Conversa com vista para...

15-07-2001
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Conversa com Vista Para...

Por JOÃO SOARES LOURO

Segunda, 2 de Julho de 2001 Maria João Seixas Dizem que tem uma intuição prodigiosa, que apanha as coisas no ar, embrulha-as a seu jeito e confere-lhes uma solidez insuspeitada, de que faz matéria para uma invejável capacidade de decisão. Sabe e gosta de comandar equipas, porque sabe e gosta de trabalhar em grupo. Delega sem custo e exige com autoridade o cumprimento das tarefas. Confia no entusiasmo e na eficácia das pessoas, sobretudo as mais jovens, desde que convidadas a participar em projectos mobilizadores. Tem o trato afável de quem não é magro e exerce com maestria a sua quota de bonomia - saldo do muito que viu, ouviu e viveu - para melhor seduzir quem tem pela frente. Dizem ainda que é senhor de uma rara lealdade aos amigos e acrescentam a isto um curioso defeito - o de também não resistir a dar a mão a quem já lhe retirou o tapete. De tudo o que fez e por onde andou, guardo a saudade dos anos em que dirigiu a RTP. Recuperou a imagem de uma empresa desnorteada, mesmo se em situação de monopólio, confiou a invenção de um estilo de marca a criativos de fibra ousada e imaginativa, nomes de prestígio da nossa cultura, e fez com que ainda hoje se diga - Naquele tempo sim, houve televisão! Transformou-se, com as curvas da vida, num patriarca, acolhedor e atento às várias gerações que foi aglutinando à sua volta. Chegou a horas para esta conversa, com um ar quase desinteressado - "Vamos a isto?" Mal o gravador arrancou, subiu o tom de voz, colocou-o bem a par do fio das memórias convocadas e não deu mais tréguas à minha curiosidade. MJS - João, diz-me quem és. JSL - Sou um zé-ninguém, que tem andado por este mundo aos altos e aos baixos, já com muitos anos às costas. Nasci bem, tive depois uma infância muito castigada, com o vai-vem da vida a ensinar-me o gosto dos infortúnios, passei uma adolescência forte e boa e lá fui andando, assim, ao sabor de muitos contratempos. A oscilação permanente do curso dos meus dias nunca foi monótona e deu-me uma reconfortante sensação, a de que quando as coisas vão mal, eu pensar sempre que a seguir ficarão bem. MJS - Atravessas bem as fases menos boas? JSL - Os desertos? As marginalizações? Atravesso-os bem. Endureci e sei resistir. Mas compreendo que outros não o consigam. Lembra-te do que foi a montagem da Exposição Mundial, da Expo-98 As críticas e as desconfianças dardejavam de todos os lados. Um projecto daquela envergadura não se faz sem grandes sustos, sem grandes problemas, sem grandes preocupações. Ouvi repetidas vezes - "Soares Louro, vá-se embora, deixe este buraco, isto não vai a lado nenhum." Nunca desisti. Tinha uma equipa fantástica. Sabia que podia resultar. Como aconteceu. MJS - De que área exactamente eras responsável? JSL - A minha área tinha que assegurar todo o funcionamento da Exposição. Não a sua imaginação e concepção. Isso tem outros autores, o António Mega Ferreira, o Vasco Graça Moura, com o apoio e a coragem do primeiro comissário e do segundo. E muitas outras pessoas, pessoas de que nunca se saberá o nome. Todos os anos, e já lá vão três, compro umas flores e vou colocá-las em memória dos que morreram na construção daquela extraordinária obra. Fico reconfortado por fazer isto, em homenagem a todos os trabalhadores anónimos do projecto. É a primeira vez que o revelo. MJS - Das aventuras empresariais em que te envolveste, de que destaco apenas a presidência da RTP, da RDP e a direcção dos meios operacionais da Expo-98 há uma dilecta? JSL - O maior desafio, o mais complexo, foi a Expo-98 Aquele a que, por razões óbvias, o meu coração e os meus afectos estão mais ligados foi a RTP. Que estava em 78 numa situação não muito diferente daquela em que está hoje. Só não tinha a concorrência, porque ainda não havia os operadores privados. Mas de um ponto de vista económico-financeiro, da sua programação, da sua distribuição de sinal, dos seus equipamentos, estava numa situação muito complicada. Aquela outra coisa que fiz e que me deu grande prazer e onde não fui muito bem tratado, sobretudo por certos sectores da comunicação social, foi a RDP. Provavelmente foi dos trabalhos mais importantes que me foi proporcionado fazer. E, no entanto, levei muita pancadaria, um arraso de criar bicho! Vivia-se no Quelhas, os emissores e as instalações eram do tempo do Duarte Pacheco, no discurso inaugural da antiga Emissora Nacional disse-se que ficariam lá por um mês e ficaram mais de quarenta anos. Foi possível, quando entrei, redimensionar, reequipar e reinstalar a empresa. Disso tenho orgulho. Também passei pela Tóbis, que estava praticamente falida. Deixei a empresa bem, quando saí. MJS - Foram sucessivos convites em tempos de diferentes governos, nem sempre da tua família política. Quem te escolhia sabia separar as águas e apostar na tua competência de gestão. Fala-me desses convites. JSL - Vieram quase sempre do outro lado da minha bancada. Para a Tóbis foi Francisco Lucas Pires, enquanto ministro da Cultura, e que excelente ministro! Para a RDP foi Marques Mendes, por insistente indicação do então primeiro-ministro, Cavaco Silva. MJS - E para a RTP? JSL - Essa é uma outra história. E longa. Nobre da Costa era ministro da Indústria e nomeou-me para a Mundet, empresa a que eu estava ligado por laços muito especiais, porque foi o meu primeiro emprego. Quando comecei a trabalhar, a Mundet era um império, sediado no Seixal, com fábricas no Montijo, Amora, Vendas Novas, Ponte de Sor. Chegou a ombrear com a CUF, com mais de dois mil trabalhadores. Hoje corresponde ao grupo Amorim, que é, como se sabe, mais diversificado do que a original empresa. Tinham vindo para cá uns catalães, os Mundet, com interesses em França - na produção de champanhe, nos Estados Unidos - com fábricas de aviões, em Inglaterra - associados à indústria do tabaco. Em Portugal, apostaram na área da indústria da cortiça. Eu, que tinha acabado o curso comercial e, em seguida, tinha-me matriculado nas aulas da noite do Instituto Comercial, entrei para a Mundet com 17/18 anos para, entre outras coisas, tratar do expediente de um dos administradores, que era, imagina, o dr. Azeredo Perdigão. Tive sempre por ele uma grande admiração e um grande amor. Às tantas, para indignação do José Mundet, deixei a empresa. Apeteceu-me ir para a Aeronáutica, brincar com