"Vivemos em economia de mercado, mas não em sociedade de mercado"

14-05-2001
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João Cravinho advoga que a independência dos reguladores sectoriais necessita da legitimação do poder político

"Vivemos em Economia de Mercado, mas Não em Sociedade de Mercado"

Por CRISTINA FERREIRA

Segunda-feira, 14 de Maio de 2001 A origem do capital não é indiferente à salvaguarda do interesse nacional, considera João Cravinho. E diz que está por fazer o debate sobre a regulamentação adequada para delimitar a economia de mercado da sociedade de mercado. A questão de se as privatizações devem privilegiar o encaixe financeiro ou a manutenção dos centros de decisão na país está na ordem do dia, mas as privatizações em bolsa têm subjacente a primeira opção, considera João Cravinho, deputado do PS, ex-ministro do Planeamento e Equipamento, e que foi ministro da Indústria e Tecnologia no IV Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves. Pensa no entanto que isso não assegura a salvaguarda do interesse nacional. Defensor da economia de mercado mas não de uma sociedade de mercado, João Cravinho defende a necessidade de regulação de certos sectores e critica a ideia de reguladores independentes de tudo e de todos, que vê como "a melhor forma de ter um regulador dependente de alguém". Quanto ao peso crescente da economia espanhola em Portugal, considera que o que está em causa é uma grande luta pelos centros de decisão, mas que, como construção histórica e social, o mercado impõe limites a lógicas hegemónicas, e que esta é uma questão sensível entre os dois países. Na primeira parte desta entrevista (ver edição de ontem), Cravinho revisitou o período das nacionalizações, tendo defendido os seus efeitos, que avalia como globalmente positivos. Disse que os empresários não se têm dado mal com o modo como tem sido governada a economia e, a propósito do último congresso do PS, considera que o partido "não pode deixar-se aprisionar na gestão situacionista de equilíbrios de poderes fácticos". PÚBLICO - Vinte cinco anos depois, como dirigente do PS, consegue explicar por que razão António Guterres não aproveitou as receitas das privatizações para lançar uma estratégia de desenvolvimento sustentado no sector económico e social? JOÃO CRAVINHO - Há uma certa razão. Mas nem sempre predominou a lógica do encaixe financeiro. No espaço integrado da UE, "estalou" nos centros políticos, na economia, na opinião pública, um novo debate: saber se, quando uma empresa é privatizada, o que deve ser privilegiado é o encaixe financeiro ou, pelo contrário, se deve procurar manter no país os centros de decisão. Esta última hipótese vem colocar uma nova questão, pois quando se privatiza entrando no jogo da bolsa está-se a trabalhar numa pura lógica capitalista. E assim a discussão sobre manter, ou não, os centros de decisão no país de origem é um problema que não interessa aos cultores da pura lógica capitalista. P. - Na Alemanha, em França ou Espanha - talvez a única excepção seja mesmo a Grã-Bretanha - o problema é actual. R. - Vou citar gente de qualidade como o António Borges, para quem o problema não se coloca, pois o que está em causa é saber se uma empresa é bem gerida. E se é bem gerida então fica salvaguardado o interesse nacional, independentemente da origem do capital. Não é essa a minha visão. Mas reconheço que está implícita na decisão de privatizar em bolsa. P. - Uma empresa pode ser muito bem gerida, mas se o seu centro de decisão estiver fora do país de origem, fica ao sabor das estratégias da casa-mãe, que pode, em qualquer momento, optar pelo desinvestimento. Os exemplos são frequentes. R. - A discussão existe porque vivemos em economia de mercado, mas não em sociedade de mercado, pelo que se verificam restrições e limitações ao livre curso da lógica de mercado. Uma dessas limitações prende-se com a propriedade de actividades, sectores ou empresas. O problema não se resolve nem pelas nacionalizações nem pelo mercado puro e simples. Resolve-se, sim, pelo mercado, mas com regulamentação adequada. É este o debate que está por fazer. Uma fábrica de batatas fritas não tem