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30-11-2000
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P. - Ou seja, Cunhal afasta o PS do jogo das alianças...

R.- O que houve aqui foi um confronto permanente entre um projecto que visava instalar em Portugal um modelo de tipo soviético, ou do tipo albanês e um projecto democrático. Claro que houve a ilusão, e eu fui um dos que tiveram essa ilusão, de que seria possível uma via original portuguesa para o socialismo. Um socialismo com liberdades e que escapasse à lógica dos blocos. Comecei a perdê-la antes do 25 de Abril.

P.- Em que momento começou a luta para si?

R.- Sobretudo fiquei muito preocupado no 28 de Setembro de 1974 estava eu na Emissora Nacional (EN). Houve aquela manifestação de direita do [então membro da Junta Militar, general da Força Aérea]Galvão de Melo e nessa noite houve um ataque à EN. Eu fui preso pelo [então major, a comandar a PSP de Lisboa] Casanova Ferreira e pelo [então ministro da Comunicação Social, membro do MFA e major] Sanches Osório. Eu e o Jaime Gama conseguimos sair, viemos para a rua tentar pôr a emissora no ar. Constatámos então que as barricadas eram uma coisa muito folclórica e que se houvesse um golpe de direita, uma pinochetada, tudo isto ruiria como um baralho de cartas. Cheguei à conclusão de que ou havia um PS muito forte, ou isto iria acabar muitíssimo mal. É nessa altura que eu e o Edmundo Pedro vamos falar com o Mário Soares e entramos para o PS.

P. - Tem a percepção do perigo da direita mas acaba a combater o PCP...

R. - Isto, no fundo, é um combate entre as esquerdas. Entre uma esquerda leninista nas suas diferentes variantes (albanesa, maoista, castrista) e a esquerda socialista...

P. - ... o cónego Melo diz que foi uma luta entre marxistas.

R. - ... e tem uma certa razão. Bem, depois há a ocupação do aparelho de Estado, há a cisão dentro das Forças Armadas e o primeiro congresso na legalidade do PS, onde Rosa Coutinho tenta criar um partido dentro do PS, o partido verdadeiramente socialista. Esse é o momento capital.

P. - e há a luta com Manuel Serra [que disputou a liderança a Mário Soares]...

R. - Somos amigos e ele hoje diz : 'vocês ganharam e ainda bem que ganharam...'. Tratava-se de tentar satelizar o PS e de criar aqui um partido de tipo checoslovaco, que apoiou o golpe de Praga. O Rosa Coutinho e aqueles que pagaram isso - e na altura gastaram aí uns cinco mil contos com isso...

P. - Mas pagaram como? De fora do PS?

R. - Sim, de fora do PS. Queriam criar um núcleo que deixasse a corrente socialista tradicional e o Mário Soares em minoria. O Mário Soares não seria afastado, permaneceria secretário-geral do PS, mas o Manuel Serra tinha a maioria na direcção. Ora a autonomia do PS era um elemento capital para fazer frente a esse projecto. Eu nem era delegado e o Zenha mandou-me chamar. Pediu-me para discursar e isso virou o congresso, com o Mário Soares a ganhar em toda a linha, permitindo salvaguardar a autonomia do PS.

P. - Nesse congresso aparecem ao lado do PS militares de Abril como Salgueiro Maia e Manuel Monge...

R. - Havia a ideia de que todos os militares estavam como o PCP. Foi um facto muito importante essa presença no Congresso de militares como o[hoje general] Manuel Monge, o então capitão, comandante da força de cavalaria que prendeu Marcelo Caetano no Carmo, em Lisboa, em 25 de Abril de 1974, já falecido] Salgueiro Maia e o [membro do núcleo dirigente inicial do Movimento dos Capitães] Hugo dos Santos. Por essa altura, eu tive uma reunião com o Sottomayor Cardia, o Magalhães Godinho, o Raul Rego em casa do Edmundo Pedro com o Monge, Hugo dos Santos, Salgueiro Maria e outros militares abrilistas que começaram a estabelecer contactos connosco através de mim.

