Medina Carreira critica processo de privatizações por permitir que as melhores empresas passem para mãos estrangeiras
"Sou Um Antifederalista e Um Europessimista"
Por CRISTINA FERREIRA
Segunda-feira, 23 de Abril de 2001 A Europa não vai suportar a reacção que os pequenos países terão devido ao modo como está a avançar a sua construção, defende Medina Carreira. E diz que foi abandona a discussão das questões fundamentais para a posição do país na Europa A construção da União Europeia não pode ir no sentido do esbatimento dos Estados nacionais, devido à sua história e aos conflitos de interesses nacionais, considera Henrique Medina Carreira, um dos fundadores do PS e ministro das Finanças do I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares. Diz também que tudo aponta para que se esteja a caminhar no sentido de uma federação ou de um directório, o que levará ao fim da constituição da Europa. Fala do exemplo americano, lembrando o que separa a sua experiência da europeia: a luta comum contra a colonização, uma língua única. E ainda a valorização do poder dos estados com menor peso demográfico e económico. Medina Carreira pensa que Portugal não tinha alternativa à entrada na UE, mas critica que isso não tenha sido explicado à população, nem os aspectos negativos que ela também acarreta. E considera que, além de terem faltado reformas, o optimismo da classe política levou ao abandono da discussão das questões fundamentais para a nossa posição na Europa. Na primeira parte desta entrevista, publicada na edição de ontem, falou do que considera serem os vícios da vida partidária e de como isso é negativo para a democracia. Pensa que, devido ao crescente endividamento e desequilíbrio das contas externas, a curto prazo será necessário restringir a procura interna e os rendimentos, e incentivar a poupança. PÚBLICO - O que espera do Tratado de Nice? HENRIQUE MEDINA CARREIRA - Nada de bom. As questões que se colocam hoje à UE são estas: a Europa vai evoluir em todos os domínios no sentido do alargamento? Ou vai evoluir no sentido federal? A Europa dará um passo muito errado se desconhecer a sua história, como agora se quer fazer. Falamos línguas diferentes, temos passados de rivalidades intensas, registamos graus de desenvolvimento distintos e não vejo como, neste contexto, poderemos caminhar consistente e rapidamente para uma unidade política. Daí achar uma tolice pretender-se que a Europa vá no sentido do esbatimento dos Estados nacionais. E isso constatar-se-á quando os problemas se agudizarem, quando tivermos um interesse altamente coflituante com o de Espanha. Nesse caso, ver-se-á que portugueses são portugueses, espanhóis são espanhóis. O caso de Figo, um senhor que até é português, nem é espanhol, é exemplar, pois embora ocorra num espaço em que nem sequer se atravessou fronteiras, a Catalunha rebelou-se contra Castela. P. - Como vê uma Europa dirigida por um directório de grandes países? R. - Um disparate. P. - Que papel está reservado numa nova UE aos países pequenos e periféricos, como Portugal? R. - Pessoalmente, acho que a Europa tal como está a avançar não vai suportar a reacção dos pequenos. Se se pretende esbater os nacionalismos, se se quer estrangular o poder político nacional, se se caminhar, mesmo que mascaradamente, para uma federação ou para o directório, como tudo aponta, será o fim da constituição da Europa, mais ou menos cedo. P. - O federalismo não é o modelo que melhor defende os interesses dos países mais pequenos? R. - É preciso perceber que no dia em que formos governados por governantes eleitos em Portugal, mas forçados a fazer o que lhes é determinado por outros governantes que vivem em Bruxelas, em Bona ou em Paris, criar-se-á um conflito inevitável de carácter político com consequências nefastas. Os que cá mandam não têm poder, os que vão decidir as grandes coisas não estão cá, nem nós temos escrutínio relativamente às ideias que vão sendo postas em prática. P. - André Gonçalves Pereira fala em federalismo, entendido como o tratamento federal de certas matérias, não no sentido de Portugal passar a fazer parte de um