Chegou a hora de cuidar dos vivos

04-05-2001
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Chegou a Hora de Cuidar dos Vivos

Por RUI BAPTISTA

Quinta-feira, 15 de Março de 2001

Seis ministros visitam Castelo de Paiva em cinco dias

Foi preciso que tivesse ocorrido a tragédia de Entre-os-Rios para que o Governo chegasse a um entendimento com a Câmara de Castelo de Paiva, dando, finalmente, luz verde a um conjunto de projectos vitais para acabar de vez com o isolamento deste concelho

Com os funerais das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios a realizarem-se a conta-gotas, a Câmara de Castelo de Paiva e o Governo decidiram que chegou, finalmente, a hora de cuidar dos vivos. Atendendo a um pedido expresso de António Guterres, a autarquia enviou esta semana para o gabinete do primeiro-ministro uma extensa "lista das necessidades do concelho" (ver texto ao lado).

A resposta a este "caderno reivindicativo", como prefere chamar-lhe o presidente da autarquia, Paulo Teixeira, surgiu sob a forma de uma autêntica romaria de membros do Governo a Castelo de Paiva. Em cinco dias o concelho foi visitado por seis ministros, outros tantos secretários de Estado e incontáveis assessores ministeriais, todos anunciando medidas de emergência. "Foi preciso uma tragédia para chamar a atenção para o isolamento de Castelo de Paiva", lamenta o presidente da assembleia municipal local, Lopes de Almeida, frisando que antes do fatídico acidente da ponte "ninguém se interessava" pelas reclamações da população. A propósito, o autarca lembra que, no ano passado, a ministra da Saúde, Manuela Arcanjo, foi convidada a deslocar-se a Castelo de Paiva para ouvir as reclamações da população sobre a falta de médicos, aproveitando para inaugurar o novo centro de saúde. A ministra não compareceu na inauguração nem respondeu ao ofício da autarquia, mas amanhã desloca-se de emergência a Castelo de Paiva para anunciar medidas de apoio à população.

"Estamos aqui esquecidinhos"

Fátima "Louceira", descendente da célebre ceramista Rosa Ramalho e proprietária de um quiosque no centro da vila, resume numa frase o sentimento da população, que ainda em Janeiro cortou o trânsito junto à ponte de Entre-os-Rios para chamar a atenção para as deficientes vias de comunicação: "Estamos aqui esquecidinhos".

Separado do Porto pelo rio Douro e por cerca de 50 km de estradas em péssimo estado, Castelo de Paiva é o concelho mais distante da sede do distrito a que pertence (Aveiro), tendo como vizinhos os municípios de Arouca, Cinfães, Gondomar e Santa Maria da Feira. Como puderam confirmar os políticos que ali acorreram em massa após o acidente da ponte, as chamadas acessibilidades ao concelho são simplesmente terríveis. Estradas sinuosas, esburacadas, servidas por pequenas pontes sem espaço para que se cruzem dois carros. A ponte que ruiu era o principal acesso ao Porto e a Penafiel, onde trabalham muitos paivenses, e a EN 222 que liga à capital do distrito através da A1 parece ter sido bombardeada em alguns troços. No dia a seguir à tragédia, Castelo de Paiva não amanheceu apenas de luto pela memória de cerca de 60 paivenses (o número de vítimas ainda é indeterminado) que perderam a vida no rio. Amanheceu também mais isolado e, logo, irremediavelmente mais pobre.

Dotar o concelho de uma rede viária decente é, neste contexto, a "prioridade das prioridades", como já reconheceu Carlos Zorrinho, secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna. Com a queda da ponte, a situação, que já era má, tornou-se péssima. O Porto está agora a quase duas horas de distância, o mesmo sucedendo com Penafiel, existindo apenas as alternativas das estradas das Barragem do Carrapatelo (a montante) e de Crestuma-Lever (a jusante da ponte de Entre-os-Rios).

As deslocações tornaram-se, na opinião da reformada Rosa Maria Lopes, "um inferno". Quem trabalha na margem direita do Douro tem que sair de casa às seis da manhã se quiser chegar a horas ao emprego, e foi preciso que o Ministério do Trabalho interviesse para evitar que alguns empresários da outra margem despedissem trabalhadores que moram em Castelo de Paiva. O hospital mais próximo passou a ser o da Feira, a mais de uma hora e meia de distância, e quem é obrigado a deslocar-se com regularidade ao centro hospitalar do Vale do Sousa, como é o caso da funcionária do posto de turismo da vila, enfrenta agora uma viagem de quase duas horas.

