Não há um discurso sobre música em Portugal

13-02-2002
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Não Há Um Discurso Sobre Música em Portugal

Por CRISTINA FERNANDES E TERESA CASCUDO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Sonha com a expressão fulgurante daquele momento miraculoso que dá sentido à música, mas no momento de analisar o meio cultural, as críticas são terrenas, lúcidas e certeiras. António Pinho Vargas conversou com o Mil Folhas nas vésperas da retrospectiva que a Culturgest dedica à sua obra.

"Uma peça musical é apenas uma peça musical. Não transporta consigo o peso do futuro da humanidade, nem o seu destino. À parte isso, 'tem todos os sonhos do mundo'." A frase foi escrita por António Pinho Vargas em 1996, a propósito das "Oito Canções de António Ramos Rosa", em estreia no São Carlos, mas poderia continuar a aplicar-se à sua actual atitude criativa. Conhecido do grande público sobretudo como músico de jazz, é também uma das personalidades centrais da música contemporânea portuguesa, campo onde a sua merecida notoriedade deve muito à comunicabilidade imediata das suas obras e à sua atitude descomplexada perante dogmas, modas ou vanguardas. Para além das suas preocupações técnicas e estéticas, Pinho Vargas continua a perseguir "a busca de sentido", "aquele momento quase miraculoso que escapa a qualquer análise". É também um observador crítico e atento do meio musical que o rodeia, com opiniões claras e uma postura interventiva sempre que as situações o justificam. O ano 2002 coincide com os 50 anos de "uma vida intensa" e uma obra valiosa que será passada em revista, na sua quase totalidade, na Culturgest a partir do próximo dia 16, num festival em co-produção com o Teatro Nacional de São Carlos.

P- O ciclo que a Culturgest lhe vai dedicar constitui uma oportunidade rara de ver quase toda a sua obra interpretada. Será também um inevitável momento de balanço?

R- Por um lado, devo agradecer à Culturgest este convite. Tenho muita admiração pela coragem da sua programação, e acho que esta iniciativa é relativamente arriscada. Em Portugal não é muito habitual a organização deste tipo de ciclos retrospectivos dedicados a compositores. Por outro lado, estou muito contente. Esta possibilidade dá sentido aos últimos quinze anos da minha vida. Sou um homem de sorte pela vida tão intensa que tenho vivido: o meu percurso tem sido quase linear, mas também teve rupturas. Nos anos 80 era muito conhecido como músico de jazz e essa foi uma actividade profissional que ultrapassou a mera experiência de juventude: foram vinte anos muito importantes. A partir de 1995, decidi abandonar a composição no campo do jazz, embora o continue a tocar como pianista.

P- É um abandono definitivo?

R- Não posso dizer que seja definitivo, mas seis anos sem sentir a necessidade de compor nessa área parecem-me bastante significativos. A tocar continuarei sempre...

P- Quais são as suas expectativas perante a oportunidade de escutar toda a sua obra?

R- A perspectiva da "obra completa" - ou quase completa, porque falta uma ou outra peça - permite traçar pontos de vista, descobrir relações e filiações entre as peças, perceber cortes e mudanças. As datas de composição são importantes, e acho que a oportunidade de ouvir várias obras seguidas vai permitir entender algumas coisas do meu percurso. Por exemplo, que entre 1993 e 1998 estive muito concentrado em coisas relacionadas com uma expressão no limite da inexistência, próximas da linha ténue, da filigrana quase invisível. Isso correspondeu a uma colocação da expressão no factor melódico de forma muito forte, o que, numa fase posterior, foi substituído por uma pujança rítmica que antes quase não existia. Comparar peças vai permitir que se organize um discurso e que se perceba um percurso, com as suas hesitações, mas um percurso. Antes deste ciclo, tive muito raramente a oportunidade de escutar em concerto duas peças minhas seguidas. Este ciclo vai permitir estabelecer comparações impossíveis de outra maneira, já que, por exemplo, no que diz respeito à minha música orquestral, não existem sequer gravações.

P- Os CDs têm, portanto, uma função crucial na difusão da música contemporânea...

