DN

26-11-2000
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A visita mereceu uma breve referência do Diário de Notícias, no dia 27 de Outubro, com tom marcadamente irónico sob o título "Fidel, toranja, lagosta e deputados". Já no seu depoimento à revista Visão de 9 de Novembro, são tantas as virtudes do regime cubano que Almeida Santos enumera que leva a pensar que será necessário começar a sacrificar em Portugal algumas liberdades para ter um melhor serviço de saúde, educação e medalhas nos Jogos Olímpicos.

É compreensível que, para um homem da geração de Almeida Santos, a Revolução Cubana tenha constituído motivo de inspiração na etapa da luta contra a ditadura de Salazar. Foram muitos os que albergaram a esperança de que, a partir daí, se criasse um sistema de maior justiça social e respeito pelas liberdades. Mas, desde Jean-Paul Sartre até ao escritor mexicano Carlos Fuentes, foram-se apercebendo de que tudo não passava de um mito, pois, com o tempo, o regime tornou-se tão repressivo (ou mesmo mais) como o sistema soviético ou de outros países do Leste europeu.

Afirma o presidente da Assembleia da República que "todos os elementos da delegação" ficaram vivamente impressionados com Fidel Castro, pelo que se deduz que existe um consenso em torno desta visita. Mas é difícil imaginar que deputados do Partido Social Democrata, do Partido Popular ou mesmo do Socialista partilhem este grande entusiasmo de Almeida Santos pelo regime cubano.

Segundo a opinião "muito sincera" da segunda figura do Estado português, "não nos pareceu que os cubanos vivessem oprimidos por uma ditadura feroz. E Fidel parece continuar a ter um grande apoio popular". Então, os mais de um milhão de cubanos espalhados pelo mundo devem ser uns "ingratos" que não souberam apreciar todas as vantagens que o seu país lhes oferece e optaram pelo exílio. Só na Secção de Interesses dos Estados Unidos em Havana, estão inscritos mais de 600 mil cubanos para emigrar do país.

Com quantos cidadãos comuns teve Almeida Santos oportunidade de falar livremente para saber se há ou não opressão? Ou limitou-se a seguir o programa oficial e a receber as nove horas de "sedução" do máximo dirigente cubano, que está "apenas" há 41 anos no Poder e não tem a mais pequena intenção de o abandonar? Muito menos depois de receber tantos elogios de um importante político de um país da União Europeia.

A primeira incongruência é que a Assembleia da República de Portugal trate em plano de igualdade a Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba (ANPP). Os 230 deputados portugueses pertencem a diferentes partidos e o seu mandato é fruto do voto popular, voluntário e sem pressões. Ora, os mais de 600 deputados da ANPP saem de uma lista única, em regime de partido único, e com os pioneiros a irem buscar a suas casas os que se esquecem ou se atrasam a votar.

Em Cuba, não ir às urnas significa cair na lista negra do Comité de Defesa da Revolução como elemento apático, desafecto e, no pior dos casos, contra-revolucionário. Por isso, a afluência às urnas se aproxima dos cem por cento (no Iraque é mais ou menos igual...). A ANPP reúne-se dois dias e duas vezes por ano. Presenciei várias sessões: 50 a 60 por cento do tempo é ocupado pelo discurso "sedutor" de Fidel. Todas as votações são por unanimidade, de braço erguido, para que todos possam ver. Não há sequer uma abstenção. Certamente não é a um Parlamento assim que Almeida Santos gostaria de presidir...

Estes mesmos deputados da ANPP, por exemplo, aprovaram uma lei que estabelece penas de 20 anos de prisão para qualquer jornalista cubano que "colabore com os inimigos", ou seja, publique opiniões contra o sistema ou favoráveis ao "imperialismo norte-americano". Quando um amigo do Sindicato de Jornalistas de Portugal exprimiu na altura as suas reservas ao presidente da Unión de Periodistas de Cuba, este respondeu-lhe: "Bom, a lei existe, mas ninguém foi ainda sancionado." Na prática, é como uma espada de Dâmocles.