aviões, onde me parti todo. Foi na Mundet que me formei para a vida. O partido comunista tinha uma fortíssima implantação na área corticeira. Conheci pessoas extraordinárias, pessoas muito simples que me ensinaram algumas das coisas mais fundamentais que me marcaram para sempre. MJS - Nobre da Costa, sabendo dessa tua ligação inicial à Mundet, chama-te em que ano? JSL - Em 78. Eu era deputado, tinha deixado o primeiro governo constitucional, onde fui sub-secretário para a Comunicação Social (Manuel Alegre era o secretário de Estado ) e onde penso que se fizeram algumas coisas capazes - a distribuição postal gratuita para os jornais, o que impediu que a imprensa regional acabasse, salvaram-se algumas estações de rádio, suportou-se a televisão, surgiu a primeira Lei da Imprensa. Nobre da Costa convida-me para a Mundet porque o meu nome reunia o consenso da comissão de trabalhadores (PC), da Câmara Municipal do Seixal (também PC) e dos accionistas, que eram a viúva do Mundet e o Governo. Com a minha nomeação já pronta para seguir para o Diário da República, recebo uma chamada do Palácio de Belém. Era o Presidente da República general Ramalho Eanes, que me disse - "Estou aqui com o primeiro-ministro (Mário Soares), há uma situação complicada e você tem que ir para a RTP." Expliquei que tinha acabado de assumir um compromisso com o ministro da Indústria, que Mário Soares porventura desconhecia, e que me ia apresentar no dia seguinte no Seixal. Ao que Eanes respondeu - " Dentro de meia hora é aqui, em Belém, que você se apresenta!". Nobre da Costa foi também convocado e passados dois dias eu tomava posse como presidente do conselho de administração da RTP. Fiquei sempre com algum peso na consciência por ter falhado à Mundet e ao Seixal. MJS - Em 74 eras funcionário da RTP. Foi aí que conheceste o general Eanes, no período em que também ele passou pela televisão? JSL - Exactamente. Eu era chefe de serviço e ele director de programas. Trabalhámos secretária com secretária. E não gostava muito dele nesse tempo. A guerra interna na casa era enorme, RGT contínuas que duravam até de madrugada, uma turbulência permanente e eu achava que o Eanes me deixava, repetidas vezes, no pau da obra, por falta de determinação. No 11 de Março estive com ele praticamente todo o dia. Quando à noite saí para jantar, ouvi na Rádio Renascença o Eanes ser acusado de ter feito, nesse mesmo dia, todas as tropelias do mundo. Como tinha estado com ele, sabia que não era verdade. Já não jantei, voltei para trás e disse-lhe - "Meu caro, estou aqui para tudo o que for necessário." E assim criámos uma grande amizade, que dura até hoje. MJS - Em 78, quando foste chamado, já com Ramalho Eanes em Belém, recebeste orientações precisas para o comando das operações na RTP? JSL - Orientações? Zero! Para escândalo dos que nos lerem, vou dizer-te que me socorri de uma velha frase de Salazar - "estudar com dúvida e realizar com fé". Durante um mês ou dois pus-me a pensar o que é que iria fazer, recrutei meia dúzia de pessoas, pu-las a trabalhar comigo e disse - "Isto tem que ser quase como uma refundação da RTP. E a reforma não pode ser a conta-gotas. Tem que sair tudo à mesma hora, no mesmo dia." A situação era parecida com a que encontrei depois na RDP e de que já te falei: era preciso reorganizar, redimensionar, reequipar, realojar. Não havia material de produção, os emissores estavam a chegar ao fim, chegámos a estar instalados em vinte e três sítios em Lisboa, concentrei quase tudo na 5 de Outubro... MJS - Foi tua a decisão de comprar o edifício da 5 de Outubro? JSL - A ideia tinha sido do meu antecessor, Edmundo Pedro. Aproveitei-a e consolidei-a. Fui eu que tive que negociar junto da Banca e do Ministério das Finanças a forma de comprar o edifício, foi uma boa operação, a meio das negociações cheguei a ter uma oferta generosa do vendedor, o Banco Pinto & Sotto Mayor, que o queria comprar de volta. Tive o grande gosto de cumprir sempre os pagamentos devidos e de deixar a empresa, ao fim dos dois anos e picos que lá estive, numa situação financeira equilibrada, tendo-a recebido com um passivo enorme. Isto tudo só foi possível pelo grande empenhamento dos que trabalhavam na RTP e que acreditaram, de facto, no projecto, que era um projecto novo. A tal espécie de refundação, como já te disse. MJS - De que o segundo canal foi uma imagem de marca. JSL - O Fernando Lopes foi uma das minhas grandes bengalas. Disse-lhe - "Tens que fazer o segundo canal, mas não tenho dinheiro nenhum para te dar. Dou-te umas instalações e meia dúzia de meios. Descobre uma maneira de fazer o canal!" É fundamental apostar na capacidade criativa de quem tem créditos na matéria. E confiar. Confiar muito. O Fernando foi a França e negociou centenas de horas com a Pathé e outros fornecedores, praticamente de graça, a pagarmos quando e como pudéssemos. E criou um modelo, com um projecto de informação totalmente diferente do do canal 1. Na altura falava-se em complementaridade entre os dois canais, mas não era verdade. Não há complementaridade em televisão, há só competição. MJS - E acabaste por ser demitido pelo governo AD? JSL - Contra a vontade do dr. Sá Carneiro. Já cá não está para testemunhar, mas soube sempre que foi contra a sua vontade. Eu tinha entrado em conflito com algum pessoal da RTP do Porto. Tinha substituído as chefias e parte da direcção do centro de produção do Norte. Chamei-os à sede, na São Domingos à Lapa, e disse-lhes que eles não estavam a prestar um serviço que me oferecesse garantias de que o Porto se assumia como um centro de produção, com a qualidade e o nível que desejávamos, que havia obras a decorrer e outras situações que precisavam de ser ultimadas e que não estavam a sê-lo. Apanharam o comboio de volta e um deles, sobretudo um, antes de se dirigir aos estúdios do Monte da Virgem foi à direcção distrital do PSD no Porto e inscreveu-se no partido. A vingança estava prometida e ia começar. Quando a AD ganhou as eleições, aquela distrital, como acontece em todos os partidos, apresentou algumas facturas. A minha saída era uma delas. MJS - Foi Sá Carneiro quem ta comunicou? JSL - Não, foi o dr. Pinto Balsemão, que era ministro da Presidência. Quando lhe fui pôr o lugar à disposição, coisa que sempre fiz quando havia mudança da tutela, ele disse-me que, embora houvesse outras leituras possíveis, o Governo entendia que eu, ao pôr o lugar à disposição, estava