Vasco Vieira de Almeida

07-05-2001
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Conversa com vista para ...

Vasco Vieira de Almeida

Por MARIA JOÃO SEIXAS

Segunda-feira, 7 de Maio de 2001 "Un bel''uomo"! Para além de ser um grande advogado, de ser casado com "una bella donna", senhora de uma serena inteligência-com-dengue (só para entendidos que nasceram e viveram em África!), de ter salteado a política quando ela se praticava em clandestino e, já em liberdade, a ter revisitado de passagem, quase à ilharga dos convencionais percursos do poder, de ter a memória fresca e grata dos tempos de formação (menino de casa de seus pais), este lisboeta impenitente que ainda larga o escritório nas tardes de sexta-feira para ir a correr para casa, para o piano que o espera com uma partitura aberta, Vasco Vieira de Almeida é de facto, insisto, um belo homem. Quando o convidei para esta "Conversa" reagiu, com o sentido de humor que pratica mordazmente: " O melhor é entrar já em estágio!". Telefonei-lhe para casa, numa tarde de sexta-feira e interrompi-lhe o estudo do "Concerto Italiano" de Bach. O encontro ficou marcado para a semana seguinte, com almoço, no seu escritório. No prédio, ali para o Marquês, alguns andares têm placa com o seu nome. Lisboa derrama-se, linda como poucas, de quase todos os ângulos das varandas. No interior do último andar, onde conversámos, as paredes dão-nos a ver muito do melhor da pintura portuguesa. Sem tempo para derivas, passámos à sala de jantar. Ampla, luminosa, sóbria, de bom gosto. Papaia "farcie" com "cocktail" de gambas, pato deliciosamente lacado, batata palha e vagens como acompanhamento e, a fechar, um aveludado leite creme - esta a ementa com que a exímia cozinheira, transferida de sua casa para o escritório, nos brindou. Sem esquecer, claro, um excelente tinto do Dão. As duas horas previstas correram céleres e souberam-me a pouco, de tanto mais que havia a arrecadar para estes registos impressos em tiragem dominical de princípio de mês. Mas eu sabia que o tempo de uma sociedade de sucesso como aquela não se compadece com o outro tempo, o tempo destas "Conversas". Nem mesmo para um melómano, como o meu conversado de hoje, o metrónomo da casa que comanda poderia parar e conceder um qualquer ritmo de excepção. Regra aceite, conversa acabada! Maria João Seixas - Vasco, diz-me quem és. Vasco Vieira de Almeida - Tudo aquilo que eventualmente possa ter de bom, não tenho disso qualquer dúvida, tem uma ligação directa com meu pai, que era uma pessoa extraordinária, em todos os aspectos. Talvez o homem mais inteligente e culto que conheci, com um grande sentido de humor. Era um homem de valores, extremamente simples e tinha uma forma única de comunicar as coisas que sabia e em que acreditava; não as ensinava, comunicava-as porque existia. Nem meu irmão nem eu fomos à escola. Fizémos a primária em casa. O meu pai fez uns livrinhos, um de gramática portuguesa com 16 páginas, um de francês com 20 e tal páginas e um de matemática com 30. E as lições eram dadas conversando. O que aprendi nesses quatro anos de instrução primária, o que ele me quis ensinar e tudo o que me transmitiu sem me ensinar, foi de uma riqueza excepcional. P. - Estamos a falar dos anos 40? R. - Sim, isto passa-se na década de 40. Esses anos marcaram-me profundamente e meu pai influenciou-me para o resto da vida. Era senhor de uma grande coragem (foi preso aos 74 anos, depois das eleições do Delgado). Com ele e com o apurado sentido de humor que tinha, aprendi a não me levar excessivamente a sério. Também foi dele que herdei o rigor de raciocínio que, ao longo do tempo e profissionalmente, me tem sido indispensável. Insistia sempre na necessidade de busca permanente de uma sólida lógica interna do pensamento que não permita pôr em causa as conclusões, a não ser que se rejeitem as premissas. P. - Qual era a área de formação do teu pai? R. - Filosofia. Era professor de Filosofia na Faculdade de Letras. A um dado momento quis que eu fosse estudar para França, porque achava que o ensino em Portugal não era grande coisa. O que diria hoje... Não fui capaz. Quando começou a aproximar-se a data de ir para Paris dei-me conta que seria uma enorme estupidez partir, porque estando ao pé dele aprenderia muito mais do que em qualquer Universidade francesa. Foi a coisa mais inteligente que fiz na minha vida. Portanto, tudo o que tenha de positivo foi-me transmitido por ele; as coisas más essas ganhei-as eu, com muito esforço próprio. Fiz sempre o que quis, e o que não fiz foi o que não tive qualidades para realizar. Esta consciência dá um razoável sossego. Sou livre. Não dependo de ninguém. P. - Esse grau de independência foi sempre o objectivo da tua vida? R. - Sempre. P. - E a política, como é que a política habitou essa tua liberdade? R. - Poder fazer o que queria, juntamente com os valores que meu pai me tinha ensinado, deu, entre outras coisas, que me metesse na política. Estive no MUD Juvenil, onde conheci muita gente, entre a qual pessoas notáveis ligadas ao PC. Na altura eu era um fanático marxista, tendo devorado uma boa parte de "O Capital"! Por outro lado, tive a sorte de conhecer e conviver, lá em casa, com os amigos do meu pai, pessoas fora de série num país atrasado, cinzento e opressivo como era o nosso, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Mário Soares, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Câmara Reis... Alguns vinham à noite para jantar e ficavam horas à conversa. Discutia-se sobre tudo, num tom muito despretensioso. Assistir a essas reuniões foi um banho de cultura e civilização, depois do qual só um burro não absorveria para o resto dos seus dias uma série de valores, de princípios, de conhecimentos. P. - O teu gosto pela música veio por influência da tua mãe? R. - Dos meus pais. Meu pai, embora não tocasse nenhum instrumento, tinha um grande sentido musical. Minha mãe cantava. Comecei muito cedo a ir a concertos e aprendi piano. Tive as primeira lições com uma professora excelente, Maria Beatriz Soares, depois com o Campos Coelho, a seguir fiz exames de solfejo e piano no Conservatório e, durante dois anos, fui aluno do Lopes Graça de Composição e História da Música, na Academia de Amadores de