outro Estado. R. - O europeu não é o mesmo que o americano - admito que haja diferenças entre um americano do Sul e outro do Norte, mas todos se sentem americanos, falam a mesma língua. Na Europa os franceses sentem-se franceses, os alemães, alemães. Quantas guerras houve por causa das fronteiras na Europa! P. - Mas é aí que reside o sucesso europeu: a Europa está em paz há mais de 50 anos. R. - Só que as rivalidades entre franceses e alemães, como se tem visto, são poderosas. Julgar que a Europa caminha sempre no sentido do esbatimento das rivalidades é, quanto a mim, um erro. A razão última da tentativa de unificação europeia foi "amansar" franceses e alemães. Começou-se, em 1954, pela CED, sem êxito. P. - Discorda frontalmente da união política? R. - A ideia de unificação política é uma ideia que, se for levada a cabo a todo o transe, constituirá o provável grande factor de ruptura europeia. E não acho aconselhável, até porque, como já referi, portugueses são portugueses, espanhóis são espanhóis, franceses são franceses. Não é a mesma coisa que nos EUA, que nasceram contra o colonizador, em circunstâncias completamente diferentes. E quando os EUA se unificaram, em 1776, viviam na zona entre três e quatro milhões de habitantes, solidários. Depois, tudo aquilo foi conquistado e aglutinado pelos colonos e, portanto, há uma história e uma língua comuns, muito diferente da Europa. Por outro lado, existe nos EUA o culto do individualismo. É gente com uma mentalidade, hábitos e uma memória histórica de 200 anos, distintas da europeia. Lembre-se a questão balcânica, um bom exemplo dos profundos conflitos sociais e étnicos que se vivem dentro da Europa, embora seja um caso especial, muito complexo. Mas prova como as hostilidades desencadeadas por etnias dentro de espaços geográficos e políticos comuns podem inviabilizar o bom convívio entre povos e provocar rupturas políticas. P. - Como é que se legitima e fortalece o ideal europeu? R. - Uma Europa das Comunidades, uma Europa de nações, com governos locais com poder muito amplo. E o que vier a ser centralizado na UE deve ser sem esmagamento dos pequenos. Nas últimas eleições nos EUA, o candidato com menos votos foi o que ganhou, uma solução para nós esquisita. No entanto, é preciso perceber que este modelo de tipo presidencial americano deu mais peso às zonas menos povoadas e deve-se a esta sábia solução o sucesso da união americana. Houve que transigir valorizando Estados que não tinham o peso demográfico e económico de outros. Nos EUA o caminho seguido foi o oposto do decidido em Nice. Nice marca e reforça hegemonias. P. - Em 1992, numa entrevista, fez a seguinte observação: "Compreendo que os alemães se recusem a fazer mais sacrifícios." Com Nice a frase ganhou actualidade. R. - É verdade. E nessa entrevista discordava ainda da maneira aligeirada como em Portugal se tratava a nossa integração na Europa. Cá só se dá relevância aos problemas quando ganham tal dimensão que são já dificilmente "domesticáveis". Um político, mesmo na reserva como eu, deve ter a noção da antecipação do que pode vir a acontecer. P. - Quer concretizar melhor essa ideia? R. - Quando Portugal pediu a adesão à CEE, a construção da Europa existia há cerca de 20 anos e com poucas realizações: uma delas era a União Aduaneira - criou-se um espaço livre dentro dos seis, com barreiras alfandegárias para fora -, a outra estava relacionada com a entrada de mais três membros, Inglaterra, Irlanda e Dinamarca. E essa União Aduaneira foi possível por se tratar de economias com graus de desenvolvimento próximos, que podiam competir entre si sem mossas e sem que algumas ficassem para trás. P. - Em Portugal não se pensa a longo prazo? R. - É um pouco assim, e quando se deu a "aceleração Delors" dever-se-ia ter falado mais claro à sociedade, devia ter-se agido politicamente em conformidade com as necessidades e previsíveis dificuldades. P. - Porque é que as vozes mais críticas da estratégia portuguesa de integração não se fizeram ouvir? R. - Porque o PS e o PSD queriam entrar depressa para a UE na mira dos fundos e não "deram" voz a um certo