"Ásia Extrema", crónica de um encontro místico e cultural

23-02-2002
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"Ásia Extrema", Crónica de Um Encontro Místico e Cultural

Por ANTÓNIO MARUJO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

No meio de manuscritos antigos, Horácio Peixoto Araújo descobriu uma obra (quase) desconhecida: a "Ásia Extrema", do padre jesuíta António de Gouveia. O texto é a mais extensa crónica do encontro entre o Ocidente cristão e a China.

R. - É uma crónica da missão da China, que introduz elementos de literatura espiritual e de literatura de viagens. O autor integra na "Ásia Extrema" o único relato que existe em português da viagem do jesuíta Bento de Góis, em busca do Cataio e do Preste João.

Há relatos extremamente interessantes: a viagem de um jesuíta italiano e do primeiro jesuíta português a entrar na China, António de Almeida, companheiro de Matteo Ricci. Há uma viagem que os dois - Almeida e Michele Ruggieri - fazem pelo interior da China e que é contada com muita atenção. Gouveia transcreve aqui o relato dessa viagem fluvial, feito por António de Almeida, que conta o que vai vendo nas margens, o que se passa na embarcação, os instrumentos e técnicas utilizadas para a pesca...

R. - Os jesuítas tinham o hábito de fazer um relatório anual de todas as missões em que trabalhavam - China, Japão, Vietname, Brasil -, chamado "cartas ânuas", enviadas ao [superior] geral, em Roma. Assim, ficámos com documentação excelente sobre este primeiro encontro entre o Ocidente e o Oriente. Neste primeiro século da missão, as cartas estão quase todas em português. É um manancial espantoso de informação em língua portuguesa.

R. - Durante esse século, o número de portugueses foi sempre maior que o dos estrangeiros. Durante muito tempo, a missão era apoiada sempre a partir de Macau, não só em recursos humanos, como em recursos materiais. Quando estavam doentes, curavam-se no Colégio de Macau, quando precisavam de dinheiro pediam apoio a Macau. Gouveia, em várias ocasiões, elogia os moradores de Macau pela generosidade com que eles acudiam à missão da China.

R. - Havia pouca informação sobre a China. A "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, de 1614, tinha também muita fantasia, incluindo a sua utopia da China. Havia as cartas dos cativos de Cantão - Vasco Calvo e Cristóvão Vieira -, que tinham estado na prisão e conseguiram fazer sair cartas. E pouco mais. A China continuava um reino fechado e havia pena de morte para qualquer estrangeiro que fosse encontrado sem autorização.

Os jesuítas tentaram, com grande diplomacia, quebrar essa fronteira, e obter autorizações de residência, inicialmente muito precárias. Da parte dos mandarins, havia uma grande admiração por estes letrados do Ocidente que sabiam falar e escrever chinês e que se adaptavam com grande facilidade aos cerimoniais da sociedade chinesa.

R. - Desde o início, como acentua Ricci, tentou criar-se uma ponte entre o cristianismo e o confucionismo. Confúcio tinha uma série de preceitos morais que eram muito queridos na sociedade chinesa. Os jesuítas perceberam isso e tentaram criar pontes entre as normas morais do cristianismo e as do confucionismo, para mostrar que havia uma aproximação possível.

Também desde o início, os jesuítas admiram o Império Chinês. É um império enormíssimo, muito bem governado, com uma justiça que funciona. Na Europa tínhamos a imprensa desde Gutemberg, mas quando os jesuítas chegam à China o livro impresso era uma coisa corrente desde há séculos.

R. - Sim. Esta experiência dos primeiros 50 anos de missão em que os jesuítas estiveram sozinhos na China constituiu, a meu ver, a experiência de inculturação e de intercâmbio entre duas culturas opostas mais bem conseguida ao longo da história. Eles conseguiram uma aproximação enorme, traduziram imensas obras chinesas para o latim e línguas europeias, e traduziram para chinês obras europeias de filosofia, moral cristã e catecismos. Claro que isto obedecia a uma grande estratégia, que tinha como finalidade a pregação do evangelho [e que] determina que antes de entrar na China é preciso saber chinês e conhecer os rituais da sociedade, ligados às visitas, ao Ano Novo, às exéquias, às cerimónias de aniversário.