Música. P. - E a política? Voltemos a ela para me falares dos teus envolvimentos. Viveste situações de risco antes do 25 de Abril? R. - De grande risco, não. O regime tratava os chamados "intelectuais" presos de um modo completamente diferente do aplicado aos dirigentes clandestinos, aos operários e aos camponeses. Fui preso duas vezes. A primeira, por ter agredido o agente da Pide quando foi buscar o meu pai a casa para o levar preso. A outra, em 63, por ter colaborado na fuga de Caxias de alguns dirigentes do PC. Na altura, era já director do Banco Português do Atlântico e a Pide imaginava que, por ter aquele lugar, devia ser eu quem tinha a responsabilidade de arranjar financiamentos para o partido. Mas a repressão, que era violentíssima para algumas pessoas, tinha também aspectos de um provincianismo caricato. Foram-me buscar a casa às 6 da manhã. Por lá estiveram algum tempo, como era habitual, a apreender livros e correspondência - um dos agentes cismou que a "República" de Platão era uma obra perigosíssima e só quando lhe expliquei que o autor da obra fora, em tempos, comunista mas entretanto renegara completamente a ideologia, é que acedeu em deixar-me o livro em casa - e, acabada essa função, saímos. Dei-me então conta que nem carro tinham levado e estivemos todos, em plena Lapa, a chamar um táxi que nos transportasse para a António Maria Cardoso. P. - Foste maltratado? R. - Não. Estive oito dias nos curros. Obviamente há experiências mais divertidas, mas para mim foi uma época inesquecível. Conheci então pessoas excepcionais, entre elas, um amigo para a vida, o Dr. Arménio Ferreira. Numa das celas, por onde passei depois, estava também um juíz, o Dr. Sebastião Ribeiro, já de certa idade, que tinha ajudado o Henrique Galvão a fugir da prisão, e um médico, Maldonado Freitas, de uma família muito conhecida das Caldas. Certa noite o juiz sentiu-se mal, pareceu-nos que estava a ter um ataque cardíaco. Enquanto o Maldonado Freitas lhe punha panos molhados na cara e lhe dava umas palmadinhas, passei toda a noite a bater na porta da cela a pedir que alguém viesse socorrê-lo. Ninguém apareceu. No dia seguinte, durante a visita da Ana Maria, pedi-lhe que avisasse a filha do Dr. Sebastião Ribeiro de que o pai estava mal, sem assistência médica, que podia morrer ali e era preciso denunciar a situação. A filha escreveu imediatamente uma carta duríssima ao Salazar, dizendo-lhe que se o pai morresse, ela considerá-lo-ia o assassino. Em qualquer ditadura que se preze isto teria dado logo prisão para quem escrevera. Em Portugal deu que o Salazar lhe respondeu. Com um cartão, que vi e sei de cor. Tinha em cima o nome - António de Oliveira Salazar, em baixo - Presidente do Conselho de Ministros, sendo que a profissão estava delicadamente riscada. O texto: "António de Oliveira Salazar, cumprimenta V.Exa. e informa que seu pai se encontra bem e goza de assistência médica permanente." De facto, o Maldonado estava na mesma cela e era médico. P. - Estiveste preso durante quanto tempo? R. - Dois meses. Não sabia ainda a razão porque tinha sido preso e pedi à Ana Maria que tentasse perceber de que é que se tratava, quanto tempo poderia ter de cumprir e me desse um sinal. Combinámos que no dia das encomendas, a seguir a essa visita, ela me mandaria dois pastéis de nata se a coisa não tivesse muita gravidade, meia dúzia se fosse grave, uma dúzia se fosse gravíssimo e desse para eu ficar anos. Quando a encomenda chegou, fiquei varado e julguei que ia ser condenado a prisão perpétua: quarenta e oito pastéis! O que eu não sabia é que a Ana tinha combinado o mesmo sinal com as mulheres dos outros presos, porque na altura estava numa cela com muita gente... P. - Como é que foste recebido no Banco quanto te libertaram? R. - Fui ter com o dono do Banco, que era o Cupertino de Miranda e disse-lhe que não valia a pena dizer-me nada, que ia pedir a demissão naquele instante, porque era óbvio não poder retomar as funções que tinha depois de ter sido preso por ajudar comunistas a fugirem. Libertava-o assim da incomodidade de me despedir. Nota que durante os dois meses que estive preso o meu ordenado foi religiosamente entregue à Ana. O velho Cupertino disse-me: "Oh homem, deixe-se de disparates, vá para a sua secretária que os depósitos até subiram !". P. - Hás-de convir que foi uma surpreendente atitude. Reveladora das contradições que o regime também comportava. R. - A minha entrada para o Banco já tinha sido curiosa. Eu era estagiário de advocacia no escritório do Mário de Castro, tinha vinte e poucos anos, tratava de uns tristes casos de divórcio e não via a minha vida a andar para a frente. Um dia recebo um convite para ser director-geral de um Banco. Não conhecia a pessoa que me falou de lado nenhum. Disse-lhe que mal sabia distinguir um cheque de um piano de cauda, ele achou que isso não tinha a mais pequena importância e marcou-me um encontro. Naquele tempo eu achava que os Bancos eram a marca mais visível do capitalismo fascista e preparei-me a rigor para a entrevista: vesti-me de camisa preta e levei na mão um livro de um economista marxista, Maurice Dobb, "On Economic Theory and Socialism", bem à vista. Quando chego ao gabinete, vejo um homem novo que me diz, ainda eu não tinha dado dois passos: "Até que enfim tenho um marxista aqui no Banco!" Chamava-se José Fernando Martins de Carvalho e foi, até morrer, o meu maior amigo. Morreu cedo, num desastre de aviação. Era o director-geral do Banco e ia passar a administrador. Acabei, mais tarde, por vir a suceder-lhe. Era uma pessoa absolutamente rara, de enorme carácter e inteligência, que me disse ser monárquico integralista e que era óptimo que eu fosse marxista porque, como íamos trabalhar juntos, as posições, assim, ficavam equilibradas. P. - Esses anos no Português do Atlântico acabaram por te agarrar à tal actividade fundamental do "capitalismo fascista", já que ainda tentaste outras experiências bancárias antes do 25 de Abril. R. - Foi profissionalmente uma experiência muito estimulante e divertida e onde aprendi imenso. O Cupertino de Miranda era, também, um homem excepcional. Um dia acordei com a sensação que, com trinta e poucos anos, para além de estar a ganhar o que para mim era muito dinheiro (já