sector de opinião. P. - Portugal tinha outra alternativa? R. - Esse é o problema. Pergunta: qual é então a sua alternativa? Mas a questão não é não haver alternativa, é que, se não tínhamos outro caminho, então dizia-se com clareza à população. E não me lembro de alguém o fazer, esclarecendo, em particular, o que há de bom e de negativo na nossa entrada para o espaço europeu. Quando se entra para um clube que se pretende de iguais, é preciso que haja igualdade de circunstâncias. E não havia. P. - A UE é tudo menos um clube entre iguais... R. - Certas coisas só se conseguem à custa de muitos tombos. Pois bem, será o que daqui em diante nos poderá acontecer. Agora beneficiamos do euro, que estabilizou o câmbio. Mas como o euro também implicou perda de poderes, como o monetário, o cambial e agora o fiscal, ficámos de mãos atadas. P. - Estando de fora do euro, o Banco de Portugal também não teria grande autonomia... R. - É certo. O que não se fez foi extrair todas as consequências do facto, através de políticas de reforma com alcance e profundidade. No sector político, verificou-se um optimismo e um abandono da discussão das questões fundamentais que marcaram e vão marcar, por muitos anos, a nossa evolução e posição na Europa. Ninguém se iluda: não se entra para um espaço mais amplo, com muitos interesses divergentes, uns mais poderosos que outros, sem que aconteçam coisas que o povo venha a sentir. Mais grave é que nem se preparou a sociedade portuguesa para isso. O ensino continua, por exemplo, medíocre e é uma questão decisiva. [Ver texto na edição de ontem.] Não é por acaso que a Europa, de cerca de Milão para cima, se desenvolveu muito mais depressa - mesmo antes de haver indústria - com a reforma luterana. Para se praticar o culto da reforma era preciso saber a Bíblia, e toda a gente teve de aprender a ler. Esta foi uma razão fundamental para que estes países tivessem dado o salto, já no século XVI, quando em Portugal eram quase todos analfabetos. Partimos para a Europa com um lastro negativo muito forte. Há agora que recuperar, com patentes dificuldades. P. - As condições preexistentes à nossa entrada na Europa explicam os atrasos estruturais que caracterizam o desenvolvimento português? R. - São um factor determinante. Portugal era um país fechado, com ambições limitadas, que não concorria sequer com espanhóis ou com marroquinos. Tínhamos muitos empresários medíocres, uma mão-de-obra pouco qualificada, uma educação e uma administração pública deficientes - mas com uma massa salarial que custa agora mais 40 por cento da média da UE -, uma saúde péssima. Como não tínhamos outra alternativa à "Europa", deveríamos ter adoptado uma política de grande rigor, disciplina e exigência. E aquilo que o PS e o PSD transmitiram para a opinião pública era que passaríamos a viver no "paraíso", pois vinham aí milhões. P. - Os portugueses estão preparados para perceber que a Europa não traz só benefícios? R. - Em geral não estão. Para o grande público, a adesão à Europa traduz-se na sua entrada para a "casa dos ricos", de onde virá sempre o que for necessário ao seu bem-estar. A UE é a entidade que nos manda mais de 600 milhões de contos por ano, ou seja, mais de dois milhões de contos por dia útil. Os problemas vão aparecer. Muito bem. Eu digo: se não tínhamos outra alternativa, então dizia-se com clareza e apontava-se o que era necessário fazer para "apanhar" o comboio europeu. Nada foi feito, nem foi dito. P. - Num espaço globalizado, a economia está em redefinição e há quem preveja a integração da economia portuguesa na espanhola. É um processo inevitável? R. - Temos 900 anos de história, está dito. Mas pôs o dedo sobre outro problema. A política de privatizações foi feita de forma a que, ficando as pessoas com os títulos representativos do capital das empresas e aparecendo um espanhol ou um inglês, vendem logo. É o que está a acontecer. Portanto, perdemos poder político, partimos com uma debilidade económica notória e agora estamos a perder o que havia de melhor nas empresas. Já foi a Galp para os italianos, foram o Totta e o CPP para os espanhóis, a