escadas desta torre), sei que a qualquer momento a fera (o tigre) poderá saltar ao meu encontro, e talvez não encontre nada para dizer além de "esta coisa distinta, a morte". Sinto o cheiro dos lilases (embora Abril ainda esteja longe), e o ruído do mar (embora o mar também esteja longe), e lá fora inúmeros pássaros negros crescem das árvores que só existem no mundo de Chesterton, e as suas asas começam a esconder a noite, as estrelas. Mas, como Borges, eu não me importo.

O Tigre

Por ANA TERESA PEREIRA

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

É estranho que nunca nos tenhamos encontrado. Afinal, vivemos no mesmo lugar: uma infinita biblioteca de livros ingleses. Eu sei que quando nasci já ele se afundara nas sombras amarelas e cinzentas; mas não é menos certo que uma das escolas de Tlon nega o tempo e outra declara que já decorreu todo o tempo e a nossa vida é a recordação de um passado mais ou menos ilusório. Como é natural, o primeiro conto dele que li foi o primeiro que escreveu, a história desse Pierre Menard que dedicou a vida a reescrever o "Quixote" (não ficaram rascunhos do seu trabalho, ele queimava-os todas as tardes, mas alguns recordam os cadernos quadriculados, as páginas cheias de anotações...). Esta obra (repetir um livro preexistente), que infelizmente ficou incompleta, foi a mais importante mas não a única, ele talvez tenha escrito o conto "Pierre Menard, autor do Quixote", como aquele misterioso "Nîmes, 1939" no final parece sugerir. Menard conduziu-me aos territórios familiares de "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius" (procurei inutilmente em escuras livrarias o volume XLVI da Anglo-American Cyclopaedia, mas comprei uma edição de 1908 de "New Arabian Nights" de Stevenson e uma de 1901 de "A Summer Twilight" de James); percorri na penumbra o jardim dos caminhos que se bifurcam, confirmei a ideia antiga de que alguém me sonha e de que eu mesma sonho o mundo ("talvez eu tenha criado as estrelas, e o sol, e a enorme casa, mas não me lembro") e estudei longamente a escrita do deus na pele do tigre, voltei àquele ponto na cave, debaixo das escadas, onde está o universo todo (incluindo a cave, e as escadas, e eu mesma), e uma manhã no meio de uma cidade em ruínas senti algo parecido com a felicidade quando começou a chover.

Ele contou-me pela primeira vez a história de Wakefield e a do Simurgh; ensinou-me que é inútil escrever romances de quinhentas páginas quando podemos escrever notas sobre livros imaginários ou escritores que não existem, que toda a arte é ficção (e no cinema todos os efeitos são especiais, como sabia Billy Wilder), que o sonho é uma parte (talvez não a menos importante) da realidade, que os livros devem escrever-se sozinhos ("Art happens", dizia Whistler), que todos os paraísos são paraísos perdidos, e que num labirinto se deve virar sempre à esquerda. Por sua causa escrevi o meu primeiro conto fantástico, li o "Quixote" e partes de "As Mil e Uma Noites" (ninguém o pode ler na totalidade) e aprendi a jogar xadrez. Como muitos autores ele sonhou escrever histórias policiais, "O jardim dos caminhos que se bifurcam" ganhou um prémio da Ellery Queen's Mystery Magazine; com a colaboração de Bioy Casares organizou uma antologia de contos policiais onde não faltam o meu John Dickson Carr e o meu William Irish.

Esta moeda que tenho na mão não é o Zahir, porque esse já o encontrei há muito tempo, tinha a forma de um livro cujo título não vou indicar. Mas lembro-me de que ele gostava de moedas, e de que uma vez revelou (mas só a poucos leitores, a muito poucos leitores) que a realidade começava a ceder (o certo é que desejava ceder). Estou novamente na torre de "The Good Apprentice" (nunca fiz nada na vida além de subir as escadas desta torre), sei que a qualquer momento a fera (o tigre) poderá saltar ao meu encontro, e talvez não encontre nada para dizer além de "esta coisa distinta, a morte". Sinto o cheiro dos lilases (embora Abril ainda esteja longe), e o ruído do mar (embora o mar também esteja longe), e lá fora inúmeros pássaros negros crescem das árvores que só existem no mundo de Chesterton, e as suas asas começam a esconder a noite, as estrelas. Mas, como Borges, eu não me importo.

marcar artigo