Os deputados portugueses tiveram tempo de ver os jornais e a televisão para se aperceberem da barragem de propaganda a que está sujeito o povo cubano?

Avistaram-se com alguns representantes de grupos dissidentes, como fizeram António Guterres e Jorge Sampaio durante a IX Cimeira Ibero-Americana? Ou, ocupada nas discussões sobre o preço do bacalhau e a qualidade dos vinhos portugueses, a delegação chefiada por Almeida Santos não teve oportunidade de tratar assuntos espinhosos com Fidel Castro?

Quanto ao sistema de saúde cubano, é verdade que temos muitos e excelentes médicos, inclusive para exportação. Só que o sistema se baseia numa pirâmide, como na União Soviética e outros países socialistas. Os membros da nomenklatura - e mesmo os estrangeiros - têm acesso a hospitais exclusivos, onde não falta nenhum medicamento. A delegação portuguesa deveria ter ido visitar os hospitais que atendem o cidadão comum, que quando é internado para uma intervenção cirúrgica até tem de levar de casa os lençóis...

Recentemente, um amigo português que percorreu as províncias orientais em carro alugado contou-me que tinha dado boleia a uma mulher cubana com um filho pequeno ardendo em febre. Vinham do médico e faltavam ainda três quilómetros, a pé, para chegar a casa. A senhora contou que o menino, além da febre, "estava mal do estômago e tinha uns caroços debaixo do braço". E que lhe receitaram? "Aspirina, não há outra coisa..."

Diz Almeida Santos que "não se vê ninguém mal vestido ou com cara de fome". Posso responder-lhe com um despacho da Lusa de 22 de Outubro sobre uma portuguesa residente em Cuba e que veio a Lisboa no âmbito do programa "Portugal no Coração": "A situação de extrema miséria em que Josefa Araújo Rodríguez vive na terra de Fidel Castro deu-lhe coragem para vir a Portugal procurar um porto de abrigo para si e para a sua família. (...) Ela tem 63 anos, mas parece que tem 83. Não tem massa muscular e pesa pouco mais de 30 quilos."

Casos isolados? Lamentavelmente, não é assim. Terá de passar algum tempo para que se conheçam as realidades de Cuba quanto aos índices de mortalidade infantil e outras coisas que virão à superfície quando houver liberdade de expressão.

Passou-se tantas vezes com outros países "socialistas" que parece incrível que políticos experientes não se apercebam das encenações apresentadas nestes programas para convidados VIP.

Quando o dr. Almeida Santos diz que "para Cuba é fundamental ter um inimigo externo como factor de coesão nacional", parece-me que comete um erro de avaliação. Não é Cuba que necessita desse inimigo. É Fidel Castro, que com isso justifica todas as desgraças e carências do povo cubano. Diz que Fidel Castro "não é enquadrável" nas categorias de líderes políticos que conhece. E que tal a de "tirano", usando o Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia: "Tirano: aplica-se a quem obtém contra direito o governo de um Estado, e principalmente ao que o governa sem justiça e à medida da sua vontade. Diz-se do que abusa do seu poder, superioridade ou força em qualquer conceito ou matéria, e também simplesmente do que impõe esse poder e superioridade em grau extraordinário." De resto, foi a própria filha, Alina Fernández, quem assim classificou Fidel numa entrevista.

Como leitura, posso recomendar um livro de grande actualidade: L''iile du Docteur Castro - La Transition Confisquée, edições Stock, Paris. Os autores, Corinne Cumerlato e Denis Rouseau, foram correspondentes, respectivamente, do diário La Croix e da agência France-Presse em Havana entre 1996 e 1999. Não estiveram na ilha em visita oficial nem como simples turistas.