O acréscimo do fluxo de trânsito está, também, a arruinar as estradas municipais que têm servido de alternativa nos últimos dias. Dois pontões ameaçam ruína perto da Raiva e a protecção da EN 222 junto a Pedorido abateu, estando pendurada por frágeis espigões. "O tráfego quase triplicou e, se não fizermos alguma coisa rapidamente, podem ocorrer mais tragédias", avisa Paulo Teixeira. Até agora, foi apenas colocado algum alcatrão à pressa para tapar os buracos maiores na EN 222, estando a autarquia à espera de que o Instituto de Conservação e Exploração da Rede Rodoviária avance com a recuperação da EN 222.

Faltou vontade política

Tentar perceber como foi possível que Castelo de Paiva (e o vizinho concelho de Cinfães) tenha chegado a este estado de isolamento obriga a recuar uns anos e analisar com atenção o relacionamento (ou, neste caso, a falta dele) entre a autarquia e a administração central. Encravado entre o Douro e a serra, com um número de eleitores reduzido, Castelo de Paiva ficou de fora do "boom" de investimento em infra-estruturas que se seguiu à adesão do país à Comunidade Europeia. Enquanto o Governo foi do PSD, a câmara esteve nas mão do PS (o presidente era, na altura, o actual governador civil de Aveiro, Antero Gaspar). O clima de guerrilha constante não ajudou em nada um concelho que, até meados da década passada, vivia quase dependente das minas carboníferas do Pejão.

Quando o Governo mudou para o PS, a câmara passou, pouco tempo depois, para o PSD. Antero Gaspar foi nomeado governador civil, e uma das suas primeiras medidas foi usar o edifício do Governo Civil de Aveiro para anunciar a vitória num processo judicial contra Paulo Teixeira. O tom estava dado. A oposição forçava a entrada no PIDDAC de obras vitais para o concelho, mas ano após ano elas não saíram do papel. Quando a população veio protestar para a rua contra a falta de acessos, a resposta do governador foi processar os líderes da manifestação.

A explicação parece demasiado simplista para o atraso de Castelo de Paiva, mas é avançada por deputados de todas as forças políticas. Como resume Lopes de Almeida, "ao longo de décadas faltou vontade política para resolver os problemas de Castelo de Paiva". Agora, que a ponte caiu, arrastando 60 pessoas para o rio, abunda a boa vontade.

Chegou a Hora de Cuidar dos Vivos

Por RUI BAPTISTA

Quinta-feira, 15 de Março de 2001

Seis ministros visitam Castelo de Paiva em cinco dias

Foi preciso que tivesse ocorrido a tragédia de Entre-os-Rios para que o Governo chegasse a um entendimento com a Câmara de Castelo de Paiva, dando, finalmente, luz verde a um conjunto de projectos vitais para acabar de vez com o isolamento deste concelho

Com os funerais das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios a realizarem-se a conta-gotas, a Câmara de Castelo de Paiva e o Governo decidiram que chegou, finalmente, a hora de cuidar dos vivos. Atendendo a um pedido expresso de António Guterres, a autarquia enviou esta semana para o gabinete do primeiro-ministro uma extensa "lista das necessidades do concelho" (ver texto ao lado).

A resposta a este "caderno reivindicativo", como prefere chamar-lhe o presidente da autarquia, Paulo Teixeira, surgiu sob a forma de uma autêntica romaria de membros do Governo a Castelo de Paiva. Em cinco dias o concelho foi visitado por seis ministros, outros tantos secretários de Estado e incontáveis assessores ministeriais, todos anunciando medidas de emergência. "Foi preciso uma tragédia para chamar a atenção para o isolamento de Castelo de Paiva", lamenta o presidente da assembleia municipal local, Lopes de Almeida, frisando que antes do fatídico acidente da ponte "ninguém se interessava" pelas reclamações da população. A propósito, o autarca lembra que, no ano passado, a ministra da Saúde, Manuela Arcanjo, foi convidada a deslocar-se a Castelo de Paiva para ouvir as reclamações da população sobre a falta de médicos, aproveitando para inaugurar o novo centro de saúde. A ministra não compareceu na inauguração nem respondeu ao ofício da autarquia, mas amanhã desloca-se de emergência a Castelo de Paiva para anunciar medidas de apoio à população.

"Estamos aqui esquecidinhos"

Fátima "Louceira", descendente da célebre ceramista Rosa Ramalho e proprietária de um quiosque no centro da vila, resume numa frase o sentimento da população, que ainda em Janeiro cortou o trânsito junto à ponte de Entre-os-Rios para chamar a atenção para as deficientes vias de comunicação: "Estamos aqui esquecidinhos".