R- O suporte discográfico é fundamental. Uma das grandes disfunções da política cultural desenvolvida pelo Estado nos últimos anos é a falta de apoio à gravação, derivada de uma falta de visão da sua função na difusão da música contemporânea. Nesse sentido, gastar orçamentos elevadíssimos em determinadas produções - como as minhas duas óperas, que custaram respectivamente 25 mil e 50 mil contos - e ninguém se lembrar de as gravar é uma espécie de desperdício que corresponde a uma visão da cultura apenas como fogacho eventual que eu não partilho. A música deve subsistir em forma de partitura, mas hoje em dia, é fundamental também um suporte como o CD - é o que me permite conhecer a música dos compositores de outros países. O facto de ser português não serve de explicação para aceitar esta situação indescritível. Luto como posso contra isso e acho que os meus colegas deveriam fazer o mesmo.

P-Que critérios presidiram à selecção dos intérpretes para este ciclo?

R- Os intérpretes são fundamentalmente os mesmos, com uma ou outra excepção, que fizeram a estreia das obras. Em relação a "Os Dias Levantados" aproveito para dizer que há algumas diferenças pelo facto de não ser uma versão cénica. Alguma divisão excessiva do coro por necessidades de cena vai deixar de existir. As peças de música de câmara estarão a cargo de pessoas que interpretam habitualmente a minha música. Nalguns casos coincidem também com as que as estrearam como no caso do Rui Taveira e do Paulo Ferreira. O Miguel Henriques, que fez a primeira audição de "Holderlinos", vai agora tocar pela primeira vez o "Mirrois". A Orquestra Nacional do Porto interpretou muito bem o "Acting Out", sob a a direcção de Martin André, com quem estabeleci uma espécie de cumplicidade. Há também o Drumming, que estreou os "Estudos e Interlúdios", para percussão. Um dos concertos com peças de música de câmara para várias formações será interpretado por um grupo ao qual estou ligado, a Orquestrutópica, e haverá ainda um concerto de jazz, com os músicos com quem tenho tocado habitualmente nos últimos anos: o José Nogueira, o Rui Júnior e a Maria João.

P- Qual a situação da Orquestrutópica, quase um ano depois da sua criação?

R- A Orquestrutópica foi um projecto que teve um impacto bastante positivo junto da comunidade musical. Infelizmente, não teve subsídio do IPAE para 2002. Recorremos da primeira decisão, mas, mesmo assim, soubemos recentemente que não foi concedido. É uma decisão escandalosa, que ilustra a colossal estupidez que actualmente preside às instituições da vida cultural portuguesa, nomeadamente as ligadas ao Estado. Vamos tomar uma posição colectiva porque achamos a decisão inaceitável. Não me quero antecipar, esta é a minha posição individual, a outra será de todos.

P-Como descreveria a situação actual da música contemporânea portuguesa?

R- Nos últimos quinze anos, percebeu-se a necessidade social das encomendas. Há uma política de encomendas que atinge a todos os compositores. No entanto, normalmente isto permite apenas que as peças sejam tocadas uma única vez, frequentemente com dificuldades de diversa ordem: poucos ensaios, programas pouco coerentes, músicos que não estão habituados a tocar repertório contemporâneo. Em geral, o resultado final não é o melhor, o que faz com que o público seja confrontado com realizações insuficientes das peças que, no entanto, se confundem com as próprias obras. Nunca se assumem como apenas uma interpretação. Isto é um perigo, particularmente para os jovens compositores. Ainda não se percebeu a necessidade da segunda audição e do trabalho aprofundado sobre as peças contemporâneas.

P- Embora a sua obra seja bastante bem recebida pelo público, acha que a ausência de um discurso em torno da composição contemporânea em Portugal dificulta a recepção?

R- Talvez por causa da sinuosidades do meu percurso anterior, pelo facto de ter sido bastante conhecido como músico de jazz, a minha obra é bastante bem recebida pelo público.

P- É capaz de ter também a ver com o seu estilo...