P. - O Alpoim Calvão chega a dizer que o PS está por trás do MDLP...

R. - Isso é o que eu chamo uma visão intriguista da História.

P. - Mas é antes ou depois do Congresso, que assume a segurança do PS e os contactos com os militares?

R. - Isso é mais tarde. Em primeiro lugar há essa luta política pela autonomia e afirmação do PS. Depois há um outro momento muito importante que é o da unicidade sindical e aí nós estamos muito isolados. Mesmo militares que viriam a pertencer ao Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço, eram a favor da unicidade. Há o artigo do Zenha nos jornais, estavam a decorrer as negociações do Alvor [entre Portugal e os três movimentos angolanos de libertação, MPLA, FNLA e UNITA]e , numa reunião na Duque D'Ávila, decidimos fazer um comício no Pavilhão dos Desportos. Nem todos estávamos de acordo porque se achava que isto estava perdido.

P. - Quem é que não estava de acordo?

R. - Havia vários dirigentes que não estavam de acordo porque achavam que a guerra estava perdida e que não iríamos conseguir encher o pavilhão. Há uma noite em que o Rádio Clube começa a falar dos partidos contra-revolucionários. Saltou o PSD, o CDS e saltou o PS. Era para aí meia-noite quando eu e o Jaime Gama escrevemos um comunicado a dizer que estava em curso um golpe antidemocrático e que íamos resistir. Meia hora depois apareceram centenas de militantes junto à sede de S. Pedro de Alcântara. Nessa noite foram ensaiados "slogans" e nos dias seguintes comprámos altifalantes, mandámos fazer milhares de bandeiras e mandámos carros para rua. E começámos a preparar o comício do Pavilhão dos Desportos contra a unicidade sindical.

P. - Mas quem é que tinha dúvidas?

R. - O próprio Mário Soares tinha dúvidas. Estava no Alvor e tivemos uma discussão ao telefone com ele e dissemos que se não enchêssemos o Pavilhão o melhor era fechar a porta. Não só o enchemos como ficaram milhares de pessoas cá fora. Isso criou uma nova dinâmica de mobilização e o PS demonstrou que tinha capacidade para vir para a rua.

P. - Nessa altura que contactos tinham com Spínola?

R. - Tive dois encontros com o Spínola. O primeiro foi em casa dele, onde fui com o [antigo exilado em Argel, director adjunto do Diário de Lisboa, e professor universitário, já falecido] Piteira Santos para esclarecer duas coisas: primeiro porque não nos tinham deixado entrar no [Estádio] 1º de Maio e a morte do Amílcar Cabral. Fomos lá levados pelo Manuel Monge.

P. - Quando é que foi a segunda vez?

R. - A segunda foi muito antes do 11 de Março, também com o Manuel Monge, que tinha a grande preocupação de o Spínola ficar isolado e permeável a aventuras a que oficiais mais extremistas que o rodeavam podiam levá-lo. Depois cortámos os contactos com Spínola. Foi um erro grande da parte do PS ter cortado esses contactos com Spínola, que ficou à mercê de um certo aventureirismo. Acho que ele estava desesperado e isolado. Talvez quisesse ser candidato a PR com o apoio do PS e acabou por ser vítima do aventureirismo da direita e da extrema-direita que o rodeavam e também de alguns serviços secretos que estavam em Portugal.

P. - Nessa altura agudiza-se a luta entre os Nove e o sector gonçalvista, e o PS joga nas grandes manifestações de rua...

R. - Recordo-me de uma no Porto, no estádio das Antas que foi porventura a maior que se realizou nessa altura. Mas na Fonte Luminosa pensei: isto é irrepetível. Lembro-me de ter dito ao Soares: 'Vamos daqui para Belém e vamos acabar com isto'. Eu estava dirigir o comício e percebi que aquilo era irrepetível num dia em que tinham acontecido coisas terríveis: os militantes do PS que vinham da Figueira da Foz e de Coimbra, como a minha irmã e o meu cunhado, o António Portugal - a quem partiram os dentes à pedrada - foram apanhados pelos fuzileiros em Alhandra e aquilo foi terrível.