a apresentar a minha demissão. Pediu-me que me mantivesse na presidência da RTP até ser nomeado um substituto e que, até lá, nada mais fizesse que não fosse a gestão corrente do dia-a-dia. Isto passou-se em Fevereiro/Março de 80, eu em Janeiro tinha posto clandestinamente a cor no ar... MJS - Clandestinamente? JSL - Estávamos em período eleitoral, o Governo ainda não tinha anunciado uma decisão definitiva sobre o sistema de cor e entendi que faria a experiência, mas só para algumas casas que entretanto se tinham equipado com receptores de cor. Os fornecedores de televisores andavam a tentar forçar o adiamento da decisão, invocando que tinham os armazéns atulhados de aparelhos a preto e branco e que iam ter um prejuízo enorme. De nada lhes serviu porque a cor explodiu de um dia para o outro, como te lembras. No dia seguinte à minha saída da RTP, entrou no ar a televisão a cores. Percebi então porque é que me fora dito para me manter lá, sem fazer mais nada. Essa foi uma das grandes mágoas que nunca esqueci. Foi mesmo vinte e quatro horas depois de eu ter saído. Como por milagre, estava tudo a postos. Nem podes imaginar o trabalho que aquelas negociações tinham dado ao ministro da Indústria de então, Álvaro Barreto, e a mim. As pressões do lado do sistema Secam, como também do Pal, foram inimagináveis. MJS - Para além da compra do edifício da 5 de Outubro, chegaste a ter planos de trazer para a mesma área os estúdios do Lumiar. JSL - Quando cheguei à RTP, o único património que a empresa tinha era aquele bocadinho do Monte da Virgem, no Porto. O resto era tudo alugado. A minha ideia era que ficasse tudo junto e como propriedade da televisão. E teria sido possível fazer isso nuns terrenos que havia atrás da sede da 5 de Outubro e que iam quase até ao Hospital Curry Cabral. Eu já tinha conseguido comprar os estúdios de Lisboa em hasta pública e estava a negociar, por troca com o Lumiar, aqueles terrenos. Onde caberiam os novos estúdios, os arquivos e o mais que quisesse vir. A própria RDP, que ainda estava no Quelhas, se assim o entendesse também poderia mudar-se para ali. Entreguei esse dossier ao meu sucessor e amigo, Vítor Cunha Rego, mas ele passou pouquíssimo tempo pela RTP e não pegou no assunto. Proença de Carvalho, que veio a seguir e que tinha uma leitura da televisão muito diferente da minha, muito mais política, também não. Perdeu-se uma grande oportunidade. A RTP, com esse património imobiliário e apesar de todos os contratempos e dos desperdícios a que tem sido sujeita, estaria hoje financeiramente muito bem. MJS - Tem-se a ideia, passado todo este tempo, que os governos desses anos em que estiveste na RTP mantinham-se mais à distância daquela casa. Era assim? JSL - Era. Embora houvesse naturalmente alguns atritos. Foram anos muito bons para dirigir a RTP, porque os governos eram curtos e fracos e andavam mais distraídos com outras coisas. Foi o que se passou com Nobre da Costa, Mota Pinto, Maria de Lourdes Pintasilgo. Para o fim as coisas começaram a piorar. MJS - Nunca percebi muito bem a polémica saída de Vasco Graça Moura de director de programas e de informação do canal 1. Ainda estou a ouvi-lo, em plena emissão, dizer que "em democracia não há lugares para homens providenciais, nem figuras insubstituíveis". A sua demissão teve a ver com um dos tais atritos? JSL - Foi um deles. É uma história complicada e triste. MJS - Mas houve ou não ingerência da tutela a pedir a cabeça do Vasco? JSL - Foi a última e a primeira. E eu devia ter pedido a demissão nesse dia. Não o fiz porque fui muito pressionado, não de fora, mas de dentro da televisão. Foi uma fraqueza minha. MJS - Qual era a acusação? JSL - A televisão foi acusada, pelo Governo, que já era da AD, de parcialidade e incorrecção numa determinada notícia. Proença de Carvalho era ministro da Comunicação Social. O Vasco, depois de eu já ter feito um comunicado sobre o assunto, entendeu que também ele devia dar uma explicação ao país, em directo, com veemência. E assim fez. Avisou-me e, como podes imaginar, poderia tê-lo impedido de entrar no ar. Não o fiz, porque entendi que ele tinha esse direito. A responsabilidade foi minha. E a cabeça dele rolou. "Mea culpa". MJS - Foste a favor ou contra a abertura do mercado de televisão em Portugal a operadores privados? JSL - Durante muito tempo, que vai praticamente até finais dos anos 80, andei numa roda viva, como se num circo ambulante, a fazer debates onde exprimia a minha opinião de que não havia mercado publicitário para suportar tantos canais de televisão. Até porque nessa altura, é preciso que se diga, os investimentos publicitários em televisão eram muito mais baixos, a situação económica do país era completamente outra e havia uma série de produtos, nomeadamente os financeiros, que não investiam em televisão. Nesse contexto não era possível conceber a existência de privadas. Depois, passados alguns anos, já muito cansado de debater e perante modificações comportamentais do mercado e dos agentes financeiros, defendi a hipótese de que havia lugar para um canal privado. E fui continuando a apresentar os meus pontos de vista alternativos e a enunciar algumas das dificuldades e problemas que se avizinhavam e que hoje são do conhecimento de todos. Quem quiser ler o que, de há vinte anos para cá, escrevi sobre televisão, irá de certeza encontrar matéria confirmada pela actualidade. Defendi nomeadamente que devíamos ter uma autoridade, uma entidade reguladora dos meios electrónicos de comunicação social, que devia ser única - tanto para o licenciamento das estações, como para os conteúdos, para as frequências a utilizar, para os suportes (e ainda não se falava nessa altura em televisão digital). Foi-se para a mascarada dos conselhos de opinião, para uma situação onde não se deu poderes a esses órgãos, reformulou-se a Lei da Televisão uma e duas vezes, ninguém controlou nunca se os operadores privados, que entretanto ganharam os concursos, cumpriam o caderno de encargos pelos quais foram aceites para passarem a operar. Será um exercício curioso analisar o que as estações privadas se propunham fazer e o que estão a fazer. Em Portugal há muitas leis, leis a mais, há uma diarreia legislativa em relação a quase tudo. Como mera especulação, se me fosse dado mandar neste país por vinte e quatro horas, faria um único decreto - É proibido legislar. É obrigatório o cumprimento das leis que já existem. Porque