era administrador nessa altura), nada mais de muito excitante poderia acontecer-me profissionalmente. Senti que começava a morrer, se continuasse no mesmo lugar. Fui ter com o Cupertino de Miranda e disse-lhe isso mesmo, sugerindo que o Banco tomasse a liderança no financiamento de actividades mais directamente ligadas a projectos de desenvolvimento estrutural do país. Ele achou que essa tarefa não podia partir de uma única instituição de crédito e compreendi que teria de afastar-me. Tive então a ideia de recomeçar de novo, com um Banco que eu pudesse inteiramente dirigir. Foi quando Manoel Boullosa, outro homem extraordinário, veio ter comigo e deu-me carta branca para se comprar o Crédito Predial. O arranque a sério deu-se por volta de 71/72, mas só lá estive dois anos, porque entretanto aconteceu o 25 de Abril... P. - ... que te convocou de imediato para a actividade política, agora a céu aberto! R. - E a Ana Maria deu-me então um grande apoio. Concordou inteiramente com o facto de, tendo eu tomado sempre posições contra a ditadura, não poder, agora que a liberdade nos tinha sido restituída, pôr-me de lado sem colaborar no processo de construção da democracia. E a 26 de Abril de 74 aceitei o convite da Comissão Coordenadora do Programa do MFA, para tomar medidas económicas de emergência, evitar fugas de capitais, corridas a Bancos, etc... É aí que faço grande amizade com o Ernesto Melo Antunes e o Vítor Alves. São, para mim, as duas grandes referências do 25 de Abril. Tinham ambos uma percepção exacta do estado do país e da prudência que era indispensável usar para conduzir as coisas. Tanto mais que, de um dia para o outro, só se encontravam anti-fascistas radicais. Gente que antes nunca tinha feito nada, nunca se tinha pronunciado... O meu receio a seguir ao 25 de Abril era que, com a nossa situação geo-estratégica, num país muito conservador (como ainda é hoje), com uma Igreja muito forte (como continua a ser), qualquer forma de extremismo seria profundamente contra-revolucionária e só poderia trazer a direita outra vez de volta. P. - Não te surpreendeu a forma como o regime caiu, esboroando-se como um castelo de cartas? R. - Não. Sabia que o regime estava podre e que a guerra colonial forçosamente acabaria com ele, mas achava que podre iria manter-se mais algum tempo. Não lhe via o fim. Ainda por cima tinha havido, durante o Caetanismo, uma grande abertura económica, as pessoas tinham sentido uma certa descompressão, tínhamos entrado na EFTA. Marcelo Caetano - de quem era amigo e que foi o melhor professor que tive na Faculdade - tentou imediatamente uma liberalização, mas hesitou e não teve força para controlar a extrema-direita do regime e gerir as contradições agudizadas pela guerra. Não era fácil, pelo menos até ao "16 de Março", prever a queda rápida do regime, apoiado num exército que tinha sempre sido um pilar do sistema, com uma oposição dividida e uma polícia política que, embora de má qualidade, funcionava bem com as denúncias que de todo o lado recebia. Só de facto com um golpe militar, como aconteceu, provocado pelo cansaço da guerra colonial e no quadro de quase total isolamento do país. P. - Aceitaste depois ser Ministro da Coordenação Económica no primeiro Governo Provisório? R. - Foi uma experiência muito frustrante. Naquelas condições, em que quase ninguém era realmente o que era e poucos tentavam agir com uma visão estratégica, não era possível impor qualquer directriz de fundo, tudo se passava a quente, no momento. O Ernesto Melo Antunes disse-me muitas vezes - "Queres suster a onda, mas o que é preciso é cavalgá-la." Saí na crise Palma Carlos. P. - Regressaste à tua vida civil de antes? R. - Voltei para o Crédito Predial, onde estive até ao fim de 74. Depois, no princípio de 75, tive um convite, creio que do marechal Costa Gomes que mandou alguém falar comigo, para saber se eu queria ir para Angola e integrar o Governo de Transição, que devia preparar a passagem para a independência. O MPLA, de que eu conhecia bem alguns dirigentes, também me contactou e convenceram-me a ir dar uma ajuda na área económica. Levei a família, que lá ficou até rebentar a guerra de Luanda. Estive em Angola de Janeiro a Setembro de 75. Foi uma experiência fabulosa, mas muito complicada. P. - Queres descrever-me o quadro dessa "complicação" e das maiores dificuldades com que foste confrontado? R. - Portugueses éramos dois - o engenheiro Antunes da Cunha, que tinha a pasta das Obras Públicas e eu, como ministro da Economia. Depois havia os ministros angolanos, para além de três primeiros-ministros, representantes dos três Movimentos. Muitos vinham para o Conselho de Ministros com as pistolas Walter 9 mm em elegantes pastas Samsonite. P. - Chegou a haver tiroteio no Conselho de Ministros? R. - Não. Mas creio que todos estávamos preparados para nos atirarmos para debaixo da mesa em caso de necessidade. As dificuldades principais resultavam da falta de orientações de Lisboa, do extremar de posições políticas que era um reflexo da situação conturbada em Portugal, das repercussões da guerra fria em Angola e do choque dos três Movimentos de Libertação que, obviamente, apenas estavam interessados em tomar o poder. Sobretudo, rapidamente se tornou claro que era impossível impedir os erros resultantes de se tentar implantar um regime de planeamento económico centralizado e estatizado, como queria o MPLA. Tentei fazer um esboço das linhas de orientação a adoptar para evitar o colapso económico e permitir o desenvolvimento futuro do país, que foi aceite pelos três Movimentos, mas que ninguém pensava em adoptar. Nesse aspecto a experiência foi absolutamente falhada. P. - Também trabalhaste na preparação do primeiro Orçamento Geral e no projecto de Constituição do futuro Estado angolano. Correu bem? R. - Não, como é que querias que neste quadro corresse bem? Nem a FNLA nem a UNITA tinham quadros minimamente preparados para governar o país, mas o pior é que não tinham consciência da própria ignorância. Um dos ministros, quando se discutia o Orçamento, queria que lhe entregassem pessoalmente, e em notas, a verba atribuída ao seu Ministério e, como isso lhe fosse recusado, assaltou o Banco Central com quarenta soldados para recolher os fundos. Ao