Eanes ajudou-nos a constituir milícias armadas

P. - A partir daí o PS organiza-se em milícias armadas?

R. - Antes há outro episódio de que não se fala. O Zenha telefona-me a dizer que o Almeida e Costa [ministro da Administração Interna] nos chamou porque se passa algo de muito grave. Chegamos lá e estava o Almeida e Costa de cabeça perdida por causa de um relatório de uma reunião que tinha havido na véspera na Rádio Renascença em que vários grupos de extrema-esquerda tinham decido desencadear um golpe de estado. Isto é em Outubro de 1975. Ele diz que não tem meios e nós perguntamos o que quer ele que a gente faça. Tentámos então um contacto com o Pinheiro de Azevedo que era primeiro-ministro, que nos pediu para denunciar a situação em dois comunicados, um escrito por mim outro pelo Zenha. Dissemos então que estaria em marcha um golpe de estado, apelámos à vigilância e à mobilização e pusemos os militantes e os carros na rua.

P. - Foi aí que começaram a constituir as milícias?

R. - Começámos então a constituir milícias quando percebemos que ganháramos as eleições, ganháramos a batalha da rua, mas mesmo assim eles insistiam. As milícias são uma das coisas que resultam desse trabalho com o Eanes. Ele ajudou-nos nisso.

P. - Mas quantas pessoas eram? Onde estavam?

R. - As milícias propriamente constituídas eram umas quinhentas pessoas na cintura de Lisboa. As armas receberam-nas depois. Havia um grupo muito ligado aos comandos que passavam lá as noites a gritar "Comando amigo o povo está contigo".

P. - Tinham enquadramento militar?

R. - No princípio não tem enquadramento militar mas mais tarde acabam por ter, em Santarém, na Amadora e junto a outras unidades. Tínhamos contacto com a Força Aérea, com um tenente-coronel, Fernando Vasques, o Óscar Parente.

P. - Aproximamo-nos do 25 de Novembro...

R. - Nessa altura tínhamos já muitos contactos com o Grupo dos Nove, através do Vasco Lourenço, do Melo Antunes. Encontrámo-nos muitas vezes em casa do [comandante]Gomes Mota em reuniões em que também estavam os ex-MES, o [actual Presidente da República] Jorge Sampaio, o [historiador e professor universitário, já falecido] César Oliveira e outros. Há uma aceleração da preparação para o golpe com as milícias já armadas e ocorre uma decisão política do secretariado do PS de o Mário Soares ir para o Norte e de o Zenha ficar em Lisboa. Eu iria ter com o Mário Soares ao Porto, embora não fôssemos juntos. Ele foi pela orla e eu fui pelo centro.

P. - Onde se encontraram? Pararam no Porto ou foram para Vigo?

R. - Encontrámo-nos [Alegre e Soares] no gabinete do Pires Veloso, já nessa madrugada. Estava também o Lemos Ferreira.

P. - Mas quando tiveram a noção exacta da dimensão dos acontecimentos?

R. - Com o avanço dos páras percebemos que aquilo era o início de um golpe militar mas era sobretudo o início de um golpe contra a democracia. Da parte da extrema-esquerda talvez houvesse uma intenção mais aguerrida. O PCP estava na expectativa mas dá o aval político. Deixava avançar se não houvesse resposta. Mas o PCP, que podia ter tomado o poder em Lisboa embora não tivesse condições para o conservar, acabou por recuar e evita o confronto pela omissão.

P. - Não acha que Álvaro Cunhal já tinha negociado com Melo Antunes?

R. - Acho que não. Houve um momento muito tenso, muito complicado, de extrema tensão em que o PCP não tem uma posição clara, vê qual é a relação de forças e percebe num dado momento que essa relação militar e popular não lhe era favorável e recua. O PCP percebe e evitou o confronto pela abstenção. Sem PS, os Nove e Eanes teria havido "pinochetada"

P. - Encontra-se então com Mário Soares no gabinete de Pires Veloso que não estava satisfeito com o rumo das coisas..

R. - Pires Veloso não estava satisfeito. Queria mais...

P. - O que é que ele queria?

R. - Penso que queria o Otelo!

P. - Queria o Otelo?

R. - Ele não explicitou mas deixou claro que não estava satisfeito. ... é a partir daí que começa a travagem. O Melo Antunes começa a travar e há um grande comício no Porto em que o Mário Soares diz que é necessário consolidar a democracia, que vai funcionar a democracia pluralista e que o PCP tem o seu lugar...

