A "batalha do só" na Guiné

23-02-2002
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A "Batalha do Só" na Guiné

Por EDUARDO DÂMASO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

O jornalista José Manuel Saraiva, do "Expresso", estreia-se na ficção com o romance "As Lágrimas de Aquiles", um livro surpreendente sobre a guerra colonial.

Neste livro, verdadeiramente uma espécie de primeiro romance pós-colonial na cada vez mais fértil produção literária sobre a guerra do Ultramar, acompanhamos o autor por páginas de uma enorme frescura narrativa a uma Guiné mítica na geografia do imaginário nacional sobre esse "Nam" português, a frente das emboscadas, do tiro traiçoeiro, que se transformou a partir de 1973 na mais penosa imagem da impotência bélica de Portugal face a um inimigo que corria bolanhas (campos de arroz) e matos inclementes de pé descalço levando a sua superioridade tecnológica ao ombro, os mísseis terra-ar Strella.

José Manuel Saraiva deambula pelos territórios físicos e psicológicos do drama colonial com uma escrita simples - mas não menos literária - e uma suavidade narrativa que chega a ser tocante. A história desenvolve-se em torno do personagem Nuno Sarmento, um jovem da Beira Interior que estuda em Coimbra, em si a síntese dessa eterna alquimia portuguesa entre uma certa ruralidade omnipresente e a ânsia de um eclectismo cultural que está para lá dos Pirenéus, na Europa letrada, cujos sonhos são interrompidos pela incerteza da guerra. É um jovem, como tantos outros, sem formação política, empurrado para o espaço de um nada cósmico onde vogam em verdadeiras tempestades emocionais todos os sentimentos e estados de alma face ao apelo de uma guerra desconhecida. Manuel Alegre, autor do prefácio de "As Lágrimas de Aquiles", reencontra-se aí com o seu próprio passado: "Reparei então que a história contada na carta-testamento de Nuno Sarmento era um pouco da minha própria história, a de uma geração que foi à guerra de África e nela se viu na contingência de morrer e de matar, sem ao certo saber, como o autor a páginas tantas se pergunta, se estava a ganhar ou a perder."

Nuno Sarmento e a sua viagem iniciática ao espaço da sua guerra real e interior, de que a Guiné é o palco inevitável, acaba transformado num implacável retrato geracional de homens que mataram por dever e por sobrevivência, que viram morrer companheiros, que conseguiam mesmo assim sentir compaixão por um inimigo com quem trocavam presentes de Natal na linguagem silenciosa e rigorosamente vigiada da confraria universal dos combatentes. Foram os homens que tiveram pela frente a "batalha do só" nessas unidades longínquas da mata africana, tão unidos no destino da guerra ultramarina, tão sozinhos na aspereza dos dias cilindrados pelo chumbo de um sol mortal, no silêncio ruidoso das noites de vigília no capim, antes de a madrugada os lançar para a selvajaria do tiro, na algazarra das festas da caserna onde o absurdo podia dominar até à compaixão. Foram depois no regresso à pátria os homens da "batalha do só" contra o álcool, a droga, a loucura, o abandono do país por quem mataram e morreram.

José Manuel Saraiva explica-nos com inteligência a opção exclusiva dos que não viam outro caminho senão cumprir a obrigação do Ultramar. Demonstra-nos como muitos jovens portugueses, letrados e conscientes de que aquela não era mais uma aventura de "cowboys", não viam senão o caminho do escrupuloso cumprimento da obrigação e do dever perante a pátria, apontado pelo peso de uma educação familiar nutrida pelos sacrossantos valores do regime. Mostra-nos o resultado cruel dessa educação, do fatalismo inculcado nas famílias resignadas e famintas, cujos mancebos rejubilavam de alegria num estranho ritual de autoglorificação nos dias em que se faziam homens com as respectivas fitinhas encarnadas que transportavam à lapela para dizer ao mundo que a vida adulta os esperava. E a guerra de África também.