MPLA, com alguma gente de qualidade, cabem as maiores responsabilidades por tudo o que aconteceu depois, quer na fase imediatamente a seguir à tomada do poder, com uma pseudo-ortodoxia marxista copiada do figurino europeu e completamente inadaptada ao contexto sociológico de Angola, quer, mais tarde, pela criação de um Estado totalmente indiferente ao sofrimento do povo e assente na corrupção de uma pequena classe oligárquica. Tive várias conversas com Agostinho Neto sobre os perigos da concepção totalitária do poder que deixara se instalasse. Nesse sentido, o afastamento de grupos como a Revolta Activa e de homens como Mário Pinto de Andrade e Gentil Viana, foi um erro fatal. P. - Como é que reportavas ao governo português essas tuas experiências e o estado das coisas em Angola? R. - Comunicava frequentemente com o Melo Antunes. Mas quando a guerra de Luanda começou a crescer em brasa e numa escalada imparável, que vi de perto (não consegui evitar que matassem, no quintal da minha casa, diante de mim, dois homens, cena que fotografei; nem que bombardeassem parte da casa, comigo lá a morar; nem impedir que me enchessem o jardim com gatos pretos pendurados nas árvores), quando era evidente ser inevitável a destruição do país e totalmente impossível qualquer forma de entendimento a nível político, escrevi uma carta aos três presidentes dos Movimentos, contando o que pensava da situação angolana. Agostinho Neto ficou muito zangado comigo e Jonas Savimbi entendeu que eu devia deixar Angola. Vim a Lisboa falar com o Presidente da República e com a Comissão dos Vinte e expliquei-lhes o meu ponto de vista - ou nós tomávamos militarmente o controle da situação até à data da Independência, o que já parecia impossível, ou então era melhor começar, de imediato, a preparar a evacuação dos portugueses que lá viviam e que quisessem voltar, o que de resto estava a ser preparado por uma equipa de militares de grande capacidade. [Ao ouvi-lo, pedi-lhe se me deixava ler a tal carta, polémica e dura. E não resisto a transcrever o seu final. Datada de princípios de Setembro de 1975, foi dirigida ao Colégio Presidencial e aos presidentes dos três Movimentos de Libertação de Angola e é assim que Vasco Vieira de Almeida termina: "... Estou em Angola, apenas para ajudar o povo angolano a libertar-se das sequelas do colonialismo e a construir por suas mãos, democraticamente, o futuro que escolher. Sei que não é a via da violência e da corrupção que o povo pretende. Enquanto estiver neste cargo, que não pedi, cabe-me apontar a prepotência e a incapacidade, venham de onde vierem, e tenho o dever único de defender os superiores interesses da nação independente que Angola quer ser. Fá-lo-ei enquanto estiver convencido de que a minha presença tem qualquer utilidade. Mas pretendo que fique bem claro que não colaborarei na farsa trágica que é neste momento o Governo do país, nem aceitarei ser cúmplice passivo num desastre que se me afigura inevitável e que venho denunciando há largo tempo, se não se alterarem as condições políticas nacionais. Quero, por isso, afirmar que, a manter-se o quadro actual, não vejo sentido em continuar no meu posto e deixarei aos que ficarem a responsabilidade histórica pela destruição dos destinos deste país, que lhes competia defender."] P.- Regressas a Portugal e regressas à advocacia. De vez. R. - De vez, sim. Esse regresso à advocacia, em 1976, depois de vir de Angola, foi também complicado. O país vivia um clima de grande agitação e os advogados não eram propriamente um género de primeira necessidade. O André Gonçalves Pereira foi um grande amigo e cedeu-me uma sala no seu escritório, sem nenhuma contrapartida. Naquela altura eu estava sem um tostão, todas as minhas acções tinham voado em fumo, com as nacionalizações. Estive um ano à espera do meu primeiro cliente. Passei esse ano a estudar de novo e furiosamente os manuais de Direito. Tinha estado muito tempo longe deles. Um dia, como tenho muita sorte, começaram a aparecer-me clientes e, passado algum tempo, montei o escritório, onde estás e onde trabalham advogados, na maioria dos casos muito jovens e muito bons profissionais. P. - Estamos a chegar ao fim, Vasco, mas vou ainda disparar três ou quatro questões, das breves. Do teu ponto de vista qual é a pior herança que o regime fascista nos legou e que ainda se faça sentir na sociedade portuguesa? R. - O conformismo e o corporativismo. P. - Achas que o país entrou em depressão? R. - Entrou, do meu ponto de vista de forma injustificada, tão injustificada como a euforia de há poucos anos atrás. Há razões de grande preocupação, no plano económico, é verdade, e também porque as pessoas sentem a inexistência de um projecto político e não reconhecem autoridade no exercício do poder actual. O projecto dos Estados Gerais ficou por cumprir. Tenho pena, porque era mobilizador. Mas é uma situação que, como todas em política, é reversível, desde que todos nos empenhemos nisso e nos corresponsabilizemos. P.- És do que pensas que os novos de hoje pertencem a uma "geração rasca"? R. - De todo. Jovens rascas houve-os em todos os tempos, tal como velhos rascas. A sociedade portuguesa está em transição. Foram gerações mais velhas que criaram um sistema de ensino ineficaz e complacente, que contribuíram para destruir em grande parte o papel da família, que confundiram liberdade com irresponsabilidade, que só falaram de direitos e não de deveres, que criaram um clima de cepticismo e de cinismo. De que é que estavam à espera? P.- Para ti, continua a fazer sentido falar-se em "esquerda" e em "direita"? E, caso aches que sim, o que é que melhor caracteriza "ser de esquerda"? R. - Claro que continua a fazer sentido. Há valores que são historicamente património da esquerda: a liberdade, a solidariedade, a capacidade de projectar o futuro, de olhar para a História com optimismo... Ser de esquerda, hoje, exige uma solidariedade global e uma exemplaridade individual que, em cada momento e na acção prática, traduza esses valores com eficácia. O grande desafio é sempre o mesmo - acreditar ser possível realizar a utopia. P.- A "direita" não tem utopias? R. - Não. O sonho e a utopia são próprios à natureza da esquerda. P.- Dá-me uma palavra de eleição. R. - Ana. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Segunda-feira, 7 de Maio de 2001 "Un bel''uomo"! Para além de ser um grande advogado, de ser casado com "una bella donna", senhora de uma serena inteligência-com-dengue (só para entendidos que nasceram e viveram em África!), de ter salteado a política quando ela se praticava em clandestino e, já em liberdade, a ter revisitado de passagem, quase à ilharga dos convencionais percursos do poder, de ter a memória fresca e grata dos tempos de formação (menino de casa de seus pais), este lisboeta impenitente que ainda larga o escritório nas tardes de sexta-feira para ir a correr para casa, para o piano que o espera com uma partitura aberta, Vasco Vieira de Almeida é de facto, insisto, um belo homem. Quando o convidei para esta "Conversa" reagiu, com o sentido de humor que pratica mordazmente: " O melhor é entrar já em estágio!". Telefonei-lhe para casa, numa tarde de sexta-feira e interrompi-lhe o estudo do "Concerto Italiano" de Bach. O encontro ficou marcado para a semana seguinte, com almoço, no seu escritório. No prédio, ali para o Marquês, alguns andares têm placa com o seu nome. Lisboa derrama-se, linda como poucas, de quase todos os ângulos das varandas. No interior do último andar, onde conversámos, as paredes dão-nos a ver muito do melhor da pintura portuguesa. Sem tempo para derivas, passámos à sala de jantar. Ampla, luminosa, sóbria, de bom gosto. Papaia "farcie" com "cocktail" de gambas, pato deliciosamente lacado, batata palha e vagens como acompanhamento e, a fechar, um aveludado leite creme - esta a ementa com que a exímia cozinheira, transferida de sua casa para o escritório, nos brindou. Sem esquecer, claro, um excelente tinto do Dão. As duas horas previstas correram céleres e souberam-me a pouco, de tanto mais que havia a arrecadar para estes registos impressos em tiragem dominical de princípio de mês. Mas eu sabia que o tempo de uma sociedade de sucesso como aquela não se compadece com o outro tempo, o tempo destas "Conversas". Nem mesmo para um melómano, como o meu conversado de hoje, o metrónomo da casa que comanda poderia parar e conceder um qualquer ritmo de excepção. Regra aceite, conversa acabada! Maria João Seixas - Vasco, diz-me quem és. Vasco Vieira de Almeida - Tudo aquilo que eventualmente possa ter de bom, não tenho disso qualquer dúvida, tem uma ligação directa com meu pai, que era uma pessoa extraordinária, em todos os aspectos. Talvez o homem mais inteligente e culto que conheci, com um grande sentido de humor. Era um homem de valores, extremamente simples e tinha uma forma única de comunicar as coisas que sabia e em que acreditava; não as ensinava, comunicava-as porque existia. Nem meu irmão nem eu fomos à escola. Fizémos a primária em casa. O meu pai fez uns livrinhos, um de gramática portuguesa com 16 páginas, um de francês com 20 e tal páginas e um de matemática com 30. E as lições eram dadas conversando. O que aprendi nesses quatro anos de instrução primária, o que ele me quis ensinar e tudo o que me transmitiu sem me ensinar, foi de uma riqueza excepcional. P. - Estamos a falar dos anos 40? R. - Sim, isto passa-se na década de 40. Esses anos marcaram-me profundamente e meu pai influenciou-me para o resto da vida. Era senhor de uma grande coragem (foi preso aos 74 anos, depois das eleições do Delgado). Com ele e com o apurado sentido de humor que tinha, aprendi a não me levar excessivamente a sério. Também foi dele que herdei o rigor de raciocínio que, ao longo do tempo e profissionalmente, me tem sido indispensável. Insistia sempre na necessidade de busca permanente de uma sólida lógica interna do pensamento que não permita pôr em causa as conclusões, a não ser que se rejeitem as premissas. P. - Qual era a área de formação do teu pai? R. - Filosofia. Era professor de Filosofia na Faculdade de Letras. A um dado momento quis que eu fosse estudar para França, porque achava que o ensino em Portugal não era grande coisa. O que diria hoje... Não fui capaz. Quando começou a aproximar-se a data de ir para Paris dei-me conta que seria uma enorme estupidez partir, porque estando ao pé dele aprenderia muito mais do que em qualquer Universidade francesa. Foi a coisa mais inteligente que fiz na minha vida. Portanto, tudo o que tenha de positivo foi-me transmitido por ele; as coisas más essas ganhei-as eu, com muito esforço próprio. Fiz sempre o que quis, e o que não fiz foi o que não tive qualidades para realizar. Esta consciência dá um razoável sossego. Sou livre. Não dependo de ninguém. P. - Esse grau de independência foi sempre o objectivo da tua vida? R. - Sempre. P. - E a política, como é que a política habitou essa tua liberdade? R. - Poder fazer o que queria, juntamente com os valores que meu pai me tinha ensinado, deu, entre outras coisas, que me metesse na política. Estive no MUD Juvenil, onde conheci muita gente, entre a qual pessoas notáveis ligadas ao PC. Na altura eu era um fanático marxista, tendo devorado uma boa parte de "O Capital"! Por outro lado, tive a sorte de conhecer e conviver, lá em casa, com os amigos do meu pai, pessoas fora de série num país atrasado, cinzento e opressivo como era o nosso, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Mário Soares, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Câmara Reis... Alguns vinham à noite para jantar e ficavam horas à conversa. Discutia-se sobre tudo, num tom muito despretensioso. Assistir a essas reuniões foi um banho de cultura e civilização, depois do qual só um burro não absorveria para o resto dos seus dias uma série de valores, de princípios, de conhecimentos. P. - O teu gosto pela música veio por influência da tua mãe? R. - Dos meus pais. Meu pai, embora não tocasse nenhum instrumento, tinha um grande sentido musical. Minha mãe cantava. Comecei muito cedo a ir a concertos e aprendi piano. Tive as primeira lições com uma professora excelente, Maria Beatriz Soares, depois com o Campos Coelho, a seguir fiz exames de solfejo e piano no Conservatório e, durante dois anos, fui aluno do Lopes Graça de Composição e História da Música, na Academia de Amadores de Música. P. - E a política? Voltemos a ela para me falares dos teus envolvimentos. Viveste situações de risco antes do 