P. - Pires Veloso disse ao PÚBLICO que Eanes não comandou nada.

R. - O Eanes e o Vasco Lourenço tiveram um papel essencial que tem de ser realçado. Sem eles não teríamos ganho o 25 de Novembro. O 25 de Novembro é a vitória da democracia, não é o fim da revolução. ... é o fim do lado festivo da revolução. Mas esse lado festivo iria sempre acabar. Se o PCP ganha, o que teríamos? A revolução russa foi uma festa? A revolução albanesa foi uma festa?

P. - Mas poderia ter acontecido ter vencido também o outro 25 de Novembro, de extrema-direita.

R. - Podia, apesar de ser difícil, porque o controlo das operações esteve nas mãos de uma esquerda militar democrática e de um partido democrático que é o PS. Se isso não tem acontecido não tenho dúvidas que haveria aqui uma 'pinochetada' valente.

P. - A apreensão das armas e consequente prisão de Edmundo Pedro é um episódio que ainda hoje deixa feridas abertas.

R. - Houve um general que se portou muito bem que foi o general Galvão Figueiredo. Veio dos Açores assumir que a responsabilidade de ter entregue as armas ao Edmundo Pedro no contexto que se verificou que foi o de responder a um golpe militar anti-democrático. Esse episódio foi uma armadilha contra o PS, o Edmundo Pedro foi armadilhado, e nessa altura fiquei chocado com o silêncio do general Eanes.

P. -Assistiu à distribuição das armas ao PS?

R. - Não assisti. A partir de certa altura os grupos que constituíam as milícias funcionaram com autonomia.

P. - O PS chegou a receber promessas de apoios internacionais por parte de Governos ocidentais, nomeadamente o britânico.

R. - Isso eram contactos directos do Mário Soares...

P. - Você não sabia disso?

R. - Eu desconhecia isso. Quando vou para o Porto não sabia de nada. Só vim a saber mais tarde, quando o Mário Soares conta [já nos anos 90]. Não sabia que estava preparado um plano para entrega de armas, combustíveis. Provavelmente o Eanes e os militares saberiam disso mas nem eu nem outros dirigentes do PS sabíamos.

P. - Ou seja, Cunhal afasta o PS do jogo das alianças...

R.- O que houve aqui foi um confronto permanente entre um projecto que visava instalar em Portugal um modelo de tipo soviético, ou do tipo albanês e um projecto democrático. Claro que houve a ilusão, e eu fui um dos que tiveram essa ilusão, de que seria possível uma via original portuguesa para o socialismo. Um socialismo com liberdades e que escapasse à lógica dos blocos. Comecei a perdê-la antes do 25 de Abril.

P.- Em que momento começou a luta para si?

R.- Sobretudo fiquei muito preocupado no 28 de Setembro de 1974 estava eu na Emissora Nacional (EN). Houve aquela manifestação de direita do [então membro da Junta Militar, general da Força Aérea]Galvão de Melo e nessa noite houve um ataque à EN. Eu fui preso pelo [então major, a comandar a PSP de Lisboa] Casanova Ferreira e pelo [então ministro da Comunicação Social, membro do MFA e major] Sanches Osório. Eu e o Jaime Gama conseguimos sair, viemos para a rua tentar pôr a emissora no ar. Constatámos então que as barricadas eram uma coisa muito folclórica e que se houvesse um golpe de direita, uma pinochetada, tudo isto ruiria como um baralho de cartas. Cheguei à conclusão de que ou havia um PS muito forte, ou isto iria acabar muitíssimo mal. É nessa altura que eu e o Edmundo Pedro vamos falar com o Mário Soares e entramos para o PS.

P. - Tem a percepção do perigo da direita mas acaba a combater o PCP...

R. - Isto, no fundo, é um combate entre as esquerdas. Entre uma esquerda leninista nas suas diferentes variantes (albanesa, maoista, castrista) e a esquerda socialista...

P. - ... o cónego Melo diz que foi uma luta entre marxistas.

R. - ... e tem uma certa razão. Bem, depois há a ocupação do aparelho de Estado, há a cisão dentro das Forças Armadas e o primeiro congresso na legalidade do PS, onde Rosa Coutinho tenta criar um partido dentro do PS, o partido verdadeiramente socialista. Esse é o momento capital.