Separado do Porto pelo rio Douro e por cerca de 50 km de estradas em péssimo estado, Castelo de Paiva é o concelho mais distante da sede do distrito a que pertence (Aveiro), tendo como vizinhos os municípios de Arouca, Cinfães, Gondomar e Santa Maria da Feira. Como puderam confirmar os políticos que ali acorreram em massa após o acidente da ponte, as chamadas acessibilidades ao concelho são simplesmente terríveis. Estradas sinuosas, esburacadas, servidas por pequenas pontes sem espaço para que se cruzem dois carros. A ponte que ruiu era o principal acesso ao Porto e a Penafiel, onde trabalham muitos paivenses, e a EN 222 que liga à capital do distrito através da A1 parece ter sido bombardeada em alguns troços. No dia a seguir à tragédia, Castelo de Paiva não amanheceu apenas de luto pela memória de cerca de 60 paivenses (o número de vítimas ainda é indeterminado) que perderam a vida no rio. Amanheceu também mais isolado e, logo, irremediavelmente mais pobre.

Dotar o concelho de uma rede viária decente é, neste contexto, a "prioridade das prioridades", como já reconheceu Carlos Zorrinho, secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna. Com a queda da ponte, a situação, que já era má, tornou-se péssima. O Porto está agora a quase duas horas de distância, o mesmo sucedendo com Penafiel, existindo apenas as alternativas das estradas das Barragem do Carrapatelo (a montante) e de Crestuma-Lever (a jusante da ponte de Entre-os-Rios).

As deslocações tornaram-se, na opinião da reformada Rosa Maria Lopes, "um inferno". Quem trabalha na margem direita do Douro tem que sair de casa às seis da manhã se quiser chegar a horas ao emprego, e foi preciso que o Ministério do Trabalho interviesse para evitar que alguns empresários da outra margem despedissem trabalhadores que moram em Castelo de Paiva. O hospital mais próximo passou a ser o da Feira, a mais de uma hora e meia de distância, e quem é obrigado a deslocar-se com regularidade ao centro hospitalar do Vale do Sousa, como é o caso da funcionária do posto de turismo da vila, enfrenta agora uma viagem de quase duas horas.

O acréscimo do fluxo de trânsito está, também, a arruinar as estradas municipais que têm servido de alternativa nos últimos dias. Dois pontões ameaçam ruína perto da Raiva e a protecção da EN 222 junto a Pedorido abateu, estando pendurada por frágeis espigões. "O tráfego quase triplicou e, se não fizermos alguma coisa rapidamente, podem ocorrer mais tragédias", avisa Paulo Teixeira. Até agora, foi apenas colocado algum alcatrão à pressa para tapar os buracos maiores na EN 222, estando a autarquia à espera de que o Instituto de Conservação e Exploração da Rede Rodoviária avance com a recuperação da EN 222.

Faltou vontade política

Tentar perceber como foi possível que Castelo de Paiva (e o vizinho concelho de Cinfães) tenha chegado a este estado de isolamento obriga a recuar uns anos e analisar com atenção o relacionamento (ou, neste caso, a falta dele) entre a autarquia e a administração central. Encravado entre o Douro e a serra, com um número de eleitores reduzido, Castelo de Paiva ficou de fora do "boom" de investimento em infra-estruturas que se seguiu à adesão do país à Comunidade Europeia. Enquanto o Governo foi do PSD, a câmara esteve nas mão do PS (o presidente era, na altura, o actual governador civil de Aveiro, Antero Gaspar). O clima de guerrilha constante não ajudou em nada um concelho que, até meados da década passada, vivia quase dependente das minas carboníferas do Pejão.

Quando o Governo mudou para o PS, a câmara passou, pouco tempo depois, para o PSD. Antero Gaspar foi nomeado governador civil, e uma das suas primeiras medidas foi usar o edifício do Governo Civil de Aveiro para anunciar a vitória num processo judicial contra Paulo Teixeira. O tom estava dado. A oposição forçava a entrada no PIDDAC de obras vitais para o concelho, mas ano após ano elas não saíram do papel. Quando a população veio protestar para a rua contra a falta de acessos, a resposta do governador foi processar os líderes da manifestação.

A explicação parece demasiado simplista para o atraso de Castelo de Paiva, mas é avançada por deputados de todas as forças políticas. Como resume Lopes de Almeida, "ao longo de décadas faltou vontade política para resolver os problemas de Castelo de Paiva". Agora, que a ponte caiu, arrastando 60 pessoas para o rio, abunda a boa vontade.

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