Miguel Rivero Lorenzo é jornalista cubano residente em Lisboa

A visita mereceu uma breve referência do Diário de Notícias, no dia 27 de Outubro, com tom marcadamente irónico sob o título "Fidel, toranja, lagosta e deputados". Já no seu depoimento à revista Visão de 9 de Novembro, são tantas as virtudes do regime cubano que Almeida Santos enumera que leva a pensar que será necessário começar a sacrificar em Portugal algumas liberdades para ter um melhor serviço de saúde, educação e medalhas nos Jogos Olímpicos.

É compreensível que, para um homem da geração de Almeida Santos, a Revolução Cubana tenha constituído motivo de inspiração na etapa da luta contra a ditadura de Salazar. Foram muitos os que albergaram a esperança de que, a partir daí, se criasse um sistema de maior justiça social e respeito pelas liberdades. Mas, desde Jean-Paul Sartre até ao escritor mexicano Carlos Fuentes, foram-se apercebendo de que tudo não passava de um mito, pois, com o tempo, o regime tornou-se tão repressivo (ou mesmo mais) como o sistema soviético ou de outros países do Leste europeu.

Afirma o presidente da Assembleia da República que "todos os elementos da delegação" ficaram vivamente impressionados com Fidel Castro, pelo que se deduz que existe um consenso em torno desta visita. Mas é difícil imaginar que deputados do Partido Social Democrata, do Partido Popular ou mesmo do Socialista partilhem este grande entusiasmo de Almeida Santos pelo regime cubano.

Segundo a opinião "muito sincera" da segunda figura do Estado português, "não nos pareceu que os cubanos vivessem oprimidos por uma ditadura feroz. E Fidel parece continuar a ter um grande apoio popular". Então, os mais de um milhão de cubanos espalhados pelo mundo devem ser uns "ingratos" que não souberam apreciar todas as vantagens que o seu país lhes oferece e optaram pelo exílio. Só na Secção de Interesses dos Estados Unidos em Havana, estão inscritos mais de 600 mil cubanos para emigrar do país.

Com quantos cidadãos comuns teve Almeida Santos oportunidade de falar livremente para saber se há ou não opressão? Ou limitou-se a seguir o programa oficial e a receber as nove horas de "sedução" do máximo dirigente cubano, que está "apenas" há 41 anos no Poder e não tem a mais pequena intenção de o abandonar? Muito menos depois de receber tantos elogios de um importante político de um país da União Europeia.

A primeira incongruência é que a Assembleia da República de Portugal trate em plano de igualdade a Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba (ANPP). Os 230 deputados portugueses pertencem a diferentes partidos e o seu mandato é fruto do voto popular, voluntário e sem pressões. Ora, os mais de 600 deputados da ANPP saem de uma lista única, em regime de partido único, e com os pioneiros a irem buscar a suas casas os que se esquecem ou se atrasam a votar.

Em Cuba, não ir às urnas significa cair na lista negra do Comité de Defesa da Revolução como elemento apático, desafecto e, no pior dos casos, contra-revolucionário. Por isso, a afluência às urnas se aproxima dos cem por cento (no Iraque é mais ou menos igual...). A ANPP reúne-se dois dias e duas vezes por ano. Presenciei várias sessões: 50 a 60 por cento do tempo é ocupado pelo discurso "sedutor" de Fidel. Todas as votações são por unanimidade, de braço erguido, para que todos possam ver. Não há sequer uma abstenção. Certamente não é a um Parlamento assim que Almeida Santos gostaria de presidir...

Estes mesmos deputados da ANPP, por exemplo, aprovaram uma lei que estabelece penas de 20 anos de prisão para qualquer jornalista cubano que "colabore com os inimigos", ou seja, publique opiniões contra o sistema ou favoráveis ao "imperialismo norte-americano". Quando um amigo do Sindicato de Jornalistas de Portugal exprimiu na altura as suas reservas ao presidente da Unión de Periodistas de Cuba, este respondeu-lhe: "Bom, a lei existe, mas ninguém foi ainda sancionado." Na prática, é como uma espada de Dâmocles.