Essa estratégia vai-se aprofundando. A certa altura, apercebem-se que os chineses apreciam a astronomia e a matemática. Os missionários que são formados nessa área ganham a amizade do imperador e, através dela, a condescendência para pregar o evangelho. Vários jesuítas foram directores do observatório astronómico de Pequim, o Tribunal das Matemáticas, o que lhes dava uma importância grande junto do imperador. Esses eram a garantia de que outros continuassem no terreno, pregando o evangelho.

R. - A formação que eles recebiam era muito casuística, com o que se chama as "questione disputatae", as questões disputadas. Os jesuítas utilizaram esse método, mas houve outros factores.

Confúcio era um mestre venerado e admirado por todos. E o culto dos mortos estava de tal modo enraizado nas tradições e na vida das populações que não era possível alguém desligar-se disso.

Estes foram os pontos de discórdia entre os jesuítas e os franciscanos e dominicanos: estes viram idolatria na veneração a Confúcio e no culto dos mortos, acusando os jesuítas de tolerar a idolatria. Os jesuítas argumentavam que essas práticas não tinham um carácter religioso. Este foi o choque que veio a dar a controvérsia dos ritos chineses, que durou séculos, que pôs em confronto o Papa e o imperador da China, os jesuítas e as duas outras ordens religiosas, vários príncipes europeus, e acabou por determinar a agonia e a morte da missão na China.

O imperador exigiu aos missionários o compromisso de que não obrigariam os cristãos a desligarem-se da sua cultura e os missionários viram-se numa situação dramática: se obedecessem ao Papa, teriam que deixar a China, se obedecessem ao imperador estavam em contradição com o Papa. Isso criou uma tragédia, durou séculos e foi [o Papa] Pio XII [1939-58] que veio dar razão aos jesuítas. Mas já a missão da China estava desfeita há séculos...

R. - O primeiro grande confronto é o que se designa por processo de Nanquim, que decorre entre 1615 e 1619, no Tribunal dos Ritos de Nanquim, e tem por objectivo demonstrar que a religião cristã não respeita e reprova as tradições culturais chinesas.

As acusações eram que os missionários aconselhavam a não praticar o culto dos mortos e a não venerar Confúcio, que tinham reuniões nocturnas, proibidas por lei, que tentavam rebelar-se contra o poder político, que as cruzes eram elementos para servir de reconhecimento, que a confissão era a maneira de transmitir segredos. O que significa que, ao fim de 30 anos de missionação, as duas culturas continuavam com um grande fosso entre elas.

"Ásia Extrema", Crónica de Um Encontro Místico e Cultural

Por ANTÓNIO MARUJO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

No meio de manuscritos antigos, Horácio Peixoto Araújo descobriu uma obra (quase) desconhecida: a "Ásia Extrema", do padre jesuíta António de Gouveia. O texto é a mais extensa crónica do encontro entre o Ocidente cristão e a China.

R. - É uma crónica da missão da China, que introduz elementos de literatura espiritual e de literatura de viagens. O autor integra na "Ásia Extrema" o único relato que existe em português da viagem do jesuíta Bento de Góis, em busca do Cataio e do Preste João.

Há relatos extremamente interessantes: a viagem de um jesuíta italiano e do primeiro jesuíta português a entrar na China, António de Almeida, companheiro de Matteo Ricci. Há uma viagem que os dois - Almeida e Michele Ruggieri - fazem pelo interior da China e que é contada com muita atenção. Gouveia transcreve aqui o relato dessa viagem fluvial, feito por António de Almeida, que conta o que vai vendo nas margens, o que se passa na embarcação, os instrumentos e técnicas utilizadas para a pesca...

R. - Os jesuítas tinham o hábito de fazer um relatório anual de todas as missões em que trabalhavam - China, Japão, Vietname, Brasil -, chamado "cartas ânuas", enviadas ao [superior] geral, em Roma. Assim, ficámos com documentação excelente sobre este primeiro encontro entre o Ocidente e o Oriente. Neste primeiro século da missão, as cartas estão quase todas em português. É um manancial espantoso de informação em língua portuguesa.

R. - Durante esse século, o número de portugueses foi sempre maior que o dos estrangeiros. Durante muito tempo, a missão era apoiada sempre a partir de Macau, não só em recursos humanos, como em recursos materiais. Quando estavam doentes, curavam-se no Colégio de Macau, quando precisavam de dinheiro pediam apoio a Macau. Gouveia, em várias ocasiões, elogia os moradores de Macau pela generosidade com que eles acudiam à missão da China.

