Suplemento Mil Folhas

16-02-2002
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Um Braço-de-ferro

Por JOANA NEVES

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Void enfatiza a tensão, sublinha a dinâmica espacial que nasce da colisão de forças contrárias. A primeira exposição individual de Noé Sendas na galeria Cristina Guerra.

"Void" é a primeira exposição individual de Noé Sendas na galeria Cristina Guerra Contemporary Art. Tal como os outros jovens artistas representados por esta galeria, Noé Sendas tem já um percurso solidamente estabelecido. Londres, Chicago e Berlim foram algumas das cidades onde desenvolveu a sua aprendizagem artística, para além de Lisboa, onde frequentou a escola de arte Ar.Co. Foi seleccionado para o Prémio União Latina do ano passado. Todavia, o seu trabalho não se encaixa num percurso muito linear. Tendo uma respiração muito própria, goza, porém, de uma flexibilidade invejável, patente no modo como explorou o espaço da galeria Cristina Guerra. Noé Sendas mostra estar à vontade tanto no meio asséptico de uma galeria como em locais mais alternativos, como foi o caso das exposições na Sala do Veado e no Matadouro das Caldas da Rainha, com Nuno Cera, ambas em 2000; ou ainda a sua intervenção na exposição "Apresentação", concebida para aproveitar o espaço em mutação da galeria da EDP.

Para além do mais, as suas opções são extremamente diversificadas no que toca a matéria-prima da obra, mas também, e sobretudo, o seu resultado expositivo. A paradigmática peça "Impulsos e Hesitações" foi submetida a várias hipóteses de projecção, por exemplo. A viragem para as esculturas, verdadeiros "homeless" que já têm exemplares femininos, e que o artista encara sobretudo como "personagens", não pode sombrear outras opções artísticas mais variadas. Exemplo disso serão diversos vídeos em que o corpo do artista fornece uma sinalética orgânica, isolando numa imagem suspensa e repetitiva partes desse corpo. O artista sacrifica agora a narração em função da expressividade de uma imagem isolada do seu contexto próprio. Noé Sendas apresenta nesta exposição dois novos vídeos que se enquadram nessa perspectiva, "U-Turn (Blue)" e "U-Turn (Green)", em que o corpo é colocado em tensão de um modo simples e eficaz.

Toda a exposição enfatiza a tensão, sublinha a dinâmica espacial que nasce da colisão de forças contrárias. O artista afirma ter partido da ideia de um limite puxado para além de si mesmo, de uma situação de fracasso. Ora o fracasso é justamente o desequilíbrio entre as forças que harmoniosamente devem compor uma situação. Um tecto que assenta em paredes e no cálculo exacto das proporções do edifício, se cair, é porque uma dessas componentes falhou. Daí a primeira peça, "Braço-de-ferro", consistir apenas na colocação de prumos habitualmente usados em construção civil para suster tectos em vias de cair, ou para equilibrar uma construção por acabar. Noé Sendas evita a questão da origem e do fim, pois os prumos tanto servem numa situação de ruína ou numa atitude construtiva. Ali colocados, na primeira sala da galeria que se vê da rua, condensam uma situação de crise insolúvel: ou o prédio está para ruir, ou uma desgraça aconteceu e a inauguração da exposição não teve lugar.

O termo "void", em inglês, significa "vazio". Tal como o seu equivalente português, começa por definir um lapso no espaço para exprimir um vazio emocional, a falta que alguém nos faz. Se há um vazio - até pelo facto de o artista ter optado por não apresentar nenhuma escultura -, este é contrabalançado pela própria presença física do espectador. O seu corpo andará em ziguezague por entre os prumos de "Braço-de-ferro", sentindo-se simultaneamente atraído e repelido pela situação extrema em que é colocado.

Finalmente, o "vazio" anunciado pode delinear-se na instalação de desenhos que estão na sala de baixo. A sua disposição, em aparência caótica (os quadros estão tombados, voltados ao contrário), remete para uma dança, uma "valsa", em que os rostos se encaram um ao outro, volteando, acompanhando-se o melhor possível, unidos na gestualidade e separados na singularidade dos seus corpos. Feitos a partir do espelho, sem olhar para a folha, estes desenhos são todos da mesma pessoa em duplo - o próprio artista - medindo o vazio que vai dele para ele próprio. O desenho, lembra o artista, está pronto num momento específico, no culminar de um crescendo processual, gestual. A partir desse instante, e até antes dele, deixará de estar certo. E o vazio, aqui, serão esses outros momentos, antes e depois de um estado de graça, essas experiências no tempo em que estranhamente não estamos presentes na nossa própria vida, e fracassamos.