R- Sim, também tem a ver com isso, mas voltando ao assunto da inexistência de um discurso sobre a música em Portugal, acho que, tirando o trabalho de alguns jornalistas, a situação se aproxima do zero. As escassas tentativas editoriais neste campo são intermitentes ou efémeras. Tendo em conta a existência de uma vida musical relativamente intensa tanto em Lisboa como no Porto - há concertos esgotados, as escolas e as universidades estão cheias de alunos de música -, é um sintoma estranho e um fenómeno paradoxal que não exista nenhuma publicação regular. O facto de não haver espaços onde os compositores possam defender os seus pontos de vista é uma lacuna grave.

P-Mas é ensinado aos compositores o falar sobre a sua música?

R- A importância dada à análise musical na formação dos compositores tem feito com que se perca um pouco o norte de qual deve ser o objectivo dos discursos sobre a música. Existe uma espécie de comunidade da análise musical, que produz textos impenetráveis transformados num fim em si, que não tem reflexos no seu fim último, que devia ser pedagógico. Mas o problema em Portugal é que não há nada. Eu próprio sinto a necessidade de falar sobre música. Agora estou a rever provas de um livro...

P- É uma obra que escreveu recentemente ou uma compilação de textos anteriores?

R- Um misto das duas coisas. Tem sete ensaios inéditos, todos os textos sobre as minhas obras para notas de programa, três críticas que escrevi no PÚBLICO e dois textos publicados, um na "Colóquio Artes" e outro na revista "Arte Musical". Contém também uma selecção de entrevistas, realizadas entre 1983 e 2001 - em relação às quais tenho uma coluna ao lado onde faço comentários sobre o que disse e pensava naquela altura - e um capítulo com 30 histórias vividas entre 1983 e 1960, mas contadas já assim numa zona em que a memória se confunde com a invenção!

P- O seu percurso como compositor vive actualmente um momento de continuidade ou de mudança?

R- Não me sinto numa fase de mudança. Nos últimos dois anos, a noção de 'estudo' tem sido um dos elementos presentes na minha obra, o que se confirma em peças como os "Estudos e Interlúdios", para percussão, de 2000, e há vários aspectos que me têm preocupado. Em primeiro lugar, a tentativa de usar a pulsação regular de uma forma interrogativa, como qualquer coisa que deve ser usada, mas cujo uso deve ser questionado, não apenas recusado liminarmente. Em segundo lugar, a procura de uma expressão despojada. O terceiro elemento, mais difícil de explicar, tem a ver com a procura de um momento forte de significação na minha música. Um dos compositores que mais admiro é o húngaro Gyorgy Kurtág, que só começou a ser conhecido tardiamente. É um génio muito particular ao qual me sinto ligado de várias maneiras.

P- Quais?

R- Primeiro, é muito indisciplinado! [risos] Segundo, gosta de usar formas pequenas, ínfimas. Sinto-me muito ligado a essa expressão fulgurante, mas de curta duração. Nalguns momentos, com meios aparentemente muito simples, Kurtág consegue uma espécie de pujança de significação. Nunca mais ninguém vai esquecer aquele momento de música. É isto que, na minha opinião, está para além de qualquer explicação analítica. Aquela música faz-nos pôr em questão a maneira como temos andado a falar de música nos últimos anos. Há um momento ali quase miraculoso de força, de sentido, de capacidade de nos reconciliar com a música, sem que isso signifique propriamente que temos de voltar a ouvir Mozart ou Beethoven. Ou seja, o problema não é o sistema tonal. Às vezes digo aos meus alunos que se em cada peça houver aquele momento mágico em que a pessoa quase sente necessidade de se levantar da cadeira e dizer "o que é que aconteceu aqui?", então já valeu a pena. O que me preocupa é a busca do sentido. Eu não lhe queria chamar transcendental se não ainda me classificam como místico!

P- O ensino ocupa uma parte fundamental da sua actividade. Qual é a sua postura em relação à transmissão do "métier" de compositor?

R- Recuso a figura do discípulo. Não baseio o ensino na análise e explicação dos meus métodos enquanto compositor. Procuro falar com os meus alunos sobre problemas composicionais e, portanto, enquanto estou a discutir com eles, também estou a discutir comigo. Concordo plenamente com o compositor britânico Brian Ferneyhough, que diz que o professor de composição deve abdicar de qualquer preconceito estético e estilístico antes de começar a trabalhar com um aluno, sob pena de este passar a ser premiado por imitação exemplar.