Começando pelo ambiente universitário, passando pela província, oferecendo-nos depois a sua Guiné, José Manuel Saraiva triangula uma crónica melancólica dessas sucessivas gerações de soldadesca que o Estado Novo arrancou a uma vida sem sobressaltos do Alentejo bravio ou das Beiras brumosas, símbolos de uma província pobre e reduzida a menos do que uma escolaridade básica que alimentou a aventura de uma guerra perdida, não tanto nas oscilações da bravata guerreira no terreno mas para a história.

Com Nuno Sarmento, transformamo-nos em viajantes por esse Portugal salazarista que nunca derrotámos dentro de nós porque, por vivência ou transmissão familiar, há sempre um pedaço daquilo que somos que é parte integrante e indissociável desse quadro nostálgico e fatalista de um país conformado que vivia ao ritmo das paixões possíveis. Um país que amava o futebol, o fado, as despedidas, a saudade, que se concentrava nas partidas e nos regressos do cais da Rocha Conde de Óbidos, que interiorizava uma ligação filial aos trânsitos de sentimentos divididos entre o berço rural e a capital mítica na sua dimensão ainda imperial, obrigado a pôr entre-aspas uma visão mais crua do seu destino, dos seus meninos-mortos expedidos num caixão de pinho, do despotismo dos líderes que mandavam, da polícia política que reprimia.

Pelos nossos olhos passam a preto e branco a piedade hipócrita do Movimento Nacional Feminino, os soluços da camioneta da carreira que leva e traz sonhos e desilusões entre a província e as cidades, as multidões que choravam na bola ao domingo com os arreganhos da Pantera negra, a fé na Nossa Senhora de Fátima.

É através dessas pinceladas vigorosas que traçam um país sonâmbulo que se compreende porque é que a revolta de Nuno Sarmento contra o Estado Novo era "bastante mais emocional do que apostólica". Era mais mergulhada numa leitura daquilo que eram os limites colocados ao indivíduo do que a uma comunidade vergada sob o peso da trilogia Deus-Pátria-Autoridade que as aceitava como incontornáveis. Era muito menos ou mesmo nada pela compreensão da tragédia de uma política africana que conduzia o país para um novo Alcácer-Quibir.

É em tudo o que na guerra o empurra para a fronteira entre o medo e a coragem que o jovem alferes vai abrindo os olhos. Esse despertar vai crescendo a partir do furriel Mota, que cai ao lado de Nuno Sarmento com dois buracos no peito, mas sobretudo no guerrilheiro capturado e ferido que lhe nega a delação e lhe suplica pela morte, obrigando-o a proferir a ordem que sempre o assombrou nos pesadelos. "Acaba-me já com esse cabrão", palavras finais para o primeiro-cabo que tinha a espingarda a três palmos da cabeça do guerrilheiro. Como diz Manuel Alegre, aqui passa-se verdadeiramente do testemunho à literatura e da realidade vivida à criação. "... Nestas duas ou três páginas é a própria guerra que se escreve a si mesma e é, por isso, que elas são um alto e raro momento da literatura de guerra." Desfazem-se todos os fantasmas sempre pressentidos, mas raramente assumidos: "Na guerra colonial não nos limitámos a ser vítimas, também matámos e mandámos matar."

É a morte, afinal, sempre ela, que vai desbravando a escuridão do medo e abrindo o caminho da mudança no espírito. A morte do furriel Mota, do alferes Ferreira [momento em que Nuno Sarmento assume que começa a "consolidar" a ideia de que o seu lugar não era naquela guerra], do guerrilheiro que o obriga a levá-lo no negrume da sua própria consciência. A morte e a solidão, a tal "batalha do só", definição esplendorosa da guerra interior de cada um, dos impulsos que empurram para o desconhecido, que fazem abrir a alma na mais improvável circunstância, do confronto entre racionalidade e medos, da evocação longínqua do que ficou em Portugal, afectos e filiações, dos segredos impossíveis de suportar.

Essa foi a guerra mais difícil de todas, que porventura nenhum dos soldados que esteve em África ganhou. É essa crónica íntima que "As Lágrimas de Aquiles" nos deixa.