Um Braço-de-ferro

Por JOANA NEVES

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Void enfatiza a tensão, sublinha a dinâmica espacial que nasce da colisão de forças contrárias. A primeira exposição individual de Noé Sendas na galeria Cristina Guerra.

"Void" é a primeira exposição individual de Noé Sendas na galeria Cristina Guerra Contemporary Art. Tal como os outros jovens artistas representados por esta galeria, Noé Sendas tem já um percurso solidamente estabelecido. Londres, Chicago e Berlim foram algumas das cidades onde desenvolveu a sua aprendizagem artística, para além de Lisboa, onde frequentou a escola de arte Ar.Co. Foi seleccionado para o Prémio União Latina do ano passado. Todavia, o seu trabalho não se encaixa num percurso muito linear. Tendo uma respiração muito própria, goza, porém, de uma flexibilidade invejável, patente no modo como explorou o espaço da galeria Cristina Guerra. Noé Sendas mostra estar à vontade tanto no meio asséptico de uma galeria como em locais mais alternativos, como foi o caso das exposições na Sala do Veado e no Matadouro das Caldas da Rainha, com Nuno Cera, ambas em 2000; ou ainda a sua intervenção na exposição "Apresentação", concebida para aproveitar o espaço em mutação da galeria da EDP.

Para além do mais, as suas opções são extremamente diversificadas no que toca a matéria-prima da obra, mas também, e sobretudo, o seu resultado expositivo. A paradigmática peça "Impulsos e Hesitações" foi submetida a várias hipóteses de projecção, por exemplo. A viragem para as esculturas, verdadeiros "homeless" que já têm exemplares femininos, e que o artista encara sobretudo como "personagens", não pode sombrear outras opções artísticas mais variadas. Exemplo disso serão diversos vídeos em que o corpo do artista fornece uma sinalética orgânica, isolando numa imagem suspensa e repetitiva partes desse corpo. O artista sacrifica agora a narração em função da expressividade de uma imagem isolada do seu contexto próprio. Noé Sendas apresenta nesta exposição dois novos vídeos que se enquadram nessa perspectiva, "U-Turn (Blue)" e "U-Turn (Green)", em que o corpo é colocado em tensão de um modo simples e eficaz.

Toda a exposição enfatiza a tensão, sublinha a dinâmica espacial que nasce da colisão de forças contrárias. O artista afirma ter partido da ideia de um limite puxado para além de si mesmo, de uma situação de fracasso. Ora o fracasso é justamente o desequilíbrio entre as forças que harmoniosamente devem compor uma situação. Um tecto que assenta em paredes e no cálculo exacto das proporções do edifício, se cair, é porque uma dessas componentes falhou. Daí a primeira peça, "Braço-de-ferro", consistir apenas na colocação de prumos habitualmente usados em construção civil para suster tectos em vias de cair, ou para equilibrar uma construção por acabar. Noé Sendas evita a questão da origem e do fim, pois os prumos tanto servem numa situação de ruína ou numa atitude construtiva. Ali colocados, na primeira sala da galeria que se vê da rua, condensam uma situação de crise insolúvel: ou o prédio está para ruir, ou uma desgraça aconteceu e a inauguração da exposição não teve lugar.

O termo "void", em inglês, significa "vazio". Tal como o seu equivalente português, começa por definir um lapso no espaço para exprimir um vazio emocional, a falta que alguém nos faz. Se há um vazio - até pelo facto de o artista ter optado por não apresentar nenhuma escultura -, este é contrabalançado pela própria presença física do espectador. O seu corpo andará em ziguezague por entre os prumos de "Braço-de-ferro", sentindo-se simultaneamente atraído e repelido pela situação extrema em que é colocado.

Finalmente, o "vazio" anunciado pode delinear-se na instalação de desenhos que estão na sala de baixo. A sua disposição, em aparência caótica (os quadros estão tombados, voltados ao contrário), remete para uma dança, uma "valsa", em que os rostos se encaram um ao outro, volteando, acompanhando-se o melhor possível, unidos na gestualidade e separados na singularidade dos seus corpos. Feitos a partir do espelho, sem olhar para a folha, estes desenhos são todos da mesma pessoa em duplo - o próprio artista - medindo o vazio que vai dele para ele próprio. O desenho, lembra o artista, está pronto num momento específico, no culminar de um crescendo processual, gestual. A partir desse instante, e até antes dele, deixará de estar certo. E o vazio, aqui, serão esses outros momentos, antes e depois de um estado de graça, essas experiências no tempo em que estranhamente não estamos presentes na nossa própria vida, e fracassamos.

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