25 de Abril? R. - De grande risco, não. O regime tratava os chamados "intelectuais" presos de um modo completamente diferente do aplicado aos dirigentes clandestinos, aos operários e aos camponeses. Fui preso duas vezes. A primeira, por ter agredido o agente da Pide quando foi buscar o meu pai a casa para o levar preso. A outra, em 63, por ter colaborado na fuga de Caxias de alguns dirigentes do PC. Na altura, era já director do Banco Português do Atlântico e a Pide imaginava que, por ter aquele lugar, devia ser eu quem tinha a responsabilidade de arranjar financiamentos para o partido. Mas a repressão, que era violentíssima para algumas pessoas, tinha também aspectos de um provincianismo caricato. Foram-me buscar a casa às 6 da manhã. Por lá estiveram algum tempo, como era habitual, a apreender livros e correspondência - um dos agentes cismou que a "República" de Platão era uma obra perigosíssima e só quando lhe expliquei que o autor da obra fora, em tempos, comunista mas entretanto renegara completamente a ideologia, é que acedeu em deixar-me o livro em casa - e, acabada essa função, saímos. Dei-me então conta que nem carro tinham levado e estivemos todos, em plena Lapa, a chamar um táxi que nos transportasse para a António Maria Cardoso. P. - Foste maltratado? R. - Não. Estive oito dias nos curros. Obviamente há experiências mais divertidas, mas para mim foi uma época inesquecível. Conheci então pessoas excepcionais, entre elas, um amigo para a vida, o Dr. Arménio Ferreira. Numa das celas, por onde passei depois, estava também um juíz, o Dr. Sebastião Ribeiro, já de certa idade, que tinha ajudado o Henrique Galvão a fugir da prisão, e um médico, Maldonado Freitas, de uma família muito conhecida das Caldas. Certa noite o juiz sentiu-se mal, pareceu-nos que estava a ter um ataque cardíaco. Enquanto o Maldonado Freitas lhe punha panos molhados na cara e lhe dava umas palmadinhas, passei toda a noite a bater na porta da cela a pedir que alguém viesse socorrê-lo. Ninguém apareceu. No dia seguinte, durante a visita da Ana Maria, pedi-lhe que avisasse a filha do Dr. Sebastião Ribeiro de que o pai estava mal, sem assistência médica, que podia morrer ali e era preciso denunciar a situação. A filha escreveu imediatamente uma carta duríssima ao Salazar, dizendo-lhe que se o pai morresse, ela considerá-lo-ia o assassino. Em qualquer ditadura que se preze isto teria dado logo prisão para quem escrevera. Em Portugal deu que o Salazar lhe respondeu. Com um cartão, que vi e sei de cor. Tinha em cima o nome - António de Oliveira Salazar, em baixo - Presidente do Conselho de Ministros, sendo que a profissão estava delicadamente riscada. O texto: "António de Oliveira Salazar, cumprimenta V.Exa. e informa que seu pai se encontra bem e goza de assistência médica permanente." De facto, o Maldonado estava na mesma cela e era médico. P. - Estiveste preso durante quanto tempo? R. - Dois meses. Não sabia ainda a razão porque tinha sido preso e pedi à Ana Maria que tentasse perceber de que é que se tratava, quanto tempo poderia ter de cumprir e me desse um sinal. Combinámos que no dia das encomendas, a seguir a essa visita, ela me mandaria dois pastéis de nata se a coisa não tivesse muita gravidade, meia dúzia se fosse grave, uma dúzia se fosse gravíssimo e desse para eu ficar anos. Quando a encomenda chegou, fiquei varado e julguei que ia ser condenado a prisão perpétua: quarenta e oito pastéis! O que eu não sabia é que a Ana tinha combinado o mesmo sinal com as mulheres dos outros presos, porque na altura estava numa cela com muita gente... P. - Como é que foste recebido no Banco quanto te libertaram? R. - Fui ter com o dono do Banco, que era o Cupertino de Miranda e disse-lhe que não valia a pena dizer-me nada, que ia pedir a demissão naquele instante, porque era óbvio não poder retomar as funções que tinha depois de ter sido preso por ajudar comunistas a fugirem. Libertava-o assim da incomodidade de me despedir. Nota que durante os dois meses que estive preso o meu ordenado foi religiosamente entregue à Ana. O velho Cupertino disse-me: "Oh homem, deixe-se de disparates, vá para a sua secretária que os depósitos até subiram !". P. - Hás-de convir que foi uma surpreendente atitude. Reveladora das contradições que o regime também comportava. R. - A minha entrada para o Banco já tinha sido curiosa. Eu era estagiário de advocacia no escritório do Mário de Castro, tinha vinte e poucos anos, tratava de uns tristes casos de divórcio e não via a minha vida a andar para a frente. Um dia recebo um convite para ser director-geral de um Banco. Não conhecia a pessoa que me falou de lado nenhum. Disse-lhe que mal sabia distinguir um cheque de um piano de cauda, ele achou que isso não tinha a mais pequena importância e marcou-me um encontro. Naquele tempo eu achava que os Bancos eram a marca mais visível do capitalismo fascista e preparei-me a rigor para a entrevista: vesti-me de camisa preta e levei na mão um livro de um economista marxista, Maurice Dobb, "On Economic Theory and Socialism", bem à vista. Quando chego ao gabinete, vejo um homem novo que me diz, ainda eu não tinha dado dois passos: "Até que enfim tenho um marxista aqui no Banco!" Chamava-se José Fernando Martins de Carvalho e foi, até morrer, o meu maior amigo. Morreu cedo, num desastre de aviação. Era o director-geral do Banco e ia passar a administrador. Acabei, mais tarde, por vir a suceder-lhe. Era uma pessoa absolutamente rara, de enorme carácter e inteligência, que me disse ser monárquico integralista e que era óptimo que eu fosse marxista porque, como íamos trabalhar juntos, as posições, assim, ficavam equilibradas. P. - Esses anos no Português do Atlântico acabaram por te agarrar à tal actividade fundamental do "capitalismo fascista", já que ainda tentaste outras experiências bancárias antes do 25 de Abril. R. - Foi profissionalmente uma experiência muito estimulante e divertida e onde aprendi imenso. O Cupertino de Miranda era, também, um homem excepcional. Um dia acordei com a sensação que, com trinta e poucos anos, para além de estar a ganhar o que para mim era muito dinheiro (já era administrador nessa altura), nada mais de muito excitante poderia acontecer-me profissionalmente. Senti que