Imperdoável

06-07-2001
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EDITORIAL

Imperdoável

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Sábado, 30 de Junho de 2001

A política devia ser a mais nobre das actividades, não aquela que permite os comportamentos menos dignos. E é difícil imaginar um comportamento menos digno do que aquele que o primeiro-ministro protagonizou ontem, ao entrar pela porta das traseiras no Palácio de Belém para falar da remodelação com Jorge Sampaio ao mesmo tempo que deixava imolar, em São Bento, dois ministros já remodelados.

O que António Guterres fez é difícil de qualificar - é até prudente que evitemos qualquer adjectivo, pois o inimaginável da situação poderia conduzir a excessos. Mas há algo que ficou claro: o homem que ontem se deslocou numa viatura do PS a Belém, tentando iludir os jornalistas, é um político frio capaz de tratar sem um mínimo de consideração humana alguns dos seus colaboradores mais próximos. É alguém que transmite uma imagem em total contradição com a do político sorridente e ar beatífico, sempre complacente e muito humano, que nos foi vendida nos últimos anos. É o regresso da imagem do "conspirador do sótão", a sobrepor-se à do estadista.

Mas é, também, o sinal do desnorte de alguém que se preparou ao longo de uma vida para exercer o poder - e que era dos melhor preparados da sua geração para o fazer - e que agora surge perdido, errático, tentando agarrar-se a uma última tábua de salvação para não sair do poder pela porta baixa.

Esta remodelação é, de certa forma, sintoma deste desnorte, desta dificuldade de escolher um caminho. Há três dias, o primeiro-ministro dizia que queria "ir às fuças" da direita - e pensou-se que iria virar à esquerda. Ontem, ao conhecer-se o elenco da nova equipa verificamos que, se houve alguma viragem, foi à... direita. (Correia de Campos é conhecido pelas suas ideias mais liberais para a área da saúde, Rui Pena é um antigo do CDS, Oliveira Martins é um centrista por natureza, Júlio Pedrosa e Luis Braga da Cruz não são conhecidos pelas suas posições de esquerda).

Corresponde esta escolha a uma opção política, quer Guterres renovar a vocação centrista que marcou o seu primeiro governo? Aparentemente não. Corresponde apenas à sua aflição. O primeiro ministro tinha de encontrar um novo fôlego, tinha de conseguir mobilizar dois ou três nomes indiscutíveis capazes de conseguirem, só por si, suscitar uma nova esperança. Para isso era crucial a escolha das Finanças - e Guterres falhou-a. Não porque Guilherme Oliveira Martins não se possa vir a revelar um bom ministro nessa pasta - tem qualidades e algum currículo para isso -, mas porque a sua indigitação surge como uma escolha de recurso e o seu trajecto começa a lembrar o de um governante "todo-o-terreno", capaz de vestir qualquer sobretudo, derradeiro bombeiro de um governo com tendências incendiárias.

A remodelação teve um lado de dança de cadeiras - as mudanças de ministério de Oliveira Martins e Santos Silva -, um lado de recurso ao núcleo dos íntimos de Guterres - de novo Oliveira Martins, mas também o regresso de António José Seguro - e três novidades. Só uma delas corresponde a um nome forte e a um candidato natural ao lugar que agora vai ocupar: falo de Correia de Campos, novo ministro da Saúde. Tem currículo e tem projecto - mas chega ao Governo com seis anos de atraso. Ele devia ter sido o primeiro ministro da Saúde de Guterres se este tivesse querido reformar o sector quando tinha condições para isso. Agora, que o sector bateu no fundo, que o governo não conta com a condescendência de ninguém, a missão de Correia de Campos é quase suicida. Veremos como a desempenha.

Júlio Pedrosa, o novo ministro da Educação, foi um inteligente e eficaz reitor da Universidade de Aveiro, mas é duvidoso que tenha o perfil necessário a um ministro. E resta saber quem conservará da actual equipa, nomeadamente saber se tem poder e coragem para remover a eterna Ana Benavente. Já Luis Braga da Cruz nem chega a suscitar expectativa: o seu perfil como presidente da CCRN, a sua provada incapacidade de resistir a pressões e a sua propensão para o disparate fazem temer o pior.

Mas tudo isto pouco contará nos próximos dias. É que mesmo a mais genial e conseguida das remodelações teria ficado ferida de morte pela forma como Guterres a conduziu. Com uma falta de dignidade imperdoável.