P. - e há a luta com Manuel Serra [que disputou a liderança a Mário Soares]...

R. - Somos amigos e ele hoje diz : 'vocês ganharam e ainda bem que ganharam...'. Tratava-se de tentar satelizar o PS e de criar aqui um partido de tipo checoslovaco, que apoiou o golpe de Praga. O Rosa Coutinho e aqueles que pagaram isso - e na altura gastaram aí uns cinco mil contos com isso...

P. - Mas pagaram como? De fora do PS?

R. - Sim, de fora do PS. Queriam criar um núcleo que deixasse a corrente socialista tradicional e o Mário Soares em minoria. O Mário Soares não seria afastado, permaneceria secretário-geral do PS, mas o Manuel Serra tinha a maioria na direcção. Ora a autonomia do PS era um elemento capital para fazer frente a esse projecto. Eu nem era delegado e o Zenha mandou-me chamar. Pediu-me para discursar e isso virou o congresso, com o Mário Soares a ganhar em toda a linha, permitindo salvaguardar a autonomia do PS.

P. - Nesse congresso aparecem ao lado do PS militares de Abril como Salgueiro Maia e Manuel Monge...

R. - Havia a ideia de que todos os militares estavam como o PCP. Foi um facto muito importante essa presença no Congresso de militares como o[hoje general] Manuel Monge, o então capitão, comandante da força de cavalaria que prendeu Marcelo Caetano no Carmo, em Lisboa, em 25 de Abril de 1974, já falecido] Salgueiro Maia e o [membro do núcleo dirigente inicial do Movimento dos Capitães] Hugo dos Santos. Por essa altura, eu tive uma reunião com o Sottomayor Cardia, o Magalhães Godinho, o Raul Rego em casa do Edmundo Pedro com o Monge, Hugo dos Santos, Salgueiro Maria e outros militares abrilistas que começaram a estabelecer contactos connosco através de mim.

P. - O Alpoim Calvão chega a dizer que o PS está por trás do MDLP...

R. - Isso é o que eu chamo uma visão intriguista da História.

P. - Mas é antes ou depois do Congresso, que assume a segurança do PS e os contactos com os militares?

R. - Isso é mais tarde. Em primeiro lugar há essa luta política pela autonomia e afirmação do PS. Depois há um outro momento muito importante que é o da unicidade sindical e aí nós estamos muito isolados. Mesmo militares que viriam a pertencer ao Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço, eram a favor da unicidade. Há o artigo do Zenha nos jornais, estavam a decorrer as negociações do Alvor [entre Portugal e os três movimentos angolanos de libertação, MPLA, FNLA e UNITA]e , numa reunião na Duque D'Ávila, decidimos fazer um comício no Pavilhão dos Desportos. Nem todos estávamos de acordo porque se achava que isto estava perdido.

P. - Quem é que não estava de acordo?

R. - Havia vários dirigentes que não estavam de acordo porque achavam que a guerra estava perdida e que não iríamos conseguir encher o pavilhão. Há uma noite em que o Rádio Clube começa a falar dos partidos contra-revolucionários. Saltou o PSD, o CDS e saltou o PS. Era para aí meia-noite quando eu e o Jaime Gama escrevemos um comunicado a dizer que estava em curso um golpe antidemocrático e que íamos resistir. Meia hora depois apareceram centenas de militantes junto à sede de S. Pedro de Alcântara. Nessa noite foram ensaiados "slogans" e nos dias seguintes comprámos altifalantes, mandámos fazer milhares de bandeiras e mandámos carros para rua. E começámos a preparar o comício do Pavilhão dos Desportos contra a unicidade sindical.

P. - Mas quem é que tinha dúvidas?

R. - O próprio Mário Soares tinha dúvidas. Estava no Alvor e tivemos uma discussão ao telefone com ele e dissemos que se não enchêssemos o Pavilhão o melhor era fechar a porta. Não só o enchemos como ficaram milhares de pessoas cá fora. Isso criou uma nova dinâmica de mobilização e o PS demonstrou que tinha capacidade para vir para a rua.