começava a morrer, se continuasse no mesmo lugar. Fui ter com o Cupertino de Miranda e disse-lhe isso mesmo, sugerindo que o Banco tomasse a liderança no financiamento de actividades mais directamente ligadas a projectos de desenvolvimento estrutural do país. Ele achou que essa tarefa não podia partir de uma única instituição de crédito e compreendi que teria de afastar-me. Tive então a ideia de recomeçar de novo, com um Banco que eu pudesse inteiramente dirigir. Foi quando Manoel Boullosa, outro homem extraordinário, veio ter comigo e deu-me carta branca para se comprar o Crédito Predial. O arranque a sério deu-se por volta de 71/72, mas só lá estive dois anos, porque entretanto aconteceu o 25 de Abril... P. - ... que te convocou de imediato para a actividade política, agora a céu aberto! R. - E a Ana Maria deu-me então um grande apoio. Concordou inteiramente com o facto de, tendo eu tomado sempre posições contra a ditadura, não poder, agora que a liberdade nos tinha sido restituída, pôr-me de lado sem colaborar no processo de construção da democracia. E a 26 de Abril de 74 aceitei o convite da Comissão Coordenadora do Programa do MFA, para tomar medidas económicas de emergência, evitar fugas de capitais, corridas a Bancos, etc... É aí que faço grande amizade com o Ernesto Melo Antunes e o Vítor Alves. São, para mim, as duas grandes referências do 25 de Abril. Tinham ambos uma percepção exacta do estado do país e da prudência que era indispensável usar para conduzir as coisas. Tanto mais que, de um dia para o outro, só se encontravam anti-fascistas radicais. Gente que antes nunca tinha feito nada, nunca se tinha pronunciado... O meu receio a seguir ao 25 de Abril era que, com a nossa situação geo-estratégica, num país muito conservador (como ainda é hoje), com uma Igreja muito forte (como continua a ser), qualquer forma de extremismo seria profundamente contra-revolucionária e só poderia trazer a direita outra vez de volta. P. - Não te surpreendeu a forma como o regime caiu, esboroando-se como um castelo de cartas? R. - Não. Sabia que o regime estava podre e que a guerra colonial forçosamente acabaria com ele, mas achava que podre iria manter-se mais algum tempo. Não lhe via o fim. Ainda por cima tinha havido, durante o Caetanismo, uma grande abertura económica, as pessoas tinham sentido uma certa descompressão, tínhamos entrado na EFTA. Marcelo Caetano - de quem era amigo e que foi o melhor professor que tive na Faculdade - tentou imediatamente uma liberalização, mas hesitou e não teve força para controlar a extrema-direita do regime e gerir as contradições agudizadas pela guerra. Não era fácil, pelo menos até ao "16 de Março", prever a queda rápida do regime, apoiado num exército que tinha sempre sido um pilar do sistema, com uma oposição dividida e uma polícia política que, embora de má qualidade, funcionava bem com as denúncias que de todo o lado recebia. Só de facto com um golpe militar, como aconteceu, provocado pelo cansaço da guerra colonial e no quadro de quase total isolamento do país. P. - Aceitaste depois ser Ministro da Coordenação Económica no primeiro Governo Provisório? R. - Foi uma experiência muito frustrante. Naquelas condições, em que quase ninguém era realmente o que era e poucos tentavam agir com uma visão estratégica, não era possível impor qualquer directriz de fundo, tudo se passava a quente, no momento. O Ernesto Melo Antunes disse-me muitas vezes - "Queres suster a onda, mas o que é preciso é cavalgá-la." Saí na crise Palma Carlos. P. - Regressaste à tua vida civil de antes? R. - Voltei para o Crédito Predial, onde estive até ao fim de 74. Depois, no princípio de 75, tive um convite, creio que do marechal Costa Gomes que mandou alguém falar comigo, para saber se eu queria ir para Angola e integrar o Governo de Transição, que devia preparar a passagem para a independência. O MPLA, de que eu conhecia bem alguns dirigentes, também me contactou e convenceram-me a ir dar uma ajuda na área económica. Levei a família, que lá ficou até rebentar a guerra de Luanda. Estive em Angola de Janeiro a Setembro de 75. Foi uma experiência fabulosa, mas muito complicada. P. - Queres descrever-me o quadro dessa "complicação" e das maiores dificuldades com que foste confrontado? R. - Portugueses éramos dois - o engenheiro Antunes da Cunha, que tinha a pasta das Obras Públicas e eu, como ministro da Economia. Depois havia os ministros angolanos, para além de três primeiros-ministros, representantes dos três Movimentos. Muitos vinham para o Conselho de Ministros com as pistolas Walter 9 mm em elegantes pastas Samsonite. P. - Chegou a haver tiroteio no Conselho de Ministros? R. - Não. Mas creio que todos estávamos preparados para nos atirarmos para debaixo da mesa em caso de necessidade. As dificuldades principais resultavam da falta de orientações de Lisboa, do extremar de posições políticas que era um reflexo da situação conturbada em Portugal, das repercussões da guerra fria em Angola e do choque dos três Movimentos de Libertação que, obviamente, apenas estavam interessados em tomar o poder. Sobretudo, rapidamente se tornou claro que era impossível impedir os erros resultantes de se tentar implantar um regime de planeamento económico centralizado e estatizado, como queria o MPLA. Tentei fazer um esboço das linhas de orientação a adoptar para evitar o colapso económico e permitir o desenvolvimento futuro do país, que foi aceite pelos três Movimentos, mas que ninguém pensava em adoptar. Nesse aspecto a experiência foi absolutamente falhada. P. - Também trabalhaste na preparação do primeiro Orçamento Geral e no projecto de Constituição do futuro Estado angolano. Correu bem? R. - Não, como é que querias que neste quadro corresse bem? Nem a FNLA nem a UNITA tinham quadros minimamente preparados para governar o país, mas o pior é que não tinham consciência da própria ignorância. Um dos ministros, quando se discutia o Orçamento, queria que lhe entregassem pessoalmente, e em notas, a verba atribuída ao seu Ministério e, como isso lhe fosse recusado, assaltou o Banco Central com quarenta soldados para recolher os fundos. Ao MPLA, com alguma gente de qualidade, cabem as maiores responsabilidades por tudo o que aconteceu depois, quer