A "Batalha do Só" na Guiné

Por EDUARDO DÂMASO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

O jornalista José Manuel Saraiva, do "Expresso", estreia-se na ficção com o romance "As Lágrimas de Aquiles", um livro surpreendente sobre a guerra colonial.

Neste livro, verdadeiramente uma espécie de primeiro romance pós-colonial na cada vez mais fértil produção literária sobre a guerra do Ultramar, acompanhamos o autor por páginas de uma enorme frescura narrativa a uma Guiné mítica na geografia do imaginário nacional sobre esse "Nam" português, a frente das emboscadas, do tiro traiçoeiro, que se transformou a partir de 1973 na mais penosa imagem da impotência bélica de Portugal face a um inimigo que corria bolanhas (campos de arroz) e matos inclementes de pé descalço levando a sua superioridade tecnológica ao ombro, os mísseis terra-ar Strella.

José Manuel Saraiva deambula pelos territórios físicos e psicológicos do drama colonial com uma escrita simples - mas não menos literária - e uma suavidade narrativa que chega a ser tocante. A história desenvolve-se em torno do personagem Nuno Sarmento, um jovem da Beira Interior que estuda em Coimbra, em si a síntese dessa eterna alquimia portuguesa entre uma certa ruralidade omnipresente e a ânsia de um eclectismo cultural que está para lá dos Pirenéus, na Europa letrada, cujos sonhos são interrompidos pela incerteza da guerra. É um jovem, como tantos outros, sem formação política, empurrado para o espaço de um nada cósmico onde vogam em verdadeiras tempestades emocionais todos os sentimentos e estados de alma face ao apelo de uma guerra desconhecida. Manuel Alegre, autor do prefácio de "As Lágrimas de Aquiles", reencontra-se aí com o seu próprio passado: "Reparei então que a história contada na carta-testamento de Nuno Sarmento era um pouco da minha própria história, a de uma geração que foi à guerra de África e nela se viu na contingência de morrer e de matar, sem ao certo saber, como o autor a páginas tantas se pergunta, se estava a ganhar ou a perder."

Nuno Sarmento e a sua viagem iniciática ao espaço da sua guerra real e interior, de que a Guiné é o palco inevitável, acaba transformado num implacável retrato geracional de homens que mataram por dever e por sobrevivência, que viram morrer companheiros, que conseguiam mesmo assim sentir compaixão por um inimigo com quem trocavam presentes de Natal na linguagem silenciosa e rigorosamente vigiada da confraria universal dos combatentes. Foram os homens que tiveram pela frente a "batalha do só" nessas unidades longínquas da mata africana, tão unidos no destino da guerra ultramarina, tão sozinhos na aspereza dos dias cilindrados pelo chumbo de um sol mortal, no silêncio ruidoso das noites de vigília no capim, antes de a madrugada os lançar para a selvajaria do tiro, na algazarra das festas da caserna onde o absurdo podia dominar até à compaixão. Foram depois no regresso à pátria os homens da "batalha do só" contra o álcool, a droga, a loucura, o abandono do país por quem mataram e morreram.

José Manuel Saraiva explica-nos com inteligência a opção exclusiva dos que não viam outro caminho senão cumprir a obrigação do Ultramar. Demonstra-nos como muitos jovens portugueses, letrados e conscientes de que aquela não era mais uma aventura de "cowboys", não viam senão o caminho do escrupuloso cumprimento da obrigação e do dever perante a pátria, apontado pelo peso de uma educação familiar nutrida pelos sacrossantos valores do regime. Mostra-nos o resultado cruel dessa educação, do fatalismo inculcado nas famílias resignadas e famintas, cujos mancebos rejubilavam de alegria num estranho ritual de autoglorificação nos dias em que se faziam homens com as respectivas fitinhas encarnadas que transportavam à lapela para dizer ao mundo que a vida adulta os esperava. E a guerra de África também.

