Uma oratória sobre a traição e a culpa

23-02-2002
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Uma Oratória Sobre a Traição e a Culpa

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Autor das óperas "Édipo, Tragédia do Saber" e "Os Dias Levantados", encomendadas respectivamente pela Culturgest e pela Expo 98 (Festival dos Cem Dias), António Pinho Vargas não tem entre os seus planos mais próximos uma nova incursão naquele que é talvez o mais ambicioso dos géneros musicais. Permanece, todavia, o fascínio pelo texto, pelo seu potencial dramático e múltiplos níveis de sentido.

P- Pensa voltar a abordar o género da ópera?

R-A curto prazo não, mas tenho o projecto de escrever uma oratória, aliás já estou a trabalhar nela. Uma peça para coro e orquestra com texto sacro em latim, sem solistas. Como não sou religioso - apesar daquela conversa da transcendência! -, escolhi como tema o episódio do Judas nos quatro Evangelhos, onde é tratado de forma muito desigual. A questão do Judas é muito importante para mim como assunto, na medida em que se trata de uma história de traição, culpa e finalmente suicídio. Está em jogo uma situação onde era preciso que alguém traísse para que se cumprisse o desígnio divino. Este paradoxo intenso e que sacrifica um homem sempre me incomodou barbaramente. Uma das coisas que mais me angustia no Antigo Testamento é a ideia do Deus castigador. Houve alguma polémica em relação às minhas óperas - se eram óperas, se eram oratórias, cantatas ou outra coisa qualquer... Neste caso não vai ser uma ópera, mas uma obra sobre um assunto que espero poder tratar dramaticamente.

P- Porque é que optou pelo latim?

R- Começar a trabalhar com texto acelerou a minha libertação extraordinariamente. O texto está perante nós, pré-existente, como significado múltiplo. Aquelas palavras querem dizer qualquer coisa. O som delas joga em dois níveis: o da significação literal e aquela sucessão de palavras em particular, que na poesia é diferente da linguagem quotidiana. A ligação da música com as palavras provoca uma mudança de significado. Uma determinada sílaba, mesmo que considerada exclusivamente do ponto de vista fonético, associada a uma certa nota, a um certo registo de um cantor, é outra coisa. A partir das "Canções de António Ramos Rosa" (1996), a minha vontade de trabalhar com o texto no seu significado tem crescido muito. Estou a pensar usar o texto em latim por dois motivos. Por um lado, o seu fortíssimo peso na tradição. Por outro, para colocar fora do caminho uma coisa que me incomoda ligeiramente - o facto de haver tão pouca música cantada em português. As pessoas não têm pontos de referência. Ouvimos cantar em português uma vez por ano ou nem isso. Em contrapartida ouvimos cantar umas 20 vezes em italiano, 34 em alemão e eventualmente duas em russo! Stravinski fez o "Oedipus Rex" em latim para colocar o ênfase numa língua morta, uma língua simbólica, de grande peso cultural, mas não de uso quotidiano. Queria transformar aqueles personagens numa espécie de seres inexistentes, em arquétipos. Querer fazer uma peça dramática e usar o latim pode parecer uma contradição, mas por outro lado a música é obrigada a ter muito mais força. O texto latino vai-se perceber daquela forma que eu percebia Monteverdi quando era miúdo - ou seja, não percebia nada, descortinava uma palavra aqui e ali, mas a música lá me conduzia.

C.F. e T.C.

Uma Oratória Sobre a Traição e a Culpa

Sábado, 9 de Fevereiro de 2002

Autor das óperas "Édipo, Tragédia do Saber" e "Os Dias Levantados", encomendadas respectivamente pela Culturgest e pela Expo 98 (Festival dos Cem Dias), António Pinho Vargas não tem entre os seus planos mais próximos uma nova incursão naquele que é talvez o mais ambicioso dos géneros musicais. Permanece, todavia, o fascínio pelo texto, pelo seu potencial dramático e múltiplos níveis de sentido.

P- Pensa voltar a abordar o género da ópera?

R-A curto prazo não, mas tenho o projecto de escrever uma oratória, aliás já estou a trabalhar nela. Uma peça para coro e orquestra com texto sacro em latim, sem solistas. Como não sou religioso - apesar daquela conversa da transcendência! -, escolhi como tema o episódio do Judas nos quatro Evangelhos, onde é tratado de forma muito desigual. A questão do Judas é muito importante para mim como assunto, na medida em que se trata de uma história de traição, culpa e finalmente suicídio. Está em jogo uma situação onde era preciso que alguém traísse para que se cumprisse o desígnio divino. Este paradoxo intenso e que sacrifica um homem sempre me incomodou barbaramente. Uma das coisas que mais me angustia no Antigo Testamento é a ideia do Deus castigador. Houve alguma polémica em relação às minhas óperas - se eram óperas, se eram oratórias, cantatas ou outra coisa qualquer... Neste caso não vai ser uma ópera, mas uma obra sobre um assunto que espero poder tratar dramaticamente.

P- Porque é que optou pelo latim?

R- Começar a trabalhar com texto acelerou a minha libertação extraordinariamente. O texto está perante nós, pré-existente, como significado múltiplo. Aquelas palavras querem dizer qualquer coisa. O som delas joga em dois níveis: o da significação literal e aquela sucessão de palavras em particular, que na poesia é diferente da linguagem quotidiana. A ligação da música com as palavras provoca uma mudança de significado. Uma determinada sílaba, mesmo que considerada exclusivamente do ponto de vista fonético, associada a uma certa nota, a um certo registo de um cantor, é outra coisa. A partir das "Canções de António Ramos Rosa" (1996), a minha vontade de trabalhar com o texto no seu significado tem crescido muito. Estou a pensar usar o texto em latim por dois motivos. Por um lado, o seu fortíssimo peso na tradição. Por outro, para colocar fora do caminho uma coisa que me incomoda ligeiramente - o facto de haver tão pouca música cantada em português. As pessoas não têm pontos de referência. Ouvimos cantar em português uma vez por ano ou nem isso. Em contrapartida ouvimos cantar umas 20 vezes em italiano, 34 em alemão e eventualmente duas em russo! Stravinski fez o "Oedipus Rex" em latim para colocar o ênfase numa língua morta, uma língua simbólica, de grande peso cultural, mas não de uso quotidiano. Queria transformar aqueles personagens numa espécie de seres inexistentes, em arquétipos. Querer fazer uma peça dramática e usar o latim pode parecer uma contradição, mas por outro lado a música é obrigada a ter muito mais força. O texto latino vai-se perceber daquela forma que eu percebia Monteverdi quando era miúdo - ou seja, não percebia nada, descortinava uma palavra aqui e ali, mas a música lá me conduzia.

C.F. e T.C.

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