Quatro cartas de Sara e um postal de Klimt

23-07-2001
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Quatro Cartas de Sara e Um Postal de Klimt

Por PEDRO PAIXÃO

Segunda-feira, 23 de Julho de 2001

1. O meu pai trabalha numa loja de ferragens. Foi lá que procurei o seu endereço. Lá na loja há muitas listas telefónicas. Pode ser que tenha acertado. Se não tiver acertado, o que é bem provável, agora também já não importa. É tarde para corrigir o erro, e de qualquer modo é sempre uma pessoa que eu não conheço a receber uma mensagem de uma pessoa que também não conhece. Que nem pode adivinhar como existe. E daí não é bem assim. Se é realmente quem eu penso que é, então deve continuar a ler ou então pare e rasgue, deite fora, queime.

Se lhe escrevo é porque sonhei consigo a noite passada. Não foi um sonho diferente do habitual. Nada tinha de erótico. Já devo ter passado a idade dos desejos reprimidos. Era um sonho normal. Imagens aparecem, misturam-se umas com as outras e desaparecem sem sabermos para onde. Quando acordamos algumas delas ficaram. O meu sonho era bastante simples. Eu estava numa igreja. Não sei dizer se era um casamento ou um funeral; sei que havia muitas flores e muitas pessoas. Eu trazia numa mão um bloco de apontamentos, na outra uma caneta de tinta preta. Era tudo bastante desinteressante. Eu riscava continuamente coisas no bloco de apontamentos. Escrevia pensamentos de última hora misturados com pedaços de letras do Rui Reininho: "Vejo um rio, vejo destroços de metal a flutuar." Saí da igreja. Num banco de pedra estava você com um livro nas mãos. Lia para si. Aproximei-me e sentei-me. Olhou-me pelo canto do olho e continuou a ler. Tentei desenterrar da minha cabeça um pretexto para falar consigo. Sem conseguir, ali fiquei. Esperei que acabasse por me perguntar as horas ou qualquer coisa do género. Mas você não disse nada e continuou a ler. Não me importei. Lembrei-me de estar habituada ao desprezo, à falta de oportunidades, como agora lhe chamam. Eu chamo-lhe infelicidade. O ser indiferente o estar ali ou não estar ali. Então acordei e o sonho acabou. Fiquei com o que lhe contei, tudo junto numa só imagem.

Desculpe-me a caligrafia, sim?

2. Pendurado por cima da cabeceira da minha cama está um anjo em porcelana que toca violino. Está lá há muito tempo. Quando eu era pequenina perguntava-me porque é que ele tocava violino e não harpa ou lira como todos os outros anjinhos. Enredada neste mistério adormecia a pensar nele. Diziam-me que era o meu anjo da guarda, que velava por mim enquanto dormia. Eu acreditava e não passava uma noite, ou uma manhã sem lhe pedir baixinho: "Anjo da guarda, minha companhia, olha por mim de noite e de dia." Agora vejo-o cá de debaixo, deitada de barriga para o ar. Deste ângulo o meu anjinho não parece um anjinho e o violino não se parece lá muito com um violino e dou por mim a pensar se acredito ou não no meu anjo da guarda. Ainda não cheguei a uma conclusão. Mas se pudesse escolher o meu, queria que fosse o Nick Cave. E cantasse para mim todas as noites baixinho até eu adormecer. E me jurasse que tudo ia correr bem. Sempre.

3. Nunca tive muito jeito com as palavras. Nem elas cuidado comigo. Hoje parece-me tudo bem. Bem demais. Não sei bem como lhe diga.

Na passada segunda-feira fui obrigada a abandonar a malha e arrastada pelos meus amigos até ao Aniki-Bobó. Há muito tempo que me vendi à dinâmica do "crochet", que consiste em contar de seguida até quatro um número infindável de vezes. Sei que existe alguma coisa por fazer, mas que me dá tanto sono que não conta. Eis o motivo por que aprendi a fazer "crochet": ao fim de pouco tempo vê-se obra feita, algo realizado, mesmo que seja apenas uma manta de bocados de lãs velhas em bom estilo português.

Mas, como eu dizia, os meus melhores amigos quiseram arrancar-me da monotonia (ou do que eles julgam ser a monotonia) e levaram-me ao Aniki-Bobó, o que estranhei porque costumamos ir ao Meia Cave que fica mesmo ao lado. Mas, para quem se dedica exclusivamente à malha, tanto faz.

