Coragem e democracia

14-02-2001
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COMENTÁRIO

Coragem e Democracia

Por SÃO JOSÉ ALMEIDA

Quarta-feira, 14 de Fevereiro de 2001 Há 20 anos a homossexualidade visível em Portugal estava mais ou menos confinada a "espaços" como o Finalmente, o Trumps e menos explicitamente o Frágil, pelo menos em Lisboa. Entretanto, por razões que têm a ver de forma global com o crescimento da sociedade democrática, há uma nova geração nascida e criada em liberdade que vive a sua sexualidade sem medos. E começou a existir uma realidade sociológica "gay" que inclui matizes diversas que ultrapassam em muito o exibicionismo estereotipado. Soma-se a esta nova atitude por parte dos homossexuais, a criação de movimentos "gays" que foram impulsionados também por força de uma outra realidade: a sida. Ora, quando o fenómeno "gay" assumiu proporções sociais significativas e logo eleitorais - um impacto que transcende em muito a comunidade homossexual -, alguns políticos descobriram o fenómeno e estruturaram um discurso na tentativa de lhe dar resposta. Ciclicamente, o assunto irrompe na agenda política, a maioria das vezes de uma forma desfasada e oportunista. Hoje, mais uma vez, os deputados vão insistir na dose, com o problema acrescido de se prepararem para aprovar um verdadeiro aborto jurídico que dará cobertura legal a um comportamento social discriminatório e homofóbico em perda na sociedade portuguesa. Querendo dar a impressão de que estão a resolver um problema, estão a criar mais um. Expliquemos: em 1997, na revisão da Constituição recusaram-se a estipular que, tal como a raça, a religião ou sexo, a orientação sexual não deve ser motivo de discriminação; há dois anos, por lei, institucionalizaram uma discriminação de um grupo de cidadãos em função da sua orientação sexual, ao aprovarem uma lei de reconhecimento de direitos só para casais heterossexuais. Agora, os deputados preparam-se para criar uma novidade que é o reconhecimento de um regime de economia comum, trazido à colação da discussão político-parlamentar por Maria José Nogueira Pinto e à qual o PS, com o beneplácito de António Guterres, se agarrou e deu conteúdo, para, em simultâneo, tentar satisfazer o mercado eleitoral "gay", sem correr o risco de chocar a sua quota de eleitores homofóbicos. Quando até já a comissão episcopal da família se pronunciou abertamente sobre esta realidade e o conceito de família evolui sociologicamente, alguns deputados avançam com uma proposta que "cola com cuspo cacos" de situações diferentes. Ou seja, alargam os direitos das uniões de facto heterossexual a pessoas que vivem juntas, mas retiram-lhe a carga sexual. Tudo numa lógica moralista salazarenta e criando uma fórmula sexualmente asséptica. Assim, recusam-se a tornar universal, como propõem "Os Verdes", o PCP e o BE, e tão-só para pessoas em união de facto, uma lei que é segregadora dos homossexuais. Mas por saberem todos que estão a tentar abrir um buraco por onde possam satisfazer a comunidade "gay", nos impedimentos à aplicação da futura lei, decalcados dos da união de facto "hetero", que por sua vez se baseia no casamento. Isto é, partem para uma trapalhada jurídica, apresentada como abrangente e para satisfazer outras realidades que não só a homossexual e até acenam com o caso das duas velhinhas que vivem em comum. Mas proíbem que essas duas velhinhas sejam irmãs ou cunhadas - assumindo o preconceito contra a carga sexual do incesto e tentando justificar "a coisa" com um discurso em que a homossexualidade é apresentada como um fenómeno de jovens e a economia em comum como uma coisa de velhos. Sob o argumento de que o Estado não deve olhar pelo buraco da fechadura, vão perpetuar uma situação em que duas lésbicas e dois homossexuais que, por exemplo, desejem comprar uma casa em conjunto ou dar assistência médica ao seu par não o podem fazer por causa da sua orientação sexual. E, atenção, em debate não está (nem é para aqui chamado) o direito à adopção. Isso é outro problema. Apenas uma nota sobre esta bizarria que os deputados - com a falta de coragem política que, por vezes, os caracteriza e, paradoxalmente, sob proposta de um partido que se arroga de fortes raízes democráticas - se preparam para inventar, de modo a dar resposta encapotada a uma exigência social em crescimento, mas sem perturbar os seus próprios fantasmas e dúvidas sobre a dita sexualidade. A democracia caracteriza-se por ser um sistema em que o cidadão está representado e se relaciona directa e livremente com o Estado, enquanto indivíduo. Só que no bafio salazarento português, o indivíduo, o cidadão é um ser assexuado ou então só tem liberdade para ser heterossexual. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Assembleia da República não vai reconhecer estatuto social a homossexuais

Socialistas estão profundamente divididos

Abaixo-assinado e manifestação

EDITORIAL Direitos e deveres

Vítor e Artur desiludidos com o PS

"Os heterossexuais ficariam satisfeitos com a economia comum?"