há legislação suficiente para regular tudo isto. Ou por falta de meios, ou por inércia, ou por falta de coragem e de autoridade, as pessoas não cumprem nem fazem cumprir as próprias leis. MJS - E os "lobbies" ? Não darão eles também uma ajudinha? JSL - Claro. Claro que há "lobbies" em Portugal, sem que haja uma lei-quadro para o seu exercício. Há "lobbies" em muitos países, só que obedecem a um quadro legal de actuação regulamentada, fora do qual não podem funcionar. MJS - Aqui e agora, e do teu ponto de vista, quais são os "lobbies" mais fortes que dominam a cena nacional? JSL - São, naturalmente, os "lobbies" económicos. Perceberam muito depressa que "de per se" não chegavam lá e que tinham que tomar conta da comunicação social, tinham que associar às suas áreas de actividade o poder da comunicação. Como sabes, isto é o que se vem passando em muitas outras partes do mundo. MJS - Achas que o lobby político já perdeu a batalha? JSL - Quero achar que ainda não, mas está na iminência de a perder. Passou de número 1 para número 3. Hoje, qualquer jornalista estagiário permite-se, com grande impunidade, escrever as coisas mais disparatadas sobre o poder, o Governo, quem quer que seja. MJS - É de esperar que a prática política e o exercício do poder de um governo socialista sejam caracterizados por privilegiar o social e o cultural, obrigando o económico a servir e a sustentar essas dimensões. O que acabas de dizer, pertencendo tu à família socialista, soa a uma contradição nos termos. JSL - Estamos de facto a viver uma situação complicada, com razões de ordem cultural e ancestral à mistura. Somos um povo que se lembra sempre mais de quem foi autoritário, determinante e teve força para obrigar ou incentivar as nossas vidas neste ou naquele sentido. Temos uma História que nos fala constantemente disso, o que nem sempre é consentâneo com um diálogo muito aberto. Penso que a harmonia, que é um ideal que preside, julgo eu, um pouco ao nosso chefe do Governo, não é ainda totalmente possível de estabelecer neste estádio da nossa sociedade. Há demasiados interesses, demasiadas tunas, demasiadas bandas, demasiadas orquestras, demasiados regentes, demasiadas intromissões no quotidiano do poder, que tornam a gestão comum dos interesses nacionais muito, muito difícil. MJS - Não será também por ainda parecer ser difícil o entendimento que o princípio de autoridade faz parte da plena vivência democrática? JSL - Também. O poder tem que ser exercido. O poder tem que ser assumido com determinação e com força. Porque se se sente fraqueza no exercício do poder, as pessoas fazem disso uma leitura que não é de benevolência, não é de contemporização nem de tolerância, é de incapacidade. Chegados aí, é preocupante. E há já sinais que têm que ser levados em linha de conta. Por outro lado, se a democracia é também o sistema das minorias, é inadmissível que minorias inexpressivas tenham o papel altamente perturbador que andam a ter no país. MJS - Dá-me exemplos. JSL - Três ou quatro empresários que se reúnem e que dizem que a economia está numa situação catastrófica, dois ou três antigos ministros de um Governo da oposição que fazem comentários e apreciações de um hiper-criticismo doentio e destituído do mínimo de bom senso e de realismo, meia dúzia de cidadãos de uma aldeia que é vila e que querem que seja concelho, que por isso cortam a estrada e a GNR vai namorar com eles durante três dias e só ao quarto, extenuados os guardas, conseguem remover as pessoas, ainda ontem vi na ponte Vasco da Gama dois autocarros parados com os passageiros, em plena ponte, a olharem para o rio. Isto não pode continuar. Alguém tem que dizer - "Alto e pára o baile! Vamos cumprir a lei e respeitarmo-nos uns aos outros." E é preciso que mais pessoas contribuam para o bem-estar de todos nós. Somos um país pobre, com limitações. Vês o desassossego gerado por esta pequena abordagem de uma reforma fiscal? E antes dela surgir, no entanto, gritavam todos pela urgência de uma reforma. Vivemos de sugar a Índia, depois a África, o Brasil, agora é a Comunidade Económica. E a seguir? Haverá mais algum oásis à espera do nosso sugadouro? Descobrir-se-á petróleo no Beato? Não sendo eu crente, julgo que este país é protegido por alguma força superior que contrabalança o "salve-se quem puder" em que nos habituámos a viver, sem aflorarmos sequer a prática e a vivência colectiva da solidariedade, da justiça, da equidade. MJS - Estamos quase a acabar. Regresso a um dos teus pratos fortes, a televisão. Houve ou não, nos últimos dez anos, um aviltamento da ideia de um serviço público de televisão? JSL - Houve e por culpa do serviço público. Não se soube renovar. O mapa-tipo da RTP é ainda do tempo do dr. Domingos Mascarenhas, que morreu há mais de vinte anos. O que há de novo é decalcado das privadas. Sabes bem que a televisão é também um meio perverso. Passas por lá seis meses e tens logo a ideia que sabes tudo. Eu estive lá anos e anos e saí com a ideia de que não sabia nada. O que é preciso é refundar o serviço público de televisão. Outra vez. Fazer tudo de novo. Para isso é preciso vontade política, disponibilização de meios, confiança mobilizadora em profissionais criativos, formação de quadros jovens pelos melhores do mundo. Apostar totalmente na muita imaginação dos mais jovens. A RTP está velha, tenho pena de dizê-lo. Os criativos foram eclipsados. Transferidos para o purgatório. E a publicidade tomou conta dos conteúdos, o que é inadmissível num serviço público. E não é a publicidade dos Bentley que comanda. É a dos detergentes. MJS - A existência de uma taxa para a RTP sempre ajudava a moderar a voragem e a ingerência da publicidade no serviço público. Talvez fosse mesmo possível viver sem essa presença?! JSL - A taxa de televisão foi suprimida com grande ligeireza, pelo governo de Cavaco Silva. Um erro crasso. Mas a decadência da RTP não se deve só ao fim da taxa. Longe disso. E continuam a passar-se coisas espantosas. Sabes que a renovação do contrato de concessão do serviço público devia ter sido renegociada em 1999 e ainda não foi? MJS - Sem comentários. Estarias disponível para que a tal refundação fosse de novo tentada? JSL - Ir para lá, não. Colaborar de algum modo, ajudar a encontrar algumas soluções, dar algumas pistas, sempre. O tempo é dos criativos mais novos. Que ninguém duvide disso. MJS - Dá-me uma palavra de eleição. JSL - Harmonia. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Por JOÃO SOARES LOURO