EDITORIAL

Imperdoável

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Sábado, 30 de Junho de 2001

A política devia ser a mais nobre das actividades, não aquela que permite os comportamentos menos dignos. E é difícil imaginar um comportamento menos digno do que aquele que o primeiro-ministro protagonizou ontem, ao entrar pela porta das traseiras no Palácio de Belém para falar da remodelação com Jorge Sampaio ao mesmo tempo que deixava imolar, em São Bento, dois ministros já remodelados.

O que António Guterres fez é difícil de qualificar - é até prudente que evitemos qualquer adjectivo, pois o inimaginável da situação poderia conduzir a excessos. Mas há algo que ficou claro: o homem que ontem se deslocou numa viatura do PS a Belém, tentando iludir os jornalistas, é um político frio capaz de tratar sem um mínimo de consideração humana alguns dos seus colaboradores mais próximos. É alguém que transmite uma imagem em total contradição com a do político sorridente e ar beatífico, sempre complacente e muito humano, que nos foi vendida nos últimos anos. É o regresso da imagem do "conspirador do sótão", a sobrepor-se à do estadista.

Mas é, também, o sinal do desnorte de alguém que se preparou ao longo de uma vida para exercer o poder - e que era dos melhor preparados da sua geração para o fazer - e que agora surge perdido, errático, tentando agarrar-se a uma última tábua de salvação para não sair do poder pela porta baixa.

Esta remodelação é, de certa forma, sintoma deste desnorte, desta dificuldade de escolher um caminho. Há três dias, o primeiro-ministro dizia que queria "ir às fuças" da direita - e pensou-se que iria virar à esquerda. Ontem, ao conhecer-se o elenco da nova equipa verificamos que, se houve alguma viragem, foi à... direita. (Correia de Campos é conhecido pelas suas ideias mais liberais para a área da saúde, Rui Pena é um antigo do CDS, Oliveira Martins é um centrista por natureza, Júlio Pedrosa e Luis Braga da Cruz não são conhecidos pelas suas posições de esquerda).

Corresponde esta escolha a uma opção política, quer Guterres renovar a vocação centrista que marcou o seu primeiro governo? Aparentemente não. Corresponde apenas à sua aflição. O primeiro ministro tinha de encontrar um novo fôlego, tinha de conseguir mobilizar dois ou três nomes indiscutíveis capazes de conseguirem, só por si, suscitar uma nova esperança. Para isso era crucial a escolha das Finanças - e Guterres falhou-a. Não porque Guilherme Oliveira Martins não se possa vir a revelar um bom ministro nessa pasta - tem qualidades e algum currículo para isso -, mas porque a sua indigitação surge como uma escolha de recurso e o seu trajecto começa a lembrar o de um governante "todo-o-terreno", capaz de vestir qualquer sobretudo, derradeiro bombeiro de um governo com tendências incendiárias.

A remodelação teve um lado de dança de cadeiras - as mudanças de ministério de Oliveira Martins e Santos Silva -, um lado de recurso ao núcleo dos íntimos de Guterres - de novo Oliveira Martins, mas também o regresso de António José Seguro - e três novidades. Só uma delas corresponde a um nome forte e a um candidato natural ao lugar que agora vai ocupar: falo de Correia de Campos, novo ministro da Saúde. Tem currículo e tem projecto - mas chega ao Governo com seis anos de atraso. Ele devia ter sido o primeiro ministro da Saúde de Guterres se este tivesse querido reformar o sector quando tinha condições para isso. Agora, que o sector bateu no fundo, que o governo não conta com a condescendência de ninguém, a missão de Correia de Campos é quase suicida. Veremos como a desempenha.

Júlio Pedrosa, o novo ministro da Educação, foi um inteligente e eficaz reitor da Universidade de Aveiro, mas é duvidoso que tenha o perfil necessário a um ministro. E resta saber quem conservará da actual equipa, nomeadamente saber se tem poder e coragem para remover a eterna Ana Benavente. Já Luis Braga da Cruz nem chega a suscitar expectativa: o seu perfil como presidente da CCRN, a sua provada incapacidade de resistir a pressões e a sua propensão para o disparate fazem temer o pior.

Mas tudo isto pouco contará nos próximos dias. É que mesmo a mais genial e conseguida das remodelações teria ficado ferida de morte pela forma como Guterres a conduziu. Com uma falta de dignidade imperdoável.

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