Achei, e continuo a achar, que não me deviam ter levado. A situação criada para além de não melhorar o meu estado de espírito - grande objectivo que eles julgavam ver alcançado - fez com que eu me sentisse mal. Primeiro porque não contava encontrá-lo e depois porque é demasiado estranha a situação de se estar tão próximo de alguém que não nos conhece e se conhece ao mesmo tempo. Enfim, o costume, só que levado às suas últimas consequências.

No fundo, e com tudo isto, só queria dizer que acho bom escrever-lhe e não acho que fosse nada bom falar-lhe. É gostar das coisas como elas estão e não querer mudar nada. É como ouvir sempre a mesma música. É sinal de que gostamos dela. Não vale a pena exprimir uma opinião. Não é mesmo preciso. Basta continuar a ouvi-la. Algo me diz que concorda absolutamente comigo.

4. Não sei o que escreva porque teria demais para escrever. Não tenho tempo para perder. Prometi a mim mesma que tenho de sair daqui antes que se me acabe a pasta de dentes, o que não deve ser muito mais tempo para quem lava os dentes oito vezes por dia. Limpa-me.

O que eu queria era ter uma história verdadeira para lhe contar que acabasse bem. Queria morar no Faial e acordar todos os dias a ver o mar, a fitar o Pico. Mas antes disso queria sair daqui. Queria acreditar que Deus cura todos os males. Queria ficar muito tempo em cima de uma rocha a pescar sem isco e levar com os respingos das ondas até me molharem os lábios e sentir aquele sabor estranho que tem a água do mar. Mas queria sobretudo escapar de tudo o que me obriga a começar a pensar em coisas que depois não consigo acabar de pensar.

5. Não fumo, não bebo bebidas alcoólicas, como poucas gorduras, não como produtos fumados e outros mais. Mesmo assim parece que tenho um tumor maligno no fígado. Parece-me injusto, ainda não fiz 22 anos, e tu nunca viste a minha cara. Amo-te. Os meus melhores dias tiveram de acabar.

Quatro Cartas de Sara e Um Postal de Klimt

Por PEDRO PAIXÃO

Segunda-feira, 23 de Julho de 2001

1. O meu pai trabalha numa loja de ferragens. Foi lá que procurei o seu endereço. Lá na loja há muitas listas telefónicas. Pode ser que tenha acertado. Se não tiver acertado, o que é bem provável, agora também já não importa. É tarde para corrigir o erro, e de qualquer modo é sempre uma pessoa que eu não conheço a receber uma mensagem de uma pessoa que também não conhece. Que nem pode adivinhar como existe. E daí não é bem assim. Se é realmente quem eu penso que é, então deve continuar a ler ou então pare e rasgue, deite fora, queime.

Se lhe escrevo é porque sonhei consigo a noite passada. Não foi um sonho diferente do habitual. Nada tinha de erótico. Já devo ter passado a idade dos desejos reprimidos. Era um sonho normal. Imagens aparecem, misturam-se umas com as outras e desaparecem sem sabermos para onde. Quando acordamos algumas delas ficaram. O meu sonho era bastante simples. Eu estava numa igreja. Não sei dizer se era um casamento ou um funeral; sei que havia muitas flores e muitas pessoas. Eu trazia numa mão um bloco de apontamentos, na outra uma caneta de tinta preta. Era tudo bastante desinteressante. Eu riscava continuamente coisas no bloco de apontamentos. Escrevia pensamentos de última hora misturados com pedaços de letras do Rui Reininho: "Vejo um rio, vejo destroços de metal a flutuar." Saí da igreja. Num banco de pedra estava você com um livro nas mãos. Lia para si. Aproximei-me e sentei-me. Olhou-me pelo canto do olho e continuou a ler. Tentei desenterrar da minha cabeça um pretexto para falar consigo. Sem conseguir, ali fiquei. Esperei que acabasse por me perguntar as horas ou qualquer coisa do género. Mas você não disse nada e continuou a ler. Não me importei. Lembrei-me de estar habituada ao desprezo, à falta de oportunidades, como agora lhe chamam. Eu chamo-lhe infelicidade. O ser indiferente o estar ali ou não estar ali. Então acordei e o sonho acabou. Fiquei com o que lhe contei, tudo junto numa só imagem.