A actual lei e as novas propostas

Pacto Civil de Solidariedade tem um ano e muitos adeptos em França

COMENTÁRIO Coragem e democracia

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Por SÃO JOSÉ ALMEIDA

Quarta-feira, 14 de Fevereiro de 2001 Há 20 anos a homossexualidade visível em Portugal estava mais ou menos confinada a "espaços" como o Finalmente, o Trumps e menos explicitamente o Frágil, pelo menos em Lisboa. Entretanto, por razões que têm a ver de forma global com o crescimento da sociedade democrática, há uma nova geração nascida e criada em liberdade que vive a sua sexualidade sem medos. E começou a existir uma realidade sociológica "gay" que inclui matizes diversas que ultrapassam em muito o exibicionismo estereotipado. Soma-se a esta nova atitude por parte dos homossexuais, a criação de movimentos "gays" que foram impulsionados também por força de uma outra realidade: a sida. Ora, quando o fenómeno "gay" assumiu proporções sociais significativas e logo eleitorais - um impacto que transcende em muito a comunidade homossexual -, alguns políticos descobriram o fenómeno e estruturaram um discurso na tentativa de lhe dar resposta. Ciclicamente, o assunto irrompe na agenda política, a maioria das vezes de uma forma desfasada e oportunista. Hoje, mais uma vez, os deputados vão insistir na dose, com o problema acrescido de se prepararem para aprovar um verdadeiro aborto jurídico que dará cobertura legal a um comportamento social discriminatório e homofóbico em perda na sociedade portuguesa. Querendo dar a impressão de que estão a resolver um problema, estão a criar mais um. Expliquemos: em 1997, na revisão da Constituição recusaram-se a estipular que, tal como a raça, a religião ou sexo, a orientação sexual não deve ser motivo de discriminação; há dois anos, por lei, institucionalizaram uma discriminação de um grupo de cidadãos em função da sua orientação sexual, ao aprovarem uma lei de reconhecimento de direitos só para casais heterossexuais. Agora, os deputados preparam-se para criar uma novidade que é o reconhecimento de um regime de economia comum, trazido à colação da discussão político-parlamentar por Maria José Nogueira Pinto e à qual o PS, com o beneplácito de António Guterres, se agarrou e deu conteúdo, para, em simultâneo, tentar satisfazer o mercado eleitoral "gay", sem correr o risco de chocar a sua quota de eleitores homofóbicos. Quando até já a comissão episcopal da família se pronunciou abertamente sobre esta realidade e o conceito de família evolui sociologicamente, alguns deputados avançam com uma proposta que "cola com cuspo cacos" de situações diferentes. Ou seja, alargam os direitos das uniões de facto heterossexual a pessoas que vivem juntas, mas retiram-lhe a carga sexual. Tudo numa lógica moralista salazarenta e criando uma fórmula sexualmente asséptica. Assim, recusam-se a tornar universal, como propõem "Os Verdes", o PCP e o BE, e tão-só para pessoas em união de facto, uma lei que é segregadora dos homossexuais. Mas por saberem todos que estão a tentar abrir um buraco por onde possam satisfazer a comunidade "gay", nos impedimentos à aplicação da futura lei, decalcados dos da união de facto "hetero", que por sua vez se baseia no casamento. Isto é, partem para uma trapalhada jurídica, apresentada como abrangente e para satisfazer outras realidades que não só a homossexual e até acenam com o caso das duas velhinhas que vivem em comum. Mas proíbem que essas duas velhinhas sejam irmãs ou cunhadas - assumindo o preconceito contra a carga sexual do incesto e tentando justificar "a coisa" com um discurso em que a homossexualidade é apresentada como um fenómeno de jovens e a economia em comum como uma coisa de velhos. Sob o argumento de que o Estado não deve olhar pelo buraco da fechadura, vão perpetuar uma situação em que duas lésbicas e dois homossexuais que, por exemplo, desejem comprar uma casa em conjunto ou dar assistência médica ao seu par não o podem fazer por causa da sua orientação sexual. E, atenção, em debate não está (nem é para aqui chamado) o direito à adopção. Isso é outro problema. Apenas uma nota sobre esta bizarria que os deputados - com a falta de coragem política que, por vezes, os caracteriza e, paradoxalmente, sob proposta de um partido que se arroga de fortes raízes democráticas - se preparam para inventar, de modo a dar resposta encapotada a uma exigência social em crescimento, mas sem perturbar os seus próprios fantasmas e dúvidas sobre a dita sexualidade. A democracia caracteriza-se por ser um sistema em que o cidadão está representado e se relaciona directa e livremente com o Estado, enquanto indivíduo. Só que no bafio salazarento português, o indivíduo, o cidadão é um ser assexuado ou então só tem liberdade para ser heterossexual. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Assembleia da República não vai reconhecer estatuto social a homossexuais

Socialistas estão profundamente divididos

Abaixo-assinado e manifestação

EDITORIAL Direitos e deveres

Vítor e Artur desiludidos com o PS

"Os heterossexuais ficariam satisfeitos com a economia comum?"

A actual lei e as novas propostas

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