na fase imediatamente a seguir à tomada do poder, com uma pseudo-ortodoxia marxista copiada do figurino europeu e completamente inadaptada ao contexto sociológico de Angola, quer, mais tarde, pela criação de um Estado totalmente indiferente ao sofrimento do povo e assente na corrupção de uma pequena classe oligárquica. Tive várias conversas com Agostinho Neto sobre os perigos da concepção totalitária do poder que deixara se instalasse. Nesse sentido, o afastamento de grupos como a Revolta Activa e de homens como Mário Pinto de Andrade e Gentil Viana, foi um erro fatal. P. - Como é que reportavas ao governo português essas tuas experiências e o estado das coisas em Angola? R. - Comunicava frequentemente com o Melo Antunes. Mas quando a guerra de Luanda começou a crescer em brasa e numa escalada imparável, que vi de perto (não consegui evitar que matassem, no quintal da minha casa, diante de mim, dois homens, cena que fotografei; nem que bombardeassem parte da casa, comigo lá a morar; nem impedir que me enchessem o jardim com gatos pretos pendurados nas árvores), quando era evidente ser inevitável a destruição do país e totalmente impossível qualquer forma de entendimento a nível político, escrevi uma carta aos três presidentes dos Movimentos, contando o que pensava da situação angolana. Agostinho Neto ficou muito zangado comigo e Jonas Savimbi entendeu que eu devia deixar Angola. Vim a Lisboa falar com o Presidente da República e com a Comissão dos Vinte e expliquei-lhes o meu ponto de vista - ou nós tomávamos militarmente o controle da situação até à data da Independência, o que já parecia impossível, ou então era melhor começar, de imediato, a preparar a evacuação dos portugueses que lá viviam e que quisessem voltar, o que de resto estava a ser preparado por uma equipa de militares de grande capacidade. [Ao ouvi-lo, pedi-lhe se me deixava ler a tal carta, polémica e dura. E não resisto a transcrever o seu final. Datada de princípios de Setembro de 1975, foi dirigida ao Colégio Presidencial e aos presidentes dos três Movimentos de Libertação de Angola e é assim que Vasco Vieira de Almeida termina: "... Estou em Angola, apenas para ajudar o povo angolano a libertar-se das sequelas do colonialismo e a construir por suas mãos, democraticamente, o futuro que escolher. Sei que não é a via da violência e da corrupção que o povo pretende. Enquanto estiver neste cargo, que não pedi, cabe-me apontar a prepotência e a incapacidade, venham de onde vierem, e tenho o dever único de defender os superiores interesses da nação independente que Angola quer ser. Fá-lo-ei enquanto estiver convencido de que a minha presença tem qualquer utilidade. Mas pretendo que fique bem claro que não colaborarei na farsa trágica que é neste momento o Governo do país, nem aceitarei ser cúmplice passivo num desastre que se me afigura inevitável e que venho denunciando há largo tempo, se não se alterarem as condições políticas nacionais. Quero, por isso, afirmar que, a manter-se o quadro actual, não vejo sentido em continuar no meu posto e deixarei aos que ficarem a responsabilidade histórica pela destruição dos destinos deste país, que lhes competia defender."] P.- Regressas a Portugal e regressas à advocacia. De vez. R. - De vez, sim. Esse regresso à advocacia, em 1976, depois de vir de Angola, foi também complicado. O país vivia um clima de grande agitação e os advogados não eram propriamente um género de primeira necessidade. O André Gonçalves Pereira foi um grande amigo e cedeu-me uma sala no seu escritório, sem nenhuma contrapartida. Naquela altura eu estava sem um tostão, todas as minhas acções tinham voado em fumo, com as nacionalizações. Estive um ano à espera do meu primeiro cliente. Passei esse ano a estudar de novo e furiosamente os manuais de Direito. Tinha estado muito tempo longe deles. Um dia, como tenho muita sorte, começaram a aparecer-me clientes e, passado algum tempo, montei o escritório, onde estás e onde trabalham advogados, na maioria dos casos muito jovens e muito bons profissionais. P. - Estamos a chegar ao fim, Vasco, mas vou ainda disparar três ou quatro questões, das breves. Do teu ponto de vista qual é a pior herança que o regime fascista nos legou e que ainda se faça sentir na sociedade portuguesa? R. - O conformismo e o corporativismo. P. - Achas que o país entrou em depressão? R. - Entrou, do meu ponto de vista de forma injustificada, tão injustificada como a euforia de há poucos anos atrás. Há razões de grande preocupação, no plano económico, é verdade, e também porque as pessoas sentem a inexistência de um projecto político e não reconhecem autoridade no exercício do poder actual. O projecto dos Estados Gerais ficou por cumprir. Tenho pena, porque era mobilizador. Mas é uma situação que, como todas em política, é reversível, desde que todos nos empenhemos nisso e nos corresponsabilizemos. P.- És do que pensas que os novos de hoje pertencem a uma "geração rasca"? R. - De todo. Jovens rascas houve-os em todos os tempos, tal como velhos rascas. A sociedade portuguesa está em transição. Foram gerações mais velhas que criaram um sistema de ensino ineficaz e complacente, que contribuíram para destruir em grande parte o papel da família, que confundiram liberdade com irresponsabilidade, que só falaram de direitos e não de deveres, que criaram um clima de cepticismo e de cinismo. De que é que estavam à espera? P.- Para ti, continua a fazer sentido falar-se em "esquerda" e em "direita"? E, caso aches que sim, o que é que melhor caracteriza "ser de esquerda"? R. - Claro que continua a fazer sentido. Há valores que são historicamente património da esquerda: a liberdade, a solidariedade, a capacidade de projectar o futuro, de olhar para a História com optimismo... Ser de esquerda, hoje, exige uma solidariedade global e uma exemplaridade individual que, em cada momento e na acção prática, traduza esses valores com eficácia. O grande desafio é sempre o mesmo - acreditar ser possível realizar a utopia. P.- A "direita" não tem utopias? R. - Não. O sonho e a utopia são próprios à natureza da esquerda. P.- Dá-me uma palavra de eleição. R. - Ana. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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