seguir, creio, vai a PT. Os nossos interesses ligados às empresas passam também a ser comandados do exterior. Por isso é que disse há dias: sou um antifederalista e um europessimista. E sou-o porque não sou alemão, sou português. A perspectiva não é indiferente. P. - As sondagens europeias revelam que o cidadão alemão não anda satisfeito com a UE, nem com o euro. R. - Só que os portugueses foram atraídos porque iriam melhorar facilmente as suas condições de vida. P. - Esse é um dado inquestionável. R. - É. Mas os alemães rejeitam porque suspeitam que vão ser prejudicados quanto à moeda. E percebo que o alemão, em relação à moeda única, sinta desconforto, na medida em que o marco era uma moeda forte, estável e sua. Receiam perdê-la. P. - Pode-se concluir que não havia outra alternativa senão a entrada de Portugal na UE? R. - Sim, pode-se. Fui um dos que aprovaram o pedido de negociações, sempre com a consciência de que, não havendo outro caminho, deveríamos ir por este, mas era difícil e exigia mudanças drásticas. Na próxima semana, terceira desta série de entrevistas com André Gonçalves Pereira, Artur Santos Silva, Francisco Pinto Balsemão, Henrique Medina Carreira, João Cravinho, João Salgueiro, Jorge Jardim Gonçalves, Mário Murteira, Rui Vilar e Vasco Vieira de Almeida. OUTROS TÍTULOS EM ECONOMIA
NACIONAL
Fisco e Justiça acedem a dados da Previdência em Espanha
"Sou um antifederalista e um europessimista"
"Privatizações sem estratégia"
Primeiro as negociações, depois o veredicto de Madrid
Maré de investimentos ibéricos
"Imobiliário de lazer" em forte crescimento
INTERNACIONAL
Bolsa americana aplaude despedimentos
MARKETING
Supermercados viram-se para a poupança
Swatch lança Bijoux
ESCRITOS
O outro rosto da flexibilidade
OPINIÃO
Direitos dos contribuintes
A relação entre companhias aéreas e agências de viagem
Inflação - a virtuosa e a outra
FUTURO
A caravana que passa
MERCADOS
Euro em recuperação face ao dólar
Segmento accionista ganha peso no Brasil
Corte da Fed não convenceu
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Medina Carreira critica processo de privatizações por permitir que as melhores empresas passem para mãos estrangeiras
"Sou Um Antifederalista e Um Europessimista"
Por CRISTINA FERREIRA
Segunda-feira, 23 de Abril de 2001 A Europa não vai suportar a reacção que os pequenos países terão devido ao modo como está a avançar a sua construção, defende Medina Carreira. E diz que foi abandona a discussão das questões fundamentais para a posição do país na Europa A construção da União Europeia não pode ir no sentido do esbatimento dos Estados nacionais, devido à sua história e aos conflitos de interesses nacionais, considera Henrique Medina Carreira, um dos fundadores do PS e ministro das Finanças do I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares. Diz também que tudo aponta para que se esteja a caminhar no sentido de uma federação ou de um directório, o que levará ao fim da constituição da Europa. Fala do exemplo americano, lembrando o que separa a sua experiência da europeia: a luta comum contra a colonização, uma língua única. E ainda a valorização do poder dos estados com menor peso demográfico e económico. Medina Carreira pensa que Portugal não tinha alternativa à entrada na UE, mas critica que isso não tenha sido explicado à população, nem os aspectos negativos que ela também acarreta. E considera que, além de terem faltado reformas, o optimismo da classe política levou ao abandono da discussão das questões fundamentais para a nossa posição na Europa. Na primeira parte desta entrevista, publicada na edição de ontem, falou do que considera serem os vícios da vida partidária e de como isso é negativo para a democracia. Pensa que, devido ao crescente endividamento e desequilíbrio das contas externas, a curto prazo será necessário restringir a procura interna e os rendimentos, e incentivar a poupança. PÚBLICO - O que espera do Tratado de Nice? HENRIQUE MEDINA CARREIRA - Nada de bom. As questões que se colocam hoje à UE são estas: a Europa vai evoluir em todos os domínios no sentido do alargamento? Ou vai evoluir no sentido