Os deputados portugueses tiveram tempo de ver os jornais e a televisão para se aperceberem da barragem de propaganda a que está sujeito o povo cubano?

Avistaram-se com alguns representantes de grupos dissidentes, como fizeram António Guterres e Jorge Sampaio durante a IX Cimeira Ibero-Americana? Ou, ocupada nas discussões sobre o preço do bacalhau e a qualidade dos vinhos portugueses, a delegação chefiada por Almeida Santos não teve oportunidade de tratar assuntos espinhosos com Fidel Castro?

Quanto ao sistema de saúde cubano, é verdade que temos muitos e excelentes médicos, inclusive para exportação. Só que o sistema se baseia numa pirâmide, como na União Soviética e outros países socialistas. Os membros da nomenklatura - e mesmo os estrangeiros - têm acesso a hospitais exclusivos, onde não falta nenhum medicamento. A delegação portuguesa deveria ter ido visitar os hospitais que atendem o cidadão comum, que quando é internado para uma intervenção cirúrgica até tem de levar de casa os lençóis...

Recentemente, um amigo português que percorreu as províncias orientais em carro alugado contou-me que tinha dado boleia a uma mulher cubana com um filho pequeno ardendo em febre. Vinham do médico e faltavam ainda três quilómetros, a pé, para chegar a casa. A senhora contou que o menino, além da febre, "estava mal do estômago e tinha uns caroços debaixo do braço". E que lhe receitaram? "Aspirina, não há outra coisa..."

Diz Almeida Santos que "não se vê ninguém mal vestido ou com cara de fome". Posso responder-lhe com um despacho da Lusa de 22 de Outubro sobre uma portuguesa residente em Cuba e que veio a Lisboa no âmbito do programa "Portugal no Coração": "A situação de extrema miséria em que Josefa Araújo Rodríguez vive na terra de Fidel Castro deu-lhe coragem para vir a Portugal procurar um porto de abrigo para si e para a sua família. (...) Ela tem 63 anos, mas parece que tem 83. Não tem massa muscular e pesa pouco mais de 30 quilos."

Casos isolados? Lamentavelmente, não é assim. Terá de passar algum tempo para que se conheçam as realidades de Cuba quanto aos índices de mortalidade infantil e outras coisas que virão à superfície quando houver liberdade de expressão.

Passou-se tantas vezes com outros países "socialistas" que parece incrível que políticos experientes não se apercebam das encenações apresentadas nestes programas para convidados VIP.

Quando o dr. Almeida Santos diz que "para Cuba é fundamental ter um inimigo externo como factor de coesão nacional", parece-me que comete um erro de avaliação. Não é Cuba que necessita desse inimigo. É Fidel Castro, que com isso justifica todas as desgraças e carências do povo cubano. Diz que Fidel Castro "não é enquadrável" nas categorias de líderes políticos que conhece. E que tal a de "tirano", usando o Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia: "Tirano: aplica-se a quem obtém contra direito o governo de um Estado, e principalmente ao que o governa sem justiça e à medida da sua vontade. Diz-se do que abusa do seu poder, superioridade ou força em qualquer conceito ou matéria, e também simplesmente do que impõe esse poder e superioridade em grau extraordinário." De resto, foi a própria filha, Alina Fernández, quem assim classificou Fidel numa entrevista.

Como leitura, posso recomendar um livro de grande actualidade: L''iile du Docteur Castro - La Transition Confisquée, edições Stock, Paris. Os autores, Corinne Cumerlato e Denis Rouseau, foram correspondentes, respectivamente, do diário La Croix e da agência France-Presse em Havana entre 1996 e 1999. Não estiveram na ilha em visita oficial nem como simples turistas.

Miguel Rivero Lorenzo é jornalista cubano residente em Lisboa

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