interesse geral. O mesmo já não acontece quando são empresas de sectores de interesse nacional; energia, telecomunicações-comunicações ou financeiro. P. - Na Alemanha o sector financeiro é dominado por bancos públicos ou ligados aos "Landers" [estados federais] alemães. R. - É verdade que na Alemanha os "Landers" têm forte influência no mercado financeiro, isto para não falar de outros sectores. Mas aí verifica-se a coexistência de empresas com lógicas diferentes: de pura valorização capitalista; empresas mutualistas; ou outras mais voltadas para a economia social. No futuro, a solução pode estar aí. Outra questão que está na ordem do dia é saber se em certos sectores deve haver ou não regulação. Diz-se que esta é essencial, mas que o regulador deve ser independente do Estado. Ora, se se confia ao regulador a defesa do interesse público e se, ao mesmo tempo, se entende que este não pode ser tutelado pelo Estado... ficamos perante um novo dilema. P. - É o que se passa nas telecomunicações? R. - Nomeadamente. Quando se diz que o regulador deve ser independente do Estado, então há que saber quem o constitui e tutela. Os regulados? Alguns dos regulados? O governo? E perante quem é que responde? Perante os regulados? Como se constitui o regulador? Quem o julga? São questões que parecem de resposta evidente e não são, pois não tem sentido falar no abstracto de um regulador independente. De quem? De tudo e de todos, que é a melhor forma de ter um regulador dependente de alguém. P. - Como é que se resolve então esse dilema? R. - Hoje, independentemente da questão da propriedade ser pública ou privada, sectores como as comunicações, a energia, os transportes ou até o saneamento das águas produzem serviços de interesse geral que devem ser regulados na óptica do interesse de cada utilizador e do interesse colectivo. Portanto, só o poder político pode dar legitimidade democrática à independência do regulador. P. - Que papel desempenham as "golden-shares" neste debate? R. - São de futuro incerto. Por isso, entendo que existe uma última alternativa: se o Estado achar que uma empresa desempenha uma função de interesse público relevante e pretender assegurar que esta se mantenha sob controlo democrático - e não sob controlo de mercado -, então a solução é ficar com uma posição accionista na quantidade e na qualidade necessárias que lhe permitam ter poder de decisão em matérias essenciais. P. - É uma solução sem riscos, mas discutível. R. - Não vejo outra solução. P. - Esteve no último Governo de António Guterres e é um dirigente do PS. Já percebeu que modelo económico defende o seu partido? R. - Supondo que quer clarificar a questão, pelo menos em relação a alguns sectores. Por exemplo, financeiro, energia, transportes, telecomunicações. Vamos ao sector financeiro, onde nos resta o Grupo CGD. Qual deve ser a sua estratégia? Manter-se como o maior grupo nacional em território nacional? Deve tomar posição em grupos privados portugueses? Devemos perguntar ainda: que papel desejamos que grupos mutualistas, como o Montepio, venham a desempenhar no futuro? Em síntese: há que desenhar uma estratégia para a Caixa e para o Montepio, de acordo com o que queremos que seja, a prazo, o sistema financeiro português. P. - O Governo e o PS já fizeram esse debate? R. - Não completamente. P. - Do seu ponto de vista, qual deve ser? R. - Os grandes grupos bancários portugueses necessitam de ter a seu lado uma Caixa Geral de Depósitos forte. Por exemplo: acho que não faz mal nenhum ao BCP que a CGD esteja presente no seu capital [com cerca de oito por cento] - reforça-o e ajuda-o a blindar a sua estrutura financeira. Portanto, a CGD deve continuar a ser um grupo de propriedade pública, podendo fortalecer o sistema financeiro nacional. Segundo: energia. Deve-se olhar para este sector como para outro qualquer? Ou deve-se manter algum nível de controlo democrático - aqui reside sempre o problema -, por via de uma posição de bloqueio ou através de uma participação que permita intervir em decisões fundamentais? Sou por esta última solução. Terceiro: transportes. Por decreto-lei, está previsto que o Estado não venha a abdicar da maioria do