Segunda, 2 de Julho de 2001 Maria João Seixas Dizem que tem uma intuição prodigiosa, que apanha as coisas no ar, embrulha-as a seu jeito e confere-lhes uma solidez insuspeitada, de que faz matéria para uma invejável capacidade de decisão. Sabe e gosta de comandar equipas, porque sabe e gosta de trabalhar em grupo. Delega sem custo e exige com autoridade o cumprimento das tarefas. Confia no entusiasmo e na eficácia das pessoas, sobretudo as mais jovens, desde que convidadas a participar em projectos mobilizadores. Tem o trato afável de quem não é magro e exerce com maestria a sua quota de bonomia - saldo do muito que viu, ouviu e viveu - para melhor seduzir quem tem pela frente. Dizem ainda que é senhor de uma rara lealdade aos amigos e acrescentam a isto um curioso defeito - o de também não resistir a dar a mão a quem já lhe retirou o tapete. De tudo o que fez e por onde andou, guardo a saudade dos anos em que dirigiu a RTP. Recuperou a imagem de uma empresa desnorteada, mesmo se em situação de monopólio, confiou a invenção de um estilo de marca a criativos de fibra ousada e imaginativa, nomes de prestígio da nossa cultura, e fez com que ainda hoje se diga - Naquele tempo sim, houve televisão! Transformou-se, com as curvas da vida, num patriarca, acolhedor e atento às várias gerações que foi aglutinando à sua volta. Chegou a horas para esta conversa, com um ar quase desinteressado - "Vamos a isto?" Mal o gravador arrancou, subiu o tom de voz, colocou-o bem a par do fio das memórias convocadas e não deu mais tréguas à minha curiosidade. MJS - João, diz-me quem és. JSL - Sou um zé-ninguém, que tem andado por este mundo aos altos e aos baixos, já com muitos anos às costas. Nasci bem, tive depois uma infância muito castigada, com o vai-vem da vida a ensinar-me o gosto dos infortúnios, passei uma adolescência forte e boa e lá fui andando, assim, ao sabor de muitos contratempos. A oscilação permanente do curso dos meus dias nunca foi monótona e deu-me uma reconfortante sensação, a de que quando as coisas vão mal, eu pensar sempre que a seguir ficarão bem. MJS - Atravessas bem as fases menos boas? JSL - Os desertos? As marginalizações? Atravesso-os bem. Endureci e sei resistir. Mas compreendo que outros não o consigam. Lembra-te do que foi a montagem da Exposição Mundial, da Expo-98 As críticas e as desconfianças dardejavam de todos os lados. Um projecto daquela envergadura não se faz sem grandes sustos, sem grandes problemas, sem grandes preocupações. Ouvi repetidas vezes - "Soares Louro, vá-se embora, deixe este buraco, isto não vai a lado nenhum." Nunca desisti. Tinha uma equipa fantástica. Sabia que podia resultar. Como aconteceu. MJS - De que área exactamente eras responsável? JSL - A minha área tinha que assegurar todo o funcionamento da Exposição. Não a sua imaginação e concepção. Isso tem outros autores, o António Mega Ferreira, o Vasco Graça Moura, com o apoio e a coragem do primeiro comissário e do segundo. E muitas outras pessoas, pessoas de que nunca se saberá o nome. Todos os anos, e já lá vão três, compro umas flores e vou colocá-las em memória dos que morreram na construção daquela extraordinária obra. Fico reconfortado por fazer isto, em homenagem a todos os trabalhadores anónimos do projecto. É a primeira vez que o revelo. MJS - Das aventuras empresariais em que te envolveste, de que destaco apenas a presidência da RTP, da RDP e a direcção dos meios operacionais da Expo-98 há uma dilecta? JSL - O maior desafio, o mais complexo, foi a Expo-98 Aquele a que, por razões óbvias, o meu coração e os meus afectos estão mais ligados foi a RTP. Que estava em 78 numa situação não muito diferente daquela em que está hoje. Só não tinha a concorrência, porque ainda não havia os operadores privados. Mas de um ponto de vista económico-financeiro, da sua programação, da sua distribuição de sinal, dos seus equipamentos, estava numa situação muito complicada. Aquela outra coisa que fiz e que me deu grande prazer e onde não fui muito bem tratado, sobretudo por certos sectores da comunicação social, foi a RDP. Provavelmente foi dos trabalhos mais importantes que me foi proporcionado fazer. E, no entanto, levei muita pancadaria, um arraso de criar bicho! Vivia-se no Quelhas, os emissores e as instalações eram do tempo do Duarte Pacheco, no discurso inaugural da antiga Emissora Nacional disse-se que ficariam lá por um mês e ficaram mais de quarenta anos. Foi possível, quando entrei, redimensionar, reequipar e reinstalar a empresa. Disso tenho orgulho. Também passei pela Tóbis, que estava praticamente falida. Deixei a empresa bem, quando saí. MJS - Foram sucessivos convites em tempos de diferentes governos, nem sempre da tua família política. Quem te escolhia sabia separar as águas e apostar na tua competência de gestão. Fala-me desses convites. JSL - Vieram quase sempre do outro lado da minha bancada. Para a Tóbis foi Francisco Lucas Pires, enquanto ministro da Cultura, e que excelente ministro! Para a RDP foi Marques Mendes, por insistente indicação do então primeiro-ministro, Cavaco Silva. MJS - E para a RTP? JSL - Essa é uma outra história. E longa. Nobre da Costa era ministro da Indústria e nomeou-me para a Mundet, empresa a que eu estava ligado por laços muito especiais, porque foi o meu primeiro emprego. Quando comecei a trabalhar, a Mundet era um império, sediado no Seixal, com fábricas no Montijo, Amora, Vendas Novas, Ponte de Sor. Chegou a ombrear com a CUF, com mais de dois mil trabalhadores. Hoje corresponde ao grupo Amorim, que é, como se sabe, mais diversificado do que a original empresa. Tinham vindo para cá uns catalães, os Mundet, com interesses em França - na produção de champanhe, nos Estados Unidos - com fábricas de aviões, em Inglaterra - associados à indústria do tabaco. Em Portugal, apostaram na área da indústria da cortiça. Eu, que tinha acabado o curso comercial e, em seguida, tinha-me matriculado nas aulas da noite do Instituto Comercial, entrei para a Mundet com 17/18 anos para, entre outras coisas, tratar do expediente de um dos administradores, que era, imagina, o dr. Azeredo Perdigão. Tive sempre por ele uma grande admiração e um grande amor. Às tantas, para indignação do José Mundet, deixei a empresa. Apeteceu-me ir para a Aeronáutica, brincar com aviões, onde me parti todo. Foi na Mundet que me formei para a vida. O partido comunista