P. - Nessa altura que contactos tinham com Spínola?

R. - Tive dois encontros com o Spínola. O primeiro foi em casa dele, onde fui com o [antigo exilado em Argel, director adjunto do Diário de Lisboa, e professor universitário, já falecido] Piteira Santos para esclarecer duas coisas: primeiro porque não nos tinham deixado entrar no [Estádio] 1º de Maio e a morte do Amílcar Cabral. Fomos lá levados pelo Manuel Monge.

P. - Quando é que foi a segunda vez?

R. - A segunda foi muito antes do 11 de Março, também com o Manuel Monge, que tinha a grande preocupação de o Spínola ficar isolado e permeável a aventuras a que oficiais mais extremistas que o rodeavam podiam levá-lo. Depois cortámos os contactos com Spínola. Foi um erro grande da parte do PS ter cortado esses contactos com Spínola, que ficou à mercê de um certo aventureirismo. Acho que ele estava desesperado e isolado. Talvez quisesse ser candidato a PR com o apoio do PS e acabou por ser vítima do aventureirismo da direita e da extrema-direita que o rodeavam e também de alguns serviços secretos que estavam em Portugal.

P. - Nessa altura agudiza-se a luta entre os Nove e o sector gonçalvista, e o PS joga nas grandes manifestações de rua...

R. - Recordo-me de uma no Porto, no estádio das Antas que foi porventura a maior que se realizou nessa altura. Mas na Fonte Luminosa pensei: isto é irrepetível. Lembro-me de ter dito ao Soares: 'Vamos daqui para Belém e vamos acabar com isto'. Eu estava dirigir o comício e percebi que aquilo era irrepetível num dia em que tinham acontecido coisas terríveis: os militantes do PS que vinham da Figueira da Foz e de Coimbra, como a minha irmã e o meu cunhado, o António Portugal - a quem partiram os dentes à pedrada - foram apanhados pelos fuzileiros em Alhandra e aquilo foi terrível.

Eanes ajudou-nos a constituir milícias armadas

P. - A partir daí o PS organiza-se em milícias armadas?

R. - Antes há outro episódio de que não se fala. O Zenha telefona-me a dizer que o Almeida e Costa [ministro da Administração Interna] nos chamou porque se passa algo de muito grave. Chegamos lá e estava o Almeida e Costa de cabeça perdida por causa de um relatório de uma reunião que tinha havido na véspera na Rádio Renascença em que vários grupos de extrema-esquerda tinham decido desencadear um golpe de estado. Isto é em Outubro de 1975. Ele diz que não tem meios e nós perguntamos o que quer ele que a gente faça. Tentámos então um contacto com o Pinheiro de Azevedo que era primeiro-ministro, que nos pediu para denunciar a situação em dois comunicados, um escrito por mim outro pelo Zenha. Dissemos então que estaria em marcha um golpe de estado, apelámos à vigilância e à mobilização e pusemos os militantes e os carros na rua.

P. - Foi aí que começaram a constituir as milícias?

R. - Começámos então a constituir milícias quando percebemos que ganháramos as eleições, ganháramos a batalha da rua, mas mesmo assim eles insistiam. As milícias são uma das coisas que resultam desse trabalho com o Eanes. Ele ajudou-nos nisso.

P. - Mas quantas pessoas eram? Onde estavam?

R. - As milícias propriamente constituídas eram umas quinhentas pessoas na cintura de Lisboa. As armas receberam-nas depois. Havia um grupo muito ligado aos comandos que passavam lá as noites a gritar "Comando amigo o povo está contigo".

P. - Tinham enquadramento militar?

R. - No princípio não tem enquadramento militar mas mais tarde acabam por ter, em Santarém, na Amadora e junto a outras unidades. Tínhamos contacto com a Força Aérea, com um tenente-coronel, Fernando Vasques, o Óscar Parente.

P. - Aproximamo-nos do 25 de Novembro...

R. - Nessa altura tínhamos já muitos contactos com o Grupo dos Nove, através do Vasco Lourenço, do Melo Antunes. Encontrámo-nos muitas vezes em casa do [comandante]Gomes Mota em reuniões em que também estavam os ex-MES, o [actual Presidente da República] Jorge Sampaio, o [historiador e professor universitário, já falecido] César Oliveira e outros. Há uma aceleração da preparação para o golpe com as milícias já armadas e ocorre uma decisão política do secretariado do PS de o Mário Soares ir para o Norte e de o Zenha ficar em Lisboa. Eu iria ter com o Mário Soares ao Porto, embora não fôssemos juntos. Ele foi pela orla e eu fui pelo centro.