Não Há Um Discurso Sobre Música em Portugal

Por CRISTINA FERNANDES E TERESA CASCUDO

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Sonha com a expressão fulgurante daquele momento miraculoso que dá sentido à música, mas no momento de analisar o meio cultural, as críticas são terrenas, lúcidas e certeiras. António Pinho Vargas conversou com o Mil Folhas nas vésperas da retrospectiva que a Culturgest dedica à sua obra.

"Uma peça musical é apenas uma peça musical. Não transporta consigo o peso do futuro da humanidade, nem o seu destino. À parte isso, 'tem todos os sonhos do mundo'." A frase foi escrita por António Pinho Vargas em 1996, a propósito das "Oito Canções de António Ramos Rosa", em estreia no São Carlos, mas poderia continuar a aplicar-se à sua actual atitude criativa. Conhecido do grande público sobretudo como músico de jazz, é também uma das personalidades centrais da música contemporânea portuguesa, campo onde a sua merecida notoriedade deve muito à comunicabilidade imediata das suas obras e à sua atitude descomplexada perante dogmas, modas ou vanguardas. Para além das suas preocupações técnicas e estéticas, Pinho Vargas continua a perseguir "a busca de sentido", "aquele momento quase miraculoso que escapa a qualquer análise". É também um observador crítico e atento do meio musical que o rodeia, com opiniões claras e uma postura interventiva sempre que as situações o justificam. O ano 2002 coincide com os 50 anos de "uma vida intensa" e uma obra valiosa que será passada em revista, na sua quase totalidade, na Culturgest a partir do próximo dia 16, num festival em co-produção com o Teatro Nacional de São Carlos.

P- O ciclo que a Culturgest lhe vai dedicar constitui uma oportunidade rara de ver quase toda a sua obra interpretada. Será também um inevitável momento de balanço?

R- Por um lado, devo agradecer à Culturgest este convite. Tenho muita admiração pela coragem da sua programação, e acho que esta iniciativa é relativamente arriscada. Em Portugal não é muito habitual a organização deste tipo de ciclos retrospectivos dedicados a compositores. Por outro lado, estou muito contente. Esta possibilidade dá sentido aos últimos quinze anos da minha vida. Sou um homem de sorte pela vida tão intensa que tenho vivido: o meu percurso tem sido quase linear, mas também teve rupturas. Nos anos 80 era muito conhecido como músico de jazz e essa foi uma actividade profissional que ultrapassou a mera experiência de juventude: foram vinte anos muito importantes. A partir de 1995, decidi abandonar a composição no campo do jazz, embora o continue a tocar como pianista.

P- É um abandono definitivo?

R- Não posso dizer que seja definitivo, mas seis anos sem sentir a necessidade de compor nessa área parecem-me bastante significativos. A tocar continuarei sempre...

P- Quais são as suas expectativas perante a oportunidade de escutar toda a sua obra?

R- A perspectiva da "obra completa" - ou quase completa, porque falta uma ou outra peça - permite traçar pontos de vista, descobrir relações e filiações entre as peças, perceber cortes e mudanças. As datas de composição são importantes, e acho que a oportunidade de ouvir várias obras seguidas vai permitir entender algumas coisas do meu percurso. Por exemplo, que entre 1993 e 1998 estive muito concentrado em coisas relacionadas com uma expressão no limite da inexistência, próximas da linha ténue, da filigrana quase invisível. Isso correspondeu a uma colocação da expressão no factor melódico de forma muito forte, o que, numa fase posterior, foi substituído por uma pujança rítmica que antes quase não existia. Comparar peças vai permitir que se organize um discurso e que se perceba um percurso, com as suas hesitações, mas um percurso. Antes deste ciclo, tive muito raramente a oportunidade de escutar em concerto duas peças minhas seguidas. Este ciclo vai permitir estabelecer comparações impossíveis de outra maneira, já que, por exemplo, no que diz respeito à minha música orquestral, não existem sequer gravações.

P- Os CDs têm, portanto, uma função crucial na difusão da música contemporânea...