federal? A Europa dará um passo muito errado se desconhecer a sua história, como agora se quer fazer. Falamos línguas diferentes, temos passados de rivalidades intensas, registamos graus de desenvolvimento distintos e não vejo como, neste contexto, poderemos caminhar consistente e rapidamente para uma unidade política. Daí achar uma tolice pretender-se que a Europa vá no sentido do esbatimento dos Estados nacionais. E isso constatar-se-á quando os problemas se agudizarem, quando tivermos um interesse altamente coflituante com o de Espanha. Nesse caso, ver-se-á que portugueses são portugueses, espanhóis são espanhóis. O caso de Figo, um senhor que até é português, nem é espanhol, é exemplar, pois embora ocorra num espaço em que nem sequer se atravessou fronteiras, a Catalunha rebelou-se contra Castela. P. - Como vê uma Europa dirigida por um directório de grandes países? R. - Um disparate. P. - Que papel está reservado numa nova UE aos países pequenos e periféricos, como Portugal? R. - Pessoalmente, acho que a Europa tal como está a avançar não vai suportar a reacção dos pequenos. Se se pretende esbater os nacionalismos, se se quer estrangular o poder político nacional, se se caminhar, mesmo que mascaradamente, para uma federação ou para o directório, como tudo aponta, será o fim da constituição da Europa, mais ou menos cedo. P. - O federalismo não é o modelo que melhor defende os interesses dos países mais pequenos? R. - É preciso perceber que no dia em que formos governados por governantes eleitos em Portugal, mas forçados a fazer o que lhes é determinado por outros governantes que vivem em Bruxelas, em Bona ou em Paris, criar-se-á um conflito inevitável de carácter político com consequências nefastas. Os que cá mandam não têm poder, os que vão decidir as grandes coisas não estão cá, nem nós temos escrutínio relativamente às ideias que vão sendo postas em prática. P. - André Gonçalves Pereira fala em federalismo, entendido como o tratamento federal de certas matérias, não no sentido de Portugal passar a fazer parte de um outro Estado. R. - O europeu não é o mesmo que o americano - admito que haja diferenças entre um americano do Sul e outro do Norte, mas todos se sentem americanos, falam a mesma língua. Na Europa os franceses sentem-se franceses, os alemães, alemães. Quantas guerras houve por causa das fronteiras na Europa! P. - Mas é aí que reside o sucesso europeu: a Europa está em paz há mais de 50 anos. R. - Só que as rivalidades entre franceses e alemães, como se tem visto, são poderosas. Julgar que a Europa caminha sempre no sentido do esbatimento das rivalidades é, quanto a mim, um erro. A razão última da tentativa de unificação europeia foi "amansar" franceses e alemães. Começou-se, em 1954, pela CED, sem êxito. P. - Discorda frontalmente da união política? R. - A ideia de unificação política é uma ideia que, se for levada a cabo a todo o transe, constituirá o provável grande factor de ruptura europeia. E não acho aconselhável, até porque, como já referi, portugueses são portugueses, espanhóis são espanhóis, franceses são franceses. Não é a mesma coisa que nos EUA, que nasceram contra o colonizador, em circunstâncias completamente diferentes. E quando os EUA se unificaram, em 1776, viviam na zona entre três e quatro milhões de habitantes, solidários. Depois, tudo aquilo foi conquistado e aglutinado pelos colonos e, portanto, há uma história e uma língua comuns, muito diferente da Europa. Por outro lado, existe nos EUA o culto do individualismo. É gente com uma mentalidade, hábitos e uma memória histórica de 200 anos, distintas da europeia. Lembre-se a questão balcânica, um bom exemplo dos profundos conflitos sociais e étnicos que se vivem dentro da Europa, embora seja um caso especial, muito complexo. Mas prova como as hostilidades desencadeadas por etnias dentro de espaços geográficos e políticos comuns podem inviabilizar o bom convívio entre povos e provocar rupturas políticas. P. - Como é que se legitima e fortalece o ideal europeu? R. - Uma Europa das Comunidades, uma Europa de nações, com governos locais com poder muito amplo. E