Serviço público de televisão: um debate luso-português

08-01-2002
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Serviço Público de Televisão: Um Debate Luso-português

Por ALBERTO ARONS DE CARVALHO*

Sábado, 5 de Janeiro de 2002 A televisão é um meio demasiado próximo e familiar para que seja possível esperar um debate em seu redor com a profundidade que a sua influência exigiria. Isso não significa todavia que cruzemos os braços perante a superficialidade e a ignorância com que alguns a comentam, nomeadamente quando em causa está o serviço público de televisão. O presidente da RDP, José Manuel Nunes, referia há tempos que havia, sobre o serviço público de televisão, um "debate luso-português". JM Nunes assinalava justamente a tremenda contradição entre a nossa medíocre polémica caseira e o vasto e antigo consenso europeu sobre a definição, o âmbito e a forma de financiamento do serviço público de televisão. O debate sobre o tema é recorrente, mas não deixa de ser significativo que ele tenha recentemente regressado, precisamente numa altura em que, com o aparecimento dos "reality shows", a "tabloidização" de alguns telejornais e o recurso massivo a produtos de êxito certo (a SIC exibia recentemente oito telenovelas brasileiras por dia!), parecia mais evidente a necessidade de um bom e diferenciador serviço público de televisão. A polémica começa, significativamente, logo no conceito de serviço público, alegadamente desconhecido ou mesmo inexistente para alguns, que assim confessam nunca terem sequer ouvido falar das milhares de páginas de doutrina sobre a matéria e das dezenas de documentos oficiais da União Europeia e do Conselho da Europa. Esse corpo doutrinário europeu, um dos eixos centrais da cultura deste continente, reúne todas as principais famílias político-ideológicas da direita à esquerda desde há várias décadas. Afastado do convívio europeu durante muitos anos, Portugal viria a ter muito mais um monopólio público governamentalizado do que um serviço público de televisão. O fim da taxa, conjugado com o início da televisão comercial, esteve na origem do descalabro financeiro da RTP, agravado por anos de insuficiente financiamento estatal. A incapacidade manifestada em vários períodos para encontrar, em alternativa à oferta comercial, uma "programação popular de qualidade" - para usar uma expressão muito utilizada na doutrina europeia -, também nada contribuiu para recuperar a ideia de que há um espaço e uma necessidade de uma empresa de capitais públicos que, além de vários canais e serviços não lucrativos e necessariamente dispendiosos, centre principalmente a sua actividade nesse canal de televisão generalista, atraente, alternativo e para todos os públicos. Este conjunto de razões explica que muitos portugueses não se sintam identificados com a RTP, como tantos milhões de britânicos se encontram afectivamente ligados à sua BBC, ou que todos os europeus, excepto os espanhóis, paguem sem protestar verbas mensais que ultrapassam frequentemente os dois ou três mil escudos para as suas empresas públicas de rádio e de televisão. Todavia, tal não desculpa aqueles que, sem nada disto terem estudado ou sem sequer conhecerem os documentos portugueses sobre o serviço público - Constituição, Lei da Televisão, Estatuto da RTP e Contrato de Concessão -, discorrem sobre a inexistência de uma estratégia ou de uma definição de serviço público de televisão. Escrevem sobre a RTP como se ela pudesse manter-se financeiramente equilibrada, sem uma verba anual de, no mínimo, 25 milhões de contos. Equiparam a RTP aos operadores comerciais, omitindo todos os canais e serviços não lucrativos que ela presta. Declaram não haver diferenças entre a programação da RTP e a dos outros operadores, que aliás se tornou mais nítida quando a concorrência se acentuou entre a SIC e a TVI. Contestam também que a programação da RTP no seu todo possa ser considerado serviço público, como se os espectáculos musicais, o futebol ou as novelas que a BBC ou qualquer outro operador público europeu transmitem não fossem parte integrante da programação de serviço público, paga pela taxa dos cidadãos. É claro que não considero a defesa do actual modelo de serviço público como um dogma inquestionável e imutável. A evolução tecnológica, potenciada pela televisão digital e pela convergência com as telecomunicações, colocará novos desafios a que importará responder na altura própria e poderá levar mesmo à reformulação da actual oferta da RTP. Tenho, todavia, como adquirido que Portugal, país periférico, com uma oferta cultural limitada e uma economia dependente, tem tudo a perder se se afastar do consenso europeu nesta matéria. Para que tal não aconteça, é necessário: - Recusar a concepção americana de serviço público, limitada a uma programação elitista, um "ghetto" sem influência social ou cultural, mas também a ideia de uma "televisão comercial do Estado", em que a programação em nada se diferencia da oferecida pelos operadores comerciais. - Recusar a privatização total ou parcial da RTP ou de qualquer dos seus principais canais. Uma eventual privatização, por exemplo da RTP1, limitaria drasticamente as receitas publicitárias da empresa, conduziria os operadores comerciais para uma dramática situação face a um limitado mercado publicitário, retiraria provavelmente de mãos portuguesas a propriedade da empresa, enfraquecendo irremediavelmente a frágil indústria audiovisual portuguesa. Entretanto, com menores receitas publicitárias e um custo acrescido na programação dos canais internacionais, ainda hoje muito dependentes da RTP1, o custo global da RTP seria apenas ligeiramente inferior... - Continuar a reestruturação económico-financeira da RTP, reduzindo custos, aumentando o nível de eficiência e de qualidade dos serviços prestados. - Financiar a RTP de acordo com os serviços que lhe são exigidos. Aos que fazem a mais lamentável demagogia sobre os milhões atribuídos à RTP, importa lembrar quanto recebem dos cidadãos dos respectivos países algumas empresas congéneres (valores de 2000): a BBC recebe 750 milhões de contos por ano, só o primeiro canal da TV pública alemã, 900 milhões, a televisão pública holandesa, 90 milhões, a austríaca, 118 milhões, a norueguesa, 70 milhões e, sublinhe-se, a turca, 45 milhões... Não se trata apenas do financiamento adequado - e regular e previsível... - da RTP. Considere-se também o impacto que ele teria sobre o conjunto da indústria audiovisual, para cujo desenvolvimento a RTP continua, apesar de tudo, a ser absolutamente essencial. - Continuar o esforço de melhoria da programação dos diferentes canais da RTP e de diferenciação dos canais comerciais. Para aqueles que não conseguem fazer essa distinção, importa recordar alguns dados de 2000: percentagens de emissão de programas originariamente em língua portuguesa (RTP1, 73,5%; SIC, 61,5%; TVI, 56,9%); programas criativos em língua portuguesa (RTP1, 31,3%; SIC, 18,7%; TVI, 11,1%); difusão de obras europeias (RTP1, 64,6%; SIC, 34,8%; TVI, 36,5%); produções independentes recentes (RTP1, 42,2%; SIC, 18,6%; TVI, 31,5%); conjunto de produções independentes (RTP1, 47,3%; SIC, 19,6%; TVI, 33,5%). Em tempo pré-eleitoral, é natural que os partidos procurem alternativas. Sei que aquilo que a RTP ofereceu aos portugueses na última década foi insuficiente, mas seria dramático que a ilusão de conquista de mais uns votos viesse a conduzir a RTP e todo o sector audiovisual para uma situação ainda pior do que a actual. *Secretário de Estado da Comunicação Social OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Problemas dos animais com espaço regular na rádio