Começando pelo ambiente universitário, passando pela província, oferecendo-nos depois a sua Guiné, José Manuel Saraiva triangula uma crónica melancólica dessas sucessivas gerações de soldadesca que o Estado Novo arrancou a uma vida sem sobressaltos do Alentejo bravio ou das Beiras brumosas, símbolos de uma província pobre e reduzida a menos do que uma escolaridade básica que alimentou a aventura de uma guerra perdida, não tanto nas oscilações da bravata guerreira no terreno mas para a história.

Com Nuno Sarmento, transformamo-nos em viajantes por esse Portugal salazarista que nunca derrotámos dentro de nós porque, por vivência ou transmissão familiar, há sempre um pedaço daquilo que somos que é parte integrante e indissociável desse quadro nostálgico e fatalista de um país conformado que vivia ao ritmo das paixões possíveis. Um país que amava o futebol, o fado, as despedidas, a saudade, que se concentrava nas partidas e nos regressos do cais da Rocha Conde de Óbidos, que interiorizava uma ligação filial aos trânsitos de sentimentos divididos entre o berço rural e a capital mítica na sua dimensão ainda imperial, obrigado a pôr entre-aspas uma visão mais crua do seu destino, dos seus meninos-mortos expedidos num caixão de pinho, do despotismo dos líderes que mandavam, da polícia política que reprimia.

Pelos nossos olhos passam a preto e branco a piedade hipócrita do Movimento Nacional Feminino, os soluços da camioneta da carreira que leva e traz sonhos e desilusões entre a província e as cidades, as multidões que choravam na bola ao domingo com os arreganhos da Pantera negra, a fé na Nossa Senhora de Fátima.

É através dessas pinceladas vigorosas que traçam um país sonâmbulo que se compreende porque é que a revolta de Nuno Sarmento contra o Estado Novo era "bastante mais emocional do que apostólica". Era mais mergulhada numa leitura daquilo que eram os limites colocados ao indivíduo do que a uma comunidade vergada sob o peso da trilogia Deus-Pátria-Autoridade que as aceitava como incontornáveis. Era muito menos ou mesmo nada pela compreensão da tragédia de uma política africana que conduzia o país para um novo Alcácer-Quibir.

É em tudo o que na guerra o empurra para a fronteira entre o medo e a coragem que o jovem alferes vai abrindo os olhos. Esse despertar vai crescendo a partir do furriel Mota, que cai ao lado de Nuno Sarmento com dois buracos no peito, mas sobretudo no guerrilheiro capturado e ferido que lhe nega a delação e lhe suplica pela morte, obrigando-o a proferir a ordem que sempre o assombrou nos pesadelos. "Acaba-me já com esse cabrão", palavras finais para o primeiro-cabo que tinha a espingarda a três palmos da cabeça do guerrilheiro. Como diz Manuel Alegre, aqui passa-se verdadeiramente do testemunho à literatura e da realidade vivida à criação. "... Nestas duas ou três páginas é a própria guerra que se escreve a si mesma e é, por isso, que elas são um alto e raro momento da literatura de guerra." Desfazem-se todos os fantasmas sempre pressentidos, mas raramente assumidos: "Na guerra colonial não nos limitámos a ser vítimas, também matámos e mandámos matar."

É a morte, afinal, sempre ela, que vai desbravando a escuridão do medo e abrindo o caminho da mudança no espírito. A morte do furriel Mota, do alferes Ferreira [momento em que Nuno Sarmento assume que começa a "consolidar" a ideia de que o seu lugar não era naquela guerra], do guerrilheiro que o obriga a levá-lo no negrume da sua própria consciência. A morte e a solidão, a tal "batalha do só", definição esplendorosa da guerra interior de cada um, dos impulsos que empurram para o desconhecido, que fazem abrir a alma na mais improvável circunstância, do confronto entre racionalidade e medos, da evocação longínqua do que ficou em Portugal, afectos e filiações, dos segredos impossíveis de suportar.

Essa foi a guerra mais difícil de todas, que porventura nenhum dos soldados que esteve em África ganhou. É essa crónica íntima que "As Lágrimas de Aquiles" nos deixa.

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