o que vier a ser centralizado na UE deve ser sem esmagamento dos pequenos. Nas últimas eleições nos EUA, o candidato com menos votos foi o que ganhou, uma solução para nós esquisita. No entanto, é preciso perceber que este modelo de tipo presidencial americano deu mais peso às zonas menos povoadas e deve-se a esta sábia solução o sucesso da união americana. Houve que transigir valorizando Estados que não tinham o peso demográfico e económico de outros. Nos EUA o caminho seguido foi o oposto do decidido em Nice. Nice marca e reforça hegemonias. P. - Em 1992, numa entrevista, fez a seguinte observação: "Compreendo que os alemães se recusem a fazer mais sacrifícios." Com Nice a frase ganhou actualidade. R. - É verdade. E nessa entrevista discordava ainda da maneira aligeirada como em Portugal se tratava a nossa integração na Europa. Cá só se dá relevância aos problemas quando ganham tal dimensão que são já dificilmente "domesticáveis". Um político, mesmo na reserva como eu, deve ter a noção da antecipação do que pode vir a acontecer. P. - Quer concretizar melhor essa ideia? R. - Quando Portugal pediu a adesão à CEE, a construção da Europa existia há cerca de 20 anos e com poucas realizações: uma delas era a União Aduaneira - criou-se um espaço livre dentro dos seis, com barreiras alfandegárias para fora -, a outra estava relacionada com a entrada de mais três membros, Inglaterra, Irlanda e Dinamarca. E essa União Aduaneira foi possível por se tratar de economias com graus de desenvolvimento próximos, que podiam competir entre si sem mossas e sem que algumas ficassem para trás. P. - Em Portugal não se pensa a longo prazo? R. - É um pouco assim, e quando se deu a "aceleração Delors" dever-se-ia ter falado mais claro à sociedade, devia ter-se agido politicamente em conformidade com as necessidades e previsíveis dificuldades. P. - Porque é que as vozes mais críticas da estratégia portuguesa de integração não se fizeram ouvir? R. - Porque o PS e o PSD queriam entrar depressa para a UE na mira dos fundos e não "deram" voz a um certo sector de opinião. P. - Portugal tinha outra alternativa? R. - Esse é o problema. Pergunta: qual é então a sua alternativa? Mas a questão não é não haver alternativa, é que, se não tínhamos outro caminho, então dizia-se com clareza à população. E não me lembro de alguém o fazer, esclarecendo, em particular, o que há de bom e de negativo na nossa entrada para o espaço europeu. Quando se entra para um clube que se pretende de iguais, é preciso que haja igualdade de circunstâncias. E não havia. P. - A UE é tudo menos um clube entre iguais... R. - Certas coisas só se conseguem à custa de muitos tombos. Pois bem, será o que daqui em diante nos poderá acontecer. Agora beneficiamos do euro, que estabilizou o câmbio. Mas como o euro também implicou perda de poderes, como o monetário, o cambial e agora o fiscal, ficámos de mãos atadas. P. - Estando de fora do euro, o Banco de Portugal também não teria grande autonomia... R. - É certo. O que não se fez foi extrair todas as consequências do facto, através de políticas de reforma com alcance e profundidade. No sector político, verificou-se um optimismo e um abandono da discussão das questões fundamentais que marcaram e vão marcar, por muitos anos, a nossa evolução e posição na Europa. Ninguém se iluda: não se entra para um espaço mais amplo, com muitos interesses divergentes, uns mais poderosos que outros, sem que aconteçam coisas que o povo venha a sentir. Mais grave é que nem se preparou a sociedade portuguesa para isso. O ensino continua, por exemplo, medíocre e é uma questão decisiva. [Ver texto na edição de ontem.] Não é por acaso que a Europa, de cerca de Milão para cima, se desenvolveu muito mais depressa - mesmo antes de haver indústria - com a reforma luterana. Para se praticar o culto da reforma era preciso saber a Bíblia, e toda a gente teve de aprender a ler. Esta foi uma razão fundamental para que estes países tivessem dado o salto, já no século XVI, quando em Portugal eram quase todos analfabetos. Partimos para a Europa com um lastro negativo muito forte. Há agora que