R- O suporte discográfico é fundamental. Uma das grandes disfunções da política cultural desenvolvida pelo Estado nos últimos anos é a falta de apoio à gravação, derivada de uma falta de visão da sua função na difusão da música contemporânea. Nesse sentido, gastar orçamentos elevadíssimos em determinadas produções - como as minhas duas óperas, que custaram respectivamente 25 mil e 50 mil contos - e ninguém se lembrar de as gravar é uma espécie de desperdício que corresponde a uma visão da cultura apenas como fogacho eventual que eu não partilho. A música deve subsistir em forma de partitura, mas hoje em dia, é fundamental também um suporte como o CD - é o que me permite conhecer a música dos compositores de outros países. O facto de ser português não serve de explicação para aceitar esta situação indescritível. Luto como posso contra isso e acho que os meus colegas deveriam fazer o mesmo.

P-Que critérios presidiram à selecção dos intérpretes para este ciclo?

R- Os intérpretes são fundamentalmente os mesmos, com uma ou outra excepção, que fizeram a estreia das obras. Em relação a "Os Dias Levantados" aproveito para dizer que há algumas diferenças pelo facto de não ser uma versão cénica. Alguma divisão excessiva do coro por necessidades de cena vai deixar de existir. As peças de música de câmara estarão a cargo de pessoas que interpretam habitualmente a minha música. Nalguns casos coincidem também com as que as estrearam como no caso do Rui Taveira e do Paulo Ferreira. O Miguel Henriques, que fez a primeira audição de "Holderlinos", vai agora tocar pela primeira vez o "Mirrois". A Orquestra Nacional do Porto interpretou muito bem o "Acting Out", sob a a direcção de Martin André, com quem estabeleci uma espécie de cumplicidade. Há também o Drumming, que estreou os "Estudos e Interlúdios", para percussão. Um dos concertos com peças de música de câmara para várias formações será interpretado por um grupo ao qual estou ligado, a Orquestrutópica, e haverá ainda um concerto de jazz, com os músicos com quem tenho tocado habitualmente nos últimos anos: o José Nogueira, o Rui Júnior e a Maria João.

P- Qual a situação da Orquestrutópica, quase um ano depois da sua criação?

R- A Orquestrutópica foi um projecto que teve um impacto bastante positivo junto da comunidade musical. Infelizmente, não teve subsídio do IPAE para 2002. Recorremos da primeira decisão, mas, mesmo assim, soubemos recentemente que não foi concedido. É uma decisão escandalosa, que ilustra a colossal estupidez que actualmente preside às instituições da vida cultural portuguesa, nomeadamente as ligadas ao Estado. Vamos tomar uma posição colectiva porque achamos a decisão inaceitável. Não me quero antecipar, esta é a minha posição individual, a outra será de todos.

P-Como descreveria a situação actual da música contemporânea portuguesa?

R- Nos últimos quinze anos, percebeu-se a necessidade social das encomendas. Há uma política de encomendas que atinge a todos os compositores. No entanto, normalmente isto permite apenas que as peças sejam tocadas uma única vez, frequentemente com dificuldades de diversa ordem: poucos ensaios, programas pouco coerentes, músicos que não estão habituados a tocar repertório contemporâneo. Em geral, o resultado final não é o melhor, o que faz com que o público seja confrontado com realizações insuficientes das peças que, no entanto, se confundem com as próprias obras. Nunca se assumem como apenas uma interpretação. Isto é um perigo, particularmente para os jovens compositores. Ainda não se percebeu a necessidade da segunda audição e do trabalho aprofundado sobre as peças contemporâneas.

P- Embora a sua obra seja bastante bem recebida pelo público, acha que a ausência de um discurso em torno da composição contemporânea em Portugal dificulta a recepção?

R- Talvez por causa da sinuosidades do meu percurso anterior, pelo facto de ter sido bastante conhecido como músico de jazz, a minha obra é bastante bem recebida pelo público.

P- É capaz de ter também a ver com o seu estilo...