R. - Havia pouca informação sobre a China. A "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, de 1614, tinha também muita fantasia, incluindo a sua utopia da China. Havia as cartas dos cativos de Cantão - Vasco Calvo e Cristóvão Vieira -, que tinham estado na prisão e conseguiram fazer sair cartas. E pouco mais. A China continuava um reino fechado e havia pena de morte para qualquer estrangeiro que fosse encontrado sem autorização.

Os jesuítas tentaram, com grande diplomacia, quebrar essa fronteira, e obter autorizações de residência, inicialmente muito precárias. Da parte dos mandarins, havia uma grande admiração por estes letrados do Ocidente que sabiam falar e escrever chinês e que se adaptavam com grande facilidade aos cerimoniais da sociedade chinesa.

R. - Desde o início, como acentua Ricci, tentou criar-se uma ponte entre o cristianismo e o confucionismo. Confúcio tinha uma série de preceitos morais que eram muito queridos na sociedade chinesa. Os jesuítas perceberam isso e tentaram criar pontes entre as normas morais do cristianismo e as do confucionismo, para mostrar que havia uma aproximação possível.

Também desde o início, os jesuítas admiram o Império Chinês. É um império enormíssimo, muito bem governado, com uma justiça que funciona. Na Europa tínhamos a imprensa desde Gutemberg, mas quando os jesuítas chegam à China o livro impresso era uma coisa corrente desde há séculos.

R. - Sim. Esta experiência dos primeiros 50 anos de missão em que os jesuítas estiveram sozinhos na China constituiu, a meu ver, a experiência de inculturação e de intercâmbio entre duas culturas opostas mais bem conseguida ao longo da história. Eles conseguiram uma aproximação enorme, traduziram imensas obras chinesas para o latim e línguas europeias, e traduziram para chinês obras europeias de filosofia, moral cristã e catecismos. Claro que isto obedecia a uma grande estratégia, que tinha como finalidade a pregação do evangelho [e que] determina que antes de entrar na China é preciso saber chinês e conhecer os rituais da sociedade, ligados às visitas, ao Ano Novo, às exéquias, às cerimónias de aniversário.

Essa estratégia vai-se aprofundando. A certa altura, apercebem-se que os chineses apreciam a astronomia e a matemática. Os missionários que são formados nessa área ganham a amizade do imperador e, através dela, a condescendência para pregar o evangelho. Vários jesuítas foram directores do observatório astronómico de Pequim, o Tribunal das Matemáticas, o que lhes dava uma importância grande junto do imperador. Esses eram a garantia de que outros continuassem no terreno, pregando o evangelho.

R. - A formação que eles recebiam era muito casuística, com o que se chama as "questione disputatae", as questões disputadas. Os jesuítas utilizaram esse método, mas houve outros factores.

Confúcio era um mestre venerado e admirado por todos. E o culto dos mortos estava de tal modo enraizado nas tradições e na vida das populações que não era possível alguém desligar-se disso.

Estes foram os pontos de discórdia entre os jesuítas e os franciscanos e dominicanos: estes viram idolatria na veneração a Confúcio e no culto dos mortos, acusando os jesuítas de tolerar a idolatria. Os jesuítas argumentavam que essas práticas não tinham um carácter religioso. Este foi o choque que veio a dar a controvérsia dos ritos chineses, que durou séculos, que pôs em confronto o Papa e o imperador da China, os jesuítas e as duas outras ordens religiosas, vários príncipes europeus, e acabou por determinar a agonia e a morte da missão na China.

O imperador exigiu aos missionários o compromisso de que não obrigariam os cristãos a desligarem-se da sua cultura e os missionários viram-se numa situação dramática: se obedecessem ao Papa, teriam que deixar a China, se obedecessem ao imperador estavam em contradição com o Papa. Isso criou uma tragédia, durou séculos e foi [o Papa] Pio XII [1939-58] que veio dar razão aos jesuítas. Mas já a missão da China estava desfeita há séculos...

R. - O primeiro grande confronto é o que se designa por processo de Nanquim, que decorre entre 1615 e 1619, no Tribunal dos Ritos de Nanquim, e tem por objectivo demonstrar que a religião cristã não respeita e reprova as tradições culturais chinesas.

As acusações eram que os missionários aconselhavam a não praticar o culto dos mortos e a não venerar Confúcio, que tinham reuniões nocturnas, proibidas por lei, que tentavam rebelar-se contra o poder político, que as cruzes eram elementos para servir de reconhecimento, que a confissão era a maneira de transmitir segredos. O que significa que, ao fim de 30 anos de missionação, as duas culturas continuavam com um grande fosso entre elas.

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