tinha uma fortíssima implantação na área corticeira. Conheci pessoas extraordinárias, pessoas muito simples que me ensinaram algumas das coisas mais fundamentais que me marcaram para sempre. MJS - Nobre da Costa, sabendo dessa tua ligação inicial à Mundet, chama-te em que ano? JSL - Em 78. Eu era deputado, tinha deixado o primeiro governo constitucional, onde fui sub-secretário para a Comunicação Social (Manuel Alegre era o secretário de Estado ) e onde penso que se fizeram algumas coisas capazes - a distribuição postal gratuita para os jornais, o que impediu que a imprensa regional acabasse, salvaram-se algumas estações de rádio, suportou-se a televisão, surgiu a primeira Lei da Imprensa. Nobre da Costa convida-me para a Mundet porque o meu nome reunia o consenso da comissão de trabalhadores (PC), da Câmara Municipal do Seixal (também PC) e dos accionistas, que eram a viúva do Mundet e o Governo. Com a minha nomeação já pronta para seguir para o Diário da República, recebo uma chamada do Palácio de Belém. Era o Presidente da República general Ramalho Eanes, que me disse - "Estou aqui com o primeiro-ministro (Mário Soares), há uma situação complicada e você tem que ir para a RTP." Expliquei que tinha acabado de assumir um compromisso com o ministro da Indústria, que Mário Soares porventura desconhecia, e que me ia apresentar no dia seguinte no Seixal. Ao que Eanes respondeu - " Dentro de meia hora é aqui, em Belém, que você se apresenta!". Nobre da Costa foi também convocado e passados dois dias eu tomava posse como presidente do conselho de administração da RTP. Fiquei sempre com algum peso na consciência por ter falhado à Mundet e ao Seixal. MJS - Em 74 eras funcionário da RTP. Foi aí que conheceste o general Eanes, no período em que também ele passou pela televisão? JSL - Exactamente. Eu era chefe de serviço e ele director de programas. Trabalhámos secretária com secretária. E não gostava muito dele nesse tempo. A guerra interna na casa era enorme, RGT contínuas que duravam até de madrugada, uma turbulência permanente e eu achava que o Eanes me deixava, repetidas vezes, no pau da obra, por falta de determinação. No 11 de Março estive com ele praticamente todo o dia. Quando à noite saí para jantar, ouvi na Rádio Renascença o Eanes ser acusado de ter feito, nesse mesmo dia, todas as tropelias do mundo. Como tinha estado com ele, sabia que não era verdade. Já não jantei, voltei para trás e disse-lhe - "Meu caro, estou aqui para tudo o que for necessário." E assim criámos uma grande amizade, que dura até hoje. MJS - Em 78, quando foste chamado, já com Ramalho Eanes em Belém, recebeste orientações precisas para o comando das operações na RTP? JSL - Orientações? Zero! Para escândalo dos que nos lerem, vou dizer-te que me socorri de uma velha frase de Salazar - "estudar com dúvida e realizar com fé". Durante um mês ou dois pus-me a pensar o que é que iria fazer, recrutei meia dúzia de pessoas, pu-las a trabalhar comigo e disse - "Isto tem que ser quase como uma refundação da RTP. E a reforma não pode ser a conta-gotas. Tem que sair tudo à mesma hora, no mesmo dia." A situação era parecida com a que encontrei depois na RDP e de que já te falei: era preciso reorganizar, redimensionar, reequipar, realojar. Não havia material de produção, os emissores estavam a chegar ao fim, chegámos a estar instalados em vinte e três sítios em Lisboa, concentrei quase tudo na 5 de Outubro... MJS - Foi tua a decisão de comprar o edifício da 5 de Outubro? JSL - A ideia tinha sido do meu antecessor, Edmundo Pedro. Aproveitei-a e consolidei-a. Fui eu que tive que negociar junto da Banca e do Ministério das Finanças a forma de comprar o edifício, foi uma boa operação, a meio das negociações cheguei a ter uma oferta generosa do vendedor, o Banco Pinto & Sotto Mayor, que o queria comprar de volta. Tive o grande gosto de cumprir sempre os pagamentos devidos e de deixar a empresa, ao fim dos dois anos e picos que lá estive, numa situação financeira equilibrada, tendo-a recebido com um passivo enorme. Isto tudo só foi possível pelo grande empenhamento dos que trabalhavam na RTP e que acreditaram, de facto, no projecto, que era um projecto novo. A tal espécie de refundação, como já te disse. MJS - De que o segundo canal foi uma imagem de marca. JSL - O Fernando Lopes foi uma das minhas grandes bengalas. Disse-lhe - "Tens que fazer o segundo canal, mas não tenho dinheiro nenhum para te dar. Dou-te umas instalações e meia dúzia de meios. Descobre uma maneira de fazer o canal!" É fundamental apostar na capacidade criativa de quem tem créditos na matéria. E confiar. Confiar muito. O Fernando foi a França e negociou centenas de horas com a Pathé e outros fornecedores, praticamente de graça, a pagarmos quando e como pudéssemos. E criou um modelo, com um projecto de informação totalmente diferente do do canal 1. Na altura falava-se em complementaridade entre os dois canais, mas não era verdade. Não há complementaridade em televisão, há só competição. MJS - E acabaste por ser demitido pelo governo AD? JSL - Contra a vontade do dr. Sá Carneiro. Já cá não está para testemunhar, mas soube sempre que foi contra a sua vontade. Eu tinha entrado em conflito com algum pessoal da RTP do Porto. Tinha substituído as chefias e parte da direcção do centro de produção do Norte. Chamei-os à sede, na São Domingos à Lapa, e disse-lhes que eles não estavam a prestar um serviço que me oferecesse garantias de que o Porto se assumia como um centro de produção, com a qualidade e o nível que desejávamos, que havia obras a decorrer e outras situações que precisavam de ser ultimadas e que não estavam a sê-lo. Apanharam o comboio de volta e um deles, sobretudo um, antes de se dirigir aos estúdios do Monte da Virgem foi à direcção distrital do PSD no Porto e inscreveu-se no partido. A vingança estava prometida e ia começar. Quando a AD ganhou as eleições, aquela distrital, como acontece em todos os partidos, apresentou algumas facturas. A minha saída era uma delas. MJS - Foi Sá Carneiro quem ta comunicou? JSL - Não, foi o dr. Pinto Balsemão, que era ministro da Presidência. Quando lhe fui pôr o lugar à disposição, coisa que sempre fiz quando havia mudança da tutela, ele disse-me que, embora houvesse outras leituras possíveis, o Governo entendia que eu, ao pôr o lugar à disposição, estava a apresentar a minha demissão. Pediu-me que me mantivesse na presidência da RTP até