P. - Onde se encontraram? Pararam no Porto ou foram para Vigo?

R. - Encontrámo-nos [Alegre e Soares] no gabinete do Pires Veloso, já nessa madrugada. Estava também o Lemos Ferreira.

P. - Mas quando tiveram a noção exacta da dimensão dos acontecimentos?

R. - Com o avanço dos páras percebemos que aquilo era o início de um golpe militar mas era sobretudo o início de um golpe contra a democracia. Da parte da extrema-esquerda talvez houvesse uma intenção mais aguerrida. O PCP estava na expectativa mas dá o aval político. Deixava avançar se não houvesse resposta. Mas o PCP, que podia ter tomado o poder em Lisboa embora não tivesse condições para o conservar, acabou por recuar e evita o confronto pela omissão.

P. - Não acha que Álvaro Cunhal já tinha negociado com Melo Antunes?

R. - Acho que não. Houve um momento muito tenso, muito complicado, de extrema tensão em que o PCP não tem uma posição clara, vê qual é a relação de forças e percebe num dado momento que essa relação militar e popular não lhe era favorável e recua. O PCP percebe e evitou o confronto pela abstenção. Sem PS, os Nove e Eanes teria havido "pinochetada"

P. - Encontra-se então com Mário Soares no gabinete de Pires Veloso que não estava satisfeito com o rumo das coisas..

R. - Pires Veloso não estava satisfeito. Queria mais...

P. - O que é que ele queria?

R. - Penso que queria o Otelo!

P. - Queria o Otelo?

R. - Ele não explicitou mas deixou claro que não estava satisfeito. ... é a partir daí que começa a travagem. O Melo Antunes começa a travar e há um grande comício no Porto em que o Mário Soares diz que é necessário consolidar a democracia, que vai funcionar a democracia pluralista e que o PCP tem o seu lugar...

P. - Pires Veloso disse ao PÚBLICO que Eanes não comandou nada.

R. - O Eanes e o Vasco Lourenço tiveram um papel essencial que tem de ser realçado. Sem eles não teríamos ganho o 25 de Novembro. O 25 de Novembro é a vitória da democracia, não é o fim da revolução. ... é o fim do lado festivo da revolução. Mas esse lado festivo iria sempre acabar. Se o PCP ganha, o que teríamos? A revolução russa foi uma festa? A revolução albanesa foi uma festa?

P. - Mas poderia ter acontecido ter vencido também o outro 25 de Novembro, de extrema-direita.

R. - Podia, apesar de ser difícil, porque o controlo das operações esteve nas mãos de uma esquerda militar democrática e de um partido democrático que é o PS. Se isso não tem acontecido não tenho dúvidas que haveria aqui uma 'pinochetada' valente.

P. - A apreensão das armas e consequente prisão de Edmundo Pedro é um episódio que ainda hoje deixa feridas abertas.

R. - Houve um general que se portou muito bem que foi o general Galvão Figueiredo. Veio dos Açores assumir que a responsabilidade de ter entregue as armas ao Edmundo Pedro no contexto que se verificou que foi o de responder a um golpe militar anti-democrático. Esse episódio foi uma armadilha contra o PS, o Edmundo Pedro foi armadilhado, e nessa altura fiquei chocado com o silêncio do general Eanes.

P. -Assistiu à distribuição das armas ao PS?

R. - Não assisti. A partir de certa altura os grupos que constituíam as milícias funcionaram com autonomia.

P. - O PS chegou a receber promessas de apoios internacionais por parte de Governos ocidentais, nomeadamente o britânico.

R. - Isso eram contactos directos do Mário Soares...

P. - Você não sabia disso?

R. - Eu desconhecia isso. Quando vou para o Porto não sabia de nada. Só vim a saber mais tarde, quando o Mário Soares conta [já nos anos 90]. Não sabia que estava preparado um plano para entrega de armas, combustíveis. Provavelmente o Eanes e os militares saberiam disso mas nem eu nem outros dirigentes do PS sabíamos.

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