Desculpe-me a caligrafia, sim?

2. Pendurado por cima da cabeceira da minha cama está um anjo em porcelana que toca violino. Está lá há muito tempo. Quando eu era pequenina perguntava-me porque é que ele tocava violino e não harpa ou lira como todos os outros anjinhos. Enredada neste mistério adormecia a pensar nele. Diziam-me que era o meu anjo da guarda, que velava por mim enquanto dormia. Eu acreditava e não passava uma noite, ou uma manhã sem lhe pedir baixinho: "Anjo da guarda, minha companhia, olha por mim de noite e de dia." Agora vejo-o cá de debaixo, deitada de barriga para o ar. Deste ângulo o meu anjinho não parece um anjinho e o violino não se parece lá muito com um violino e dou por mim a pensar se acredito ou não no meu anjo da guarda. Ainda não cheguei a uma conclusão. Mas se pudesse escolher o meu, queria que fosse o Nick Cave. E cantasse para mim todas as noites baixinho até eu adormecer. E me jurasse que tudo ia correr bem. Sempre.

3. Nunca tive muito jeito com as palavras. Nem elas cuidado comigo. Hoje parece-me tudo bem. Bem demais. Não sei bem como lhe diga.

Na passada segunda-feira fui obrigada a abandonar a malha e arrastada pelos meus amigos até ao Aniki-Bobó. Há muito tempo que me vendi à dinâmica do "crochet", que consiste em contar de seguida até quatro um número infindável de vezes. Sei que existe alguma coisa por fazer, mas que me dá tanto sono que não conta. Eis o motivo por que aprendi a fazer "crochet": ao fim de pouco tempo vê-se obra feita, algo realizado, mesmo que seja apenas uma manta de bocados de lãs velhas em bom estilo português.

Mas, como eu dizia, os meus melhores amigos quiseram arrancar-me da monotonia (ou do que eles julgam ser a monotonia) e levaram-me ao Aniki-Bobó, o que estranhei porque costumamos ir ao Meia Cave que fica mesmo ao lado. Mas, para quem se dedica exclusivamente à malha, tanto faz.

Achei, e continuo a achar, que não me deviam ter levado. A situação criada para além de não melhorar o meu estado de espírito - grande objectivo que eles julgavam ver alcançado - fez com que eu me sentisse mal. Primeiro porque não contava encontrá-lo e depois porque é demasiado estranha a situação de se estar tão próximo de alguém que não nos conhece e se conhece ao mesmo tempo. Enfim, o costume, só que levado às suas últimas consequências.

No fundo, e com tudo isto, só queria dizer que acho bom escrever-lhe e não acho que fosse nada bom falar-lhe. É gostar das coisas como elas estão e não querer mudar nada. É como ouvir sempre a mesma música. É sinal de que gostamos dela. Não vale a pena exprimir uma opinião. Não é mesmo preciso. Basta continuar a ouvi-la. Algo me diz que concorda absolutamente comigo.

4. Não sei o que escreva porque teria demais para escrever. Não tenho tempo para perder. Prometi a mim mesma que tenho de sair daqui antes que se me acabe a pasta de dentes, o que não deve ser muito mais tempo para quem lava os dentes oito vezes por dia. Limpa-me.

O que eu queria era ter uma história verdadeira para lhe contar que acabasse bem. Queria morar no Faial e acordar todos os dias a ver o mar, a fitar o Pico. Mas antes disso queria sair daqui. Queria acreditar que Deus cura todos os males. Queria ficar muito tempo em cima de uma rocha a pescar sem isco e levar com os respingos das ondas até me molharem os lábios e sentir aquele sabor estranho que tem a água do mar. Mas queria sobretudo escapar de tudo o que me obriga a começar a pensar em coisas que depois não consigo acabar de pensar.

5. Não fumo, não bebo bebidas alcoólicas, como poucas gorduras, não como produtos fumados e outros mais. Mesmo assim parece que tenho um tumor maligno no fígado. Parece-me injusto, ainda não fiz 22 anos, e tu nunca viste a minha cara. Amo-te. Os meus melhores dias tiveram de acabar.

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