capital da TAP. Se o Estado quiser seguir outro caminho, terá que elaborar novo diploma a ratificar pela Assembleia da República. Nos caminhos-de-ferro, onde se vão jogar problemas muito importantes, há que diferenciar a propriedade da gestão. A solução pode passar pela concessão da gestão, mantendo o Estado a propriedade. Por fim, temos as telecomunicações-comunicações, o sector mais complicado. Parece-me difícil que o Estado venha a manter uma posição relevante, dado que o sector é tocado por um fenómeno de concentração à escala global a que Portugal não vai ficar imune. P. - Em sectores globais, verifica-se um movimento generalizado de concentração seguido de outro de desconcentração. R. - Existe na realidade uma oscilação notória. Primeiro disse-se: agora é tudo global. Depois, as coisas não correram bem e entendeu-se que o global e o local se deviam combinar e reordenar. Na energia, a Iberdrola e a Endesa anunciaram a sua fusão, pouco depois desistiram. O mesmo aconteceu na banca com o Deutsche Bank e o Dresdner. O mundo da aviação é também paradigmático. Em 1997/98, houve uma primeira vaga de alianças, mas quando se chegou ao Verão de 1999, na sequência da minicrise financeira de 1998, as companhias reposicionaram-se. A KLM fez uma aliança com a Alitalia e rompeu. Depois a KLM fez uma aliança com a British Airways, mas não teve efeito. Num ano, a companhia holandesa rompeu duas alianças. E Portugal ressente-se destas ondas de choque. P. - Quer comentar a ruptura da aliança TAP-Swissair? R. - Aos que perguntam: como foi possível que a TAP tivesse feito uma aliança que ruiu?, respondo: mas Portugal está imune a estas mudanças? O que se verificou aconteceu por "bestealidade" de alguns? O problema é que continuamos a ter uma certa insularidade mental em relação aos sistemas em que estamos metidos. O caso mais flagrante é o debate que existe sobre as relações Portugal-Espanha num mesmo mercado. É evidente que se terá que dar uma interpenetração entre as duas economias, e está-se no começo. P. - Como se consegue o equilíbrio? R. - Houve uma primeira fase, no final dos anos 80, puramente comercial. Os espanhóis fizeram grandes investimentos comerciais em Portugal, na área da distribuição, e os portugueses viam os produtos no mercado, mas não ligavam. Agora é que começam a sentir a interferência espanhola. P. - Sendo inevitável na área da distribuição, também o é em sectores mais estruturantes? R. - O que está em causa é uma grande luta pelos centros de decisão, na banca, nas telecomunicações, na energia. Portanto, ao fim de 15 anos o jogo chegou aos centros de decisão. Quem me diz onde chega amanhã? P. - O Governo português deve promover a entrada de grupos espanhóis em sectores estratégicos nacionais, como tem feito, ou deve optar por um jogo defensivo, evitando a passagem dos centros estratégicos para fora, mas propondo alianças pontuais? R. - Há que viver com as consequências das nossas decisões. No momento em que entrámos na UE e nos empenhámos a fundo em chegar ao cume mais elevado da integração económica, que é a monetária, passámos a ter que respeitar as regras de jogo que aceitámos, mesmo sacrificando outras decisões. E, no meio de tudo isto, temos ainda que contar com o comportamento de "actores" que consideram que os mercados não são construções abstractas, mas sobretudo sociais e com História. E dentro dessas construções sociais, a prudência, o interesse de cada país, manda que se olhe à volta para se perceber como é que uma determinada construção social de mercado pode, ou não, comportar-se em relação aos cidadãos. P. - Numa entrevista à SIC, o primeiro-ministro espanhol deixou claro o que já se sabe: que o poder económico espanhol é muito superior ao português. A tendência é de domínio. R. - Mas haverá sempre quem pense ser aconselhável não entrar aqui como elefantes a pisar formigas, ignorando uma outra realidade, neste caso, a nossa. Ou seja, não esquecendo que o mercado é uma construção social e com História. Porquê? Não é do seu interesse. E, no caso espanhol, os madrilenos, face aos catalães e aos bascos, sabem bem quais são os limites socialmente aceitáveis e não ignoram os que