ser nomeado um substituto e que, até lá, nada mais fizesse que não fosse a gestão corrente do dia-a-dia. Isto passou-se em Fevereiro/Março de 80, eu em Janeiro tinha posto clandestinamente a cor no ar... MJS - Clandestinamente? JSL - Estávamos em período eleitoral, o Governo ainda não tinha anunciado uma decisão definitiva sobre o sistema de cor e entendi que faria a experiência, mas só para algumas casas que entretanto se tinham equipado com receptores de cor. Os fornecedores de televisores andavam a tentar forçar o adiamento da decisão, invocando que tinham os armazéns atulhados de aparelhos a preto e branco e que iam ter um prejuízo enorme. De nada lhes serviu porque a cor explodiu de um dia para o outro, como te lembras. No dia seguinte à minha saída da RTP, entrou no ar a televisão a cores. Percebi então porque é que me fora dito para me manter lá, sem fazer mais nada. Essa foi uma das grandes mágoas que nunca esqueci. Foi mesmo vinte e quatro horas depois de eu ter saído. Como por milagre, estava tudo a postos. Nem podes imaginar o trabalho que aquelas negociações tinham dado ao ministro da Indústria de então, Álvaro Barreto, e a mim. As pressões do lado do sistema Secam, como também do Pal, foram inimagináveis. MJS - Para além da compra do edifício da 5 de Outubro, chegaste a ter planos de trazer para a mesma área os estúdios do Lumiar. JSL - Quando cheguei à RTP, o único património que a empresa tinha era aquele bocadinho do Monte da Virgem, no Porto. O resto era tudo alugado. A minha ideia era que ficasse tudo junto e como propriedade da televisão. E teria sido possível fazer isso nuns terrenos que havia atrás da sede da 5 de Outubro e que iam quase até ao Hospital Curry Cabral. Eu já tinha conseguido comprar os estúdios de Lisboa em hasta pública e estava a negociar, por troca com o Lumiar, aqueles terrenos. Onde caberiam os novos estúdios, os arquivos e o mais que quisesse vir. A própria RDP, que ainda estava no Quelhas, se assim o entendesse também poderia mudar-se para ali. Entreguei esse dossier ao meu sucessor e amigo, Vítor Cunha Rego, mas ele passou pouquíssimo tempo pela RTP e não pegou no assunto. Proença de Carvalho, que veio a seguir e que tinha uma leitura da televisão muito diferente da minha, muito mais política, também não. Perdeu-se uma grande oportunidade. A RTP, com esse património imobiliário e apesar de todos os contratempos e dos desperdícios a que tem sido sujeita, estaria hoje financeiramente muito bem. MJS - Tem-se a ideia, passado todo este tempo, que os governos desses anos em que estiveste na RTP mantinham-se mais à distância daquela casa. Era assim? JSL - Era. Embora houvesse naturalmente alguns atritos. Foram anos muito bons para dirigir a RTP, porque os governos eram curtos e fracos e andavam mais distraídos com outras coisas. Foi o que se passou com Nobre da Costa, Mota Pinto, Maria de Lourdes Pintasilgo. Para o fim as coisas começaram a piorar. MJS - Nunca percebi muito bem a polémica saída de Vasco Graça Moura de director de programas e de informação do canal 1. Ainda estou a ouvi-lo, em plena emissão, dizer que "em democracia não há lugares para homens providenciais, nem figuras insubstituíveis". A sua demissão teve a ver com um dos tais atritos? JSL - Foi um deles. É uma história complicada e triste. MJS - Mas houve ou não ingerência da tutela a pedir a cabeça do Vasco? JSL - Foi a última e a primeira. E eu devia ter pedido a demissão nesse dia. Não o fiz porque fui muito pressionado, não de fora, mas de dentro da televisão. Foi uma fraqueza minha. MJS - Qual era a acusação? JSL - A televisão foi acusada, pelo Governo, que já era da AD, de parcialidade e incorrecção numa determinada notícia. Proença de Carvalho era ministro da Comunicação Social. O Vasco, depois de eu já ter feito um comunicado sobre o assunto, entendeu que também ele devia dar uma explicação ao país, em directo, com veemência. E assim fez. Avisou-me e, como podes imaginar, poderia tê-lo impedido de entrar no ar. Não o fiz, porque entendi que ele tinha esse direito. A responsabilidade foi minha. E a cabeça dele rolou. "Mea culpa". MJS - Foste a favor ou contra a abertura do mercado de televisão em Portugal a operadores privados? JSL - Durante muito tempo, que vai praticamente até finais dos anos 80, andei numa roda viva, como se num circo ambulante, a fazer debates onde exprimia a minha opinião de que não havia mercado publicitário para suportar tantos canais de televisão. Até porque nessa altura, é preciso que se diga, os investimentos publicitários em televisão eram muito mais baixos, a situação económica do país era completamente outra e havia uma série de produtos, nomeadamente os financeiros, que não investiam em televisão. Nesse contexto não era possível conceber a existência de privadas. Depois, passados alguns anos, já muito cansado de debater e perante modificações comportamentais do mercado e dos agentes financeiros, defendi a hipótese de que havia lugar para um canal privado. E fui continuando a apresentar os meus pontos de vista alternativos e a enunciar algumas das dificuldades e problemas que se avizinhavam e que hoje são do conhecimento de todos. Quem quiser ler o que, de há vinte anos para cá, escrevi sobre televisão, irá de certeza encontrar matéria confirmada pela actualidade. Defendi nomeadamente que devíamos ter uma autoridade, uma entidade reguladora dos meios electrónicos de comunicação social, que devia ser única - tanto para o licenciamento das estações, como para os conteúdos, para as frequências a utilizar, para os suportes (e ainda não se falava nessa altura em televisão digital). Foi-se para a mascarada dos conselhos de opinião, para uma situação onde não se deu poderes a esses órgãos, reformulou-se a Lei da Televisão uma e duas vezes, ninguém controlou nunca se os operadores privados, que entretanto ganharam os concursos, cumpriam o caderno de encargos pelos quais foram aceites para passarem a operar. Será um exercício curioso analisar o que as estações privadas se propunham fazer e o que estão a fazer. Em Portugal há muitas leis, leis a mais, há uma diarreia legislativa em relação a quase tudo. Como mera especulação, se me fosse dado mandar neste país por vinte e quatro horas, faria um único decreto - É proibido legislar. É obrigatório o cumprimento das leis que já existem. Porque há legislação suficiente para regular tudo isto. Ou por falta de meios, ou por inércia, ou