Perdidos e achados em 88.0 FM

Televisão pública espanhola reforçou liderança em 2001

TV Hoje

Cinema em casa

Nota

OPINIÃO

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BREVES

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Sábado, 5 de Janeiro de 2002 A televisão é um meio demasiado próximo e familiar para que seja possível esperar um debate em seu redor com a profundidade que a sua influência exigiria. Isso não significa todavia que cruzemos os braços perante a superficialidade e a ignorância com que alguns a comentam, nomeadamente quando em causa está o serviço público de televisão. O presidente da RDP, José Manuel Nunes, referia há tempos que havia, sobre o serviço público de televisão, um "debate luso-português". JM Nunes assinalava justamente a tremenda contradição entre a nossa medíocre polémica caseira e o vasto e antigo consenso europeu sobre a definição, o âmbito e a forma de financiamento do serviço público de televisão. O debate sobre o tema é recorrente, mas não deixa de ser significativo que ele tenha recentemente regressado, precisamente numa altura em que, com o aparecimento dos "reality shows", a "tabloidização" de alguns telejornais e o recurso massivo a produtos de êxito certo (a SIC exibia recentemente oito telenovelas brasileiras por dia!), parecia mais evidente a necessidade de um bom e diferenciador serviço público de televisão. A polémica começa, significativamente, logo no conceito de serviço público, alegadamente desconhecido ou mesmo inexistente para alguns, que assim confessam nunca terem sequer ouvido falar das milhares de páginas de doutrina sobre a matéria e das dezenas de documentos oficiais da União Europeia e do Conselho da Europa. Esse corpo doutrinário europeu, um dos eixos centrais da cultura deste continente, reúne todas as principais famílias político-ideológicas da direita à esquerda desde há várias décadas. Afastado do convívio europeu durante muitos anos, Portugal viria a ter muito mais um monopólio público governamentalizado do que um serviço público de televisão. O fim da taxa, conjugado com o início da televisão comercial, esteve na origem do descalabro financeiro da RTP, agravado por anos de insuficiente financiamento estatal. A incapacidade manifestada em vários períodos para encontrar, em alternativa à oferta comercial, uma "programação popular de qualidade" - para usar uma expressão muito utilizada na doutrina europeia -, também nada contribuiu para recuperar a ideia de que há um espaço e uma necessidade de uma empresa de capitais públicos que, além de vários canais e serviços não lucrativos e necessariamente dispendiosos, centre principalmente a sua actividade nesse canal de televisão generalista, atraente, alternativo e para todos os públicos. Este conjunto de razões explica que muitos portugueses não se sintam identificados com a RTP, como tantos milhões de britânicos se encontram afectivamente ligados à sua BBC, ou que todos os europeus, excepto os espanhóis, paguem sem protestar verbas mensais que ultrapassam frequentemente os dois ou três mil escudos para as suas empresas públicas de rádio e de televisão. Todavia, tal não desculpa aqueles que, sem nada disto terem estudado ou sem sequer conhecerem os documentos portugueses sobre o serviço público - Constituição, Lei da Televisão, Estatuto da RTP e Contrato de Concessão -, discorrem sobre a inexistência de uma estratégia ou de uma definição de serviço público de televisão. Escrevem sobre a RTP como se ela pudesse manter-se financeiramente equilibrada, sem uma verba anual de, no mínimo, 25 milhões de contos. Equiparam a RTP aos operadores comerciais, omitindo todos os canais e serviços não lucrativos que ela presta. Declaram não haver diferenças entre a programação da RTP e a dos outros operadores, que aliás se tornou mais nítida quando a concorrência se acentuou entre a SIC e a TVI. Contestam também que a programação