recuperar, com patentes dificuldades. P. - As condições preexistentes à nossa entrada na Europa explicam os atrasos estruturais que caracterizam o desenvolvimento português? R. - São um factor determinante. Portugal era um país fechado, com ambições limitadas, que não concorria sequer com espanhóis ou com marroquinos. Tínhamos muitos empresários medíocres, uma mão-de-obra pouco qualificada, uma educação e uma administração pública deficientes - mas com uma massa salarial que custa agora mais 40 por cento da média da UE -, uma saúde péssima. Como não tínhamos outra alternativa à "Europa", deveríamos ter adoptado uma política de grande rigor, disciplina e exigência. E aquilo que o PS e o PSD transmitiram para a opinião pública era que passaríamos a viver no "paraíso", pois vinham aí milhões. P. - Os portugueses estão preparados para perceber que a Europa não traz só benefícios? R. - Em geral não estão. Para o grande público, a adesão à Europa traduz-se na sua entrada para a "casa dos ricos", de onde virá sempre o que for necessário ao seu bem-estar. A UE é a entidade que nos manda mais de 600 milhões de contos por ano, ou seja, mais de dois milhões de contos por dia útil. Os problemas vão aparecer. Muito bem. Eu digo: se não tínhamos outra alternativa, então dizia-se com clareza e apontava-se o que era necessário fazer para "apanhar" o comboio europeu. Nada foi feito, nem foi dito. P. - Num espaço globalizado, a economia está em redefinição e há quem preveja a integração da economia portuguesa na espanhola. É um processo inevitável? R. - Temos 900 anos de história, está dito. Mas pôs o dedo sobre outro problema. A política de privatizações foi feita de forma a que, ficando as pessoas com os títulos representativos do capital das empresas e aparecendo um espanhol ou um inglês, vendem logo. É o que está a acontecer. Portanto, perdemos poder político, partimos com uma debilidade económica notória e agora estamos a perder o que havia de melhor nas empresas. Já foi a Galp para os italianos, foram o Totta e o CPP para os espanhóis, a seguir, creio, vai a PT. Os nossos interesses ligados às empresas passam também a ser comandados do exterior. Por isso é que disse há dias: sou um antifederalista e um europessimista. E sou-o porque não sou alemão, sou português. A perspectiva não é indiferente. P. - As sondagens europeias revelam que o cidadão alemão não anda satisfeito com a UE, nem com o euro. R. - Só que os portugueses foram atraídos porque iriam melhorar facilmente as suas condições de vida. P. - Esse é um dado inquestionável. R. - É. Mas os alemães rejeitam porque suspeitam que vão ser prejudicados quanto à moeda. E percebo que o alemão, em relação à moeda única, sinta desconforto, na medida em que o marco era uma moeda forte, estável e sua. Receiam perdê-la. P. - Pode-se concluir que não havia outra alternativa senão a entrada de Portugal na UE? R. - Sim, pode-se. Fui um dos que aprovaram o pedido de negociações, sempre com a consciência de que, não havendo outro caminho, deveríamos ir por este, mas era difícil e exigia mudanças drásticas. Na próxima semana, terceira desta série de entrevistas com André Gonçalves Pereira, Artur Santos Silva, Francisco Pinto Balsemão, Henrique Medina Carreira, João Cravinho, João Salgueiro, Jorge Jardim Gonçalves, Mário Murteira, Rui Vilar e Vasco Vieira de Almeida. OUTROS TÍTULOS EM ECONOMIA
NACIONAL
Fisco e Justiça acedem a dados da Previdência em Espanha
"Sou um antifederalista e um europessimista"
"Privatizações sem estratégia"
Primeiro as negociações, depois o veredicto de Madrid
Maré de investimentos ibéricos
"Imobiliário de lazer" em forte crescimento
INTERNACIONAL
Bolsa americana aplaude despedimentos
MARKETING
Supermercados viram-se para a poupança
Swatch lança Bijoux
ESCRITOS
O outro rosto da flexibilidade
OPINIÃO
Direitos dos contribuintes
A relação entre companhias aéreas e agências de viagem
Inflação - a virtuosa e a outra
FUTURO
A caravana que passa
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Euro em recuperação face ao dólar
Segmento accionista ganha peso no Brasil
Corte da Fed não convenceu
Curtas