por falta de coragem e de autoridade, as pessoas não cumprem nem fazem cumprir as próprias leis. MJS - E os "lobbies" ? Não darão eles também uma ajudinha? JSL - Claro. Claro que há "lobbies" em Portugal, sem que haja uma lei-quadro para o seu exercício. Há "lobbies" em muitos países, só que obedecem a um quadro legal de actuação regulamentada, fora do qual não podem funcionar. MJS - Aqui e agora, e do teu ponto de vista, quais são os "lobbies" mais fortes que dominam a cena nacional? JSL - São, naturalmente, os "lobbies" económicos. Perceberam muito depressa que "de per se" não chegavam lá e que tinham que tomar conta da comunicação social, tinham que associar às suas áreas de actividade o poder da comunicação. Como sabes, isto é o que se vem passando em muitas outras partes do mundo. MJS - Achas que o lobby político já perdeu a batalha? JSL - Quero achar que ainda não, mas está na iminência de a perder. Passou de número 1 para número 3. Hoje, qualquer jornalista estagiário permite-se, com grande impunidade, escrever as coisas mais disparatadas sobre o poder, o Governo, quem quer que seja. MJS - É de esperar que a prática política e o exercício do poder de um governo socialista sejam caracterizados por privilegiar o social e o cultural, obrigando o económico a servir e a sustentar essas dimensões. O que acabas de dizer, pertencendo tu à família socialista, soa a uma contradição nos termos. JSL - Estamos de facto a viver uma situação complicada, com razões de ordem cultural e ancestral à mistura. Somos um povo que se lembra sempre mais de quem foi autoritário, determinante e teve força para obrigar ou incentivar as nossas vidas neste ou naquele sentido. Temos uma História que nos fala constantemente disso, o que nem sempre é consentâneo com um diálogo muito aberto. Penso que a harmonia, que é um ideal que preside, julgo eu, um pouco ao nosso chefe do Governo, não é ainda totalmente possível de estabelecer neste estádio da nossa sociedade. Há demasiados interesses, demasiadas tunas, demasiadas bandas, demasiadas orquestras, demasiados regentes, demasiadas intromissões no quotidiano do poder, que tornam a gestão comum dos interesses nacionais muito, muito difícil. MJS - Não será também por ainda parecer ser difícil o entendimento que o princípio de autoridade faz parte da plena vivência democrática? JSL - Também. O poder tem que ser exercido. O poder tem que ser assumido com determinação e com força. Porque se se sente fraqueza no exercício do poder, as pessoas fazem disso uma leitura que não é de benevolência, não é de contemporização nem de tolerância, é de incapacidade. Chegados aí, é preocupante. E há já sinais que têm que ser levados em linha de conta. Por outro lado, se a democracia é também o sistema das minorias, é inadmissível que minorias inexpressivas tenham o papel altamente perturbador que andam a ter no país. MJS - Dá-me exemplos. JSL - Três ou quatro empresários que se reúnem e que dizem que a economia está numa situação catastrófica, dois ou três antigos ministros de um Governo da oposição que fazem comentários e apreciações de um hiper-criticismo doentio e destituído do mínimo de bom senso e de realismo, meia dúzia de cidadãos de uma aldeia que é vila e que querem que seja concelho, que por isso cortam a estrada e a GNR vai namorar com eles durante três dias e só ao quarto, extenuados os guardas, conseguem remover as pessoas, ainda ontem vi na ponte Vasco da Gama dois autocarros parados com os passageiros, em plena ponte, a olharem para o rio. Isto não pode continuar. Alguém tem que dizer - "Alto e pára o baile! Vamos cumprir a lei e respeitarmo-nos uns aos outros." E é preciso que mais pessoas contribuam para o bem-estar de todos nós. Somos um país pobre, com limitações. Vês o desassossego gerado por esta pequena abordagem de uma reforma fiscal? E antes dela surgir, no entanto, gritavam todos pela urgência de uma reforma. Vivemos de sugar a Índia, depois a África, o Brasil, agora é a Comunidade Económica. E a seguir? Haverá mais algum oásis à espera do nosso sugadouro? Descobrir-se-á petróleo no Beato? Não sendo eu crente, julgo que este país é protegido por alguma força superior que contrabalança o "salve-se quem puder" em que nos habituámos a viver, sem aflorarmos sequer a prática e a vivência colectiva da solidariedade, da justiça, da equidade. MJS - Estamos quase a acabar. Regresso a um dos teus pratos fortes, a televisão. Houve ou não, nos últimos dez anos, um aviltamento da ideia de um serviço público de televisão? JSL - Houve e por culpa do serviço público. Não se soube renovar. O mapa-tipo da RTP é ainda do tempo do dr. Domingos Mascarenhas, que morreu há mais de vinte anos. O que há de novo é decalcado das privadas. Sabes bem que a televisão é também um meio perverso. Passas por lá seis meses e tens logo a ideia que sabes tudo. Eu estive lá anos e anos e saí com a ideia de que não sabia nada. O que é preciso é refundar o serviço público de televisão. Outra vez. Fazer tudo de novo. Para isso é preciso vontade política, disponibilização de meios, confiança mobilizadora em profissionais criativos, formação de quadros jovens pelos melhores do mundo. Apostar totalmente na muita imaginação dos mais jovens. A RTP está velha, tenho pena de dizê-lo. Os criativos foram eclipsados. Transferidos para o purgatório. E a publicidade tomou conta dos conteúdos, o que é inadmissível num serviço público. E não é a publicidade dos Bentley que comanda. É a dos detergentes. MJS - A existência de uma taxa para a RTP sempre ajudava a moderar a voragem e a ingerência da publicidade no serviço público. Talvez fosse mesmo possível viver sem essa presença?! JSL - A taxa de televisão foi suprimida com grande ligeireza, pelo governo de Cavaco Silva. Um erro crasso. Mas a decadência da RTP não se deve só ao fim da taxa. Longe disso. E continuam a passar-se coisas espantosas. Sabes que a renovação do contrato de concessão do serviço público devia ter sido renegociada em 1999 e ainda não foi? MJS - Sem comentários. Estarias disponível para que a tal refundação fosse de novo tentada? JSL - Ir para lá, não. Colaborar de algum modo, ajudar a encontrar algumas soluções, dar algumas pistas, sempre. O tempo é dos criativos mais novos. Que ninguém duvide disso. MJS - Dá-me uma palavra de eleição. JSL - Harmonia. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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