da RTP no seu todo possa ser considerado serviço público, como se os espectáculos musicais, o futebol ou as novelas que a BBC ou qualquer outro operador público europeu transmitem não fossem parte integrante da programação de serviço público, paga pela taxa dos cidadãos. É claro que não considero a defesa do actual modelo de serviço público como um dogma inquestionável e imutável. A evolução tecnológica, potenciada pela televisão digital e pela convergência com as telecomunicações, colocará novos desafios a que importará responder na altura própria e poderá levar mesmo à reformulação da actual oferta da RTP. Tenho, todavia, como adquirido que Portugal, país periférico, com uma oferta cultural limitada e uma economia dependente, tem tudo a perder se se afastar do consenso europeu nesta matéria. Para que tal não aconteça, é necessário: - Recusar a concepção americana de serviço público, limitada a uma programação elitista, um "ghetto" sem influência social ou cultural, mas também a ideia de uma "televisão comercial do Estado", em que a programação em nada se diferencia da oferecida pelos operadores comerciais. - Recusar a privatização total ou parcial da RTP ou de qualquer dos seus principais canais. Uma eventual privatização, por exemplo da RTP1, limitaria drasticamente as receitas publicitárias da empresa, conduziria os operadores comerciais para uma dramática situação face a um limitado mercado publicitário, retiraria provavelmente de mãos portuguesas a propriedade da empresa, enfraquecendo irremediavelmente a frágil indústria audiovisual portuguesa. Entretanto, com menores receitas publicitárias e um custo acrescido na programação dos canais internacionais, ainda hoje muito dependentes da RTP1, o custo global da RTP seria apenas ligeiramente inferior... - Continuar a reestruturação económico-financeira da RTP, reduzindo custos, aumentando o nível de eficiência e de qualidade dos serviços prestados. - Financiar a RTP de acordo com os serviços que lhe são exigidos. Aos que fazem a mais lamentável demagogia sobre os milhões atribuídos à RTP, importa lembrar quanto recebem dos cidadãos dos respectivos países algumas empresas congéneres (valores de 2000): a BBC recebe 750 milhões de contos por ano, só o primeiro canal da TV pública alemã, 900 milhões, a televisão pública holandesa, 90 milhões, a austríaca, 118 milhões, a norueguesa, 70 milhões e, sublinhe-se, a turca, 45 milhões... Não se trata apenas do financiamento adequado - e regular e previsível... - da RTP. Considere-se também o impacto que ele teria sobre o conjunto da indústria audiovisual, para cujo desenvolvimento a RTP continua, apesar de tudo, a ser absolutamente essencial. - Continuar o esforço de melhoria da programação dos diferentes canais da RTP e de diferenciação dos canais comerciais. Para aqueles que não conseguem fazer essa distinção, importa recordar alguns dados de 2000: percentagens de emissão de programas originariamente em língua portuguesa (RTP1, 73,5%; SIC, 61,5%; TVI, 56,9%); programas criativos em língua portuguesa (RTP1, 31,3%; SIC, 18,7%; TVI, 11,1%); difusão de obras europeias (RTP1, 64,6%; SIC, 34,8%; TVI, 36,5%); produções independentes recentes (RTP1, 42,2%; SIC, 18,6%; TVI, 31,5%); conjunto de produções independentes (RTP1, 47,3%; SIC, 19,6%; TVI, 33,5%). Em tempo pré-eleitoral, é natural que os partidos procurem alternativas. Sei que aquilo que a RTP ofereceu aos portugueses na última década foi insuficiente, mas seria dramático que a ilusão de conquista de mais uns votos viesse a conduzir a RTP e todo o sector audiovisual para uma situação ainda pior do que a actual. *Secretário de Estado da Comunicação Social OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Problemas dos animais com espaço regular na rádio

Perdidos e achados em 88.0 FM

Televisão pública espanhola reforçou liderança em 2001

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