R- Sim, também tem a ver com isso, mas voltando ao assunto da inexistência de um discurso sobre a música em Portugal, acho que, tirando o trabalho de alguns jornalistas, a situação se aproxima do zero. As escassas tentativas editoriais neste campo são intermitentes ou efémeras. Tendo em conta a existência de uma vida musical relativamente intensa tanto em Lisboa como no Porto - há concertos esgotados, as escolas e as universidades estão cheias de alunos de música -, é um sintoma estranho e um fenómeno paradoxal que não exista nenhuma publicação regular. O facto de não haver espaços onde os compositores possam defender os seus pontos de vista é uma lacuna grave.

P-Mas é ensinado aos compositores o falar sobre a sua música?

R- A importância dada à análise musical na formação dos compositores tem feito com que se perca um pouco o norte de qual deve ser o objectivo dos discursos sobre a música. Existe uma espécie de comunidade da análise musical, que produz textos impenetráveis transformados num fim em si, que não tem reflexos no seu fim último, que devia ser pedagógico. Mas o problema em Portugal é que não há nada. Eu próprio sinto a necessidade de falar sobre música. Agora estou a rever provas de um livro...

P- É uma obra que escreveu recentemente ou uma compilação de textos anteriores?

R- Um misto das duas coisas. Tem sete ensaios inéditos, todos os textos sobre as minhas obras para notas de programa, três críticas que escrevi no PÚBLICO e dois textos publicados, um na "Colóquio Artes" e outro na revista "Arte Musical". Contém também uma selecção de entrevistas, realizadas entre 1983 e 2001 - em relação às quais tenho uma coluna ao lado onde faço comentários sobre o que disse e pensava naquela altura - e um capítulo com 30 histórias vividas entre 1983 e 1960, mas contadas já assim numa zona em que a memória se confunde com a invenção!

P- O seu percurso como compositor vive actualmente um momento de continuidade ou de mudança?

R- Não me sinto numa fase de mudança. Nos últimos dois anos, a noção de 'estudo' tem sido um dos elementos presentes na minha obra, o que se confirma em peças como os "Estudos e Interlúdios", para percussão, de 2000, e há vários aspectos que me têm preocupado. Em primeiro lugar, a tentativa de usar a pulsação regular de uma forma interrogativa, como qualquer coisa que deve ser usada, mas cujo uso deve ser questionado, não apenas recusado liminarmente. Em segundo lugar, a procura de uma expressão despojada. O terceiro elemento, mais difícil de explicar, tem a ver com a procura de um momento forte de significação na minha música. Um dos compositores que mais admiro é o húngaro Gyorgy Kurtág, que só começou a ser conhecido tardiamente. É um génio muito particular ao qual me sinto ligado de várias maneiras.

P- Quais?

R- Primeiro, é muito indisciplinado! [risos] Segundo, gosta de usar formas pequenas, ínfimas. Sinto-me muito ligado a essa expressão fulgurante, mas de curta duração. Nalguns momentos, com meios aparentemente muito simples, Kurtág consegue uma espécie de pujança de significação. Nunca mais ninguém vai esquecer aquele momento de música. É isto que, na minha opinião, está para além de qualquer explicação analítica. Aquela música faz-nos pôr em questão a maneira como temos andado a falar de música nos últimos anos. Há um momento ali quase miraculoso de força, de sentido, de capacidade de nos reconciliar com a música, sem que isso signifique propriamente que temos de voltar a ouvir Mozart ou Beethoven. Ou seja, o problema não é o sistema tonal. Às vezes digo aos meus alunos que se em cada peça houver aquele momento mágico em que a pessoa quase sente necessidade de se levantar da cadeira e dizer "o que é que aconteceu aqui?", então já valeu a pena. O que me preocupa é a busca do sentido. Eu não lhe queria chamar transcendental se não ainda me classificam como místico!

P- O ensino ocupa uma parte fundamental da sua actividade. Qual é a sua postura em relação à transmissão do "métier" de compositor?

R- Recuso a figura do discípulo. Não baseio o ensino na análise e explicação dos meus métodos enquanto compositor. Procuro falar com os meus alunos sobre problemas composicionais e, portanto, enquanto estou a discutir com eles, também estou a discutir comigo. Concordo plenamente com o compositor britânico Brian Ferneyhough, que diz que o professor de composição deve abdicar de qualquer preconceito estético e estilístico antes de começar a trabalhar com um aluno, sob pena de este passar a ser premiado por imitação exemplar.

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