prejudicam os seus negócios Nenhum Governo pode ignorar, e certamente não ignora, os problemas que a História e as tensões sociais colocam ao mercado, e que poderão destruir ou limitar os interesses dos jogadores nesse mercado. O plano jurídico sustenta o poder e normaliza-o. Todavia, o poder existe para além desta rede, o que significa que existe sempre alguma margem de manobra. Mas é bom não esquecer que boa parte do capital não tem pátria. P. - Como é que se assegura a manutenção dos centros de decisão em Portugal, garantindo que estes se mantêm em sede nacional? R. - Quer um bom exemplo de certas ilusões? A Telecel ganhou a sua licença com uma presença portuguesa fortíssima, e que era maioritária. Passados anos, o grupo nacional vendeu e desapareceu. P. - O caso da Galp foi distinto, já que o Governo sugeriu aos privados portugueses que vendessem aos italianos. R. - A Galp é outro caso. Mesmo assim, os privados venderam. É verdade que colectivamente não se sobrevive sem estratégia, e os governos devem ter uma visão sobre o futuro do país. P. - Como é que explica que os grupos nacionais se tenham desinteressado do sector industrial? R. - Em Portugal, à excepção dos grupos Jorge de Mello, Sonae e Amorim, todos os grandes grupos portugueses estão desligados do sector industrial. As suas fontes por excelência estão na extracção da velha renda fundiária, o imobiliário e a intermediação financeira. Jorge de Mello foi o único das antigos grandes empreendedores que a seguir ao 25 de Abril recuperou com êxito a sua vocação industrial, voltando ao sector alimentar. E o grupo Sonae, sendo dos verdadeiramente novos, até é um caso curioso: começou por manter uma ligação simbólica com o seu sector de origem, a madeira, cresceu pela distribuição e pelo imobiliário, e está a regressar à indústria da madeira. P. - Há cerca de nove anos, Belmiro de Azevedo disse que o sector da distribuição iria servir para alavancar a indústria da madeira. Ninguém acreditou na sinceridade desta estratégia... R. - Mas foi o que fez. Só que, entre os novos, é o exemplar único em Portugal. Os grupos, em especial os financeiros, afastaram-se da indústria. Porquê? Porque a indústria, ou se baseia na tecnologia e na qualidade, e então pode ter boas margens, ou sofre forte concorrência pelo preço, mesmo no mercado interno. Portugal cresceu muito na segunda metade do século XX, num modelo onde a qualidade surgiu como subproduto da quantidade. Hoje temos que inverter este modelo. A transformação que Portugal deve fazer é esta: que a quantidade seja alavancada pela qualidade. E temos até 2006, quando os fundos comunitários deixarem de chegar em quantidades industriais, para fazer as mudanças que se exigem. OUTROS TÍTULOS EM ECONOMIA NACIONAL

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Defensor da economia de mercado mas não de uma sociedade de mercado, João Cravinho defende a necessidade de regulação de certos sectores e critica a ideia de reguladores independentes de tudo e de todos, que vê como "a melhor forma de ter um regulador dependente de alguém". Quanto ao peso crescente da economia espanhola em Portugal, considera que o que está em causa é uma grande luta pelos centros de decisão, mas que, como construção histórica e social, o mercado impõe limites a lógicas hegemónicas, e que esta é uma questão sensível entre os dois países. Na primeira parte desta entrevista (ver edição de ontem), Cravinho revisitou o período das nacionalizações, tendo defendido os seus efeitos, que avalia como globalmente positivos. Disse que os empresários não se têm dado mal com o modo como tem sido governada a economia e, a propósito do último congresso do PS, considera que o partido "não pode deixar-se aprisionar na gestão situacionista de equilíbrios de poderes fácticos". PÚBLICO - Vinte cinco anos depois, como dirigente do PS, consegue explicar por que razão António Guterres não aproveitou as receitas das privatizações para lançar uma estratégia de desenvolvimento sustentado no sector económico e social? JOÃO CRAVINHO - Há uma certa razão. Mas nem sempre predominou a lógica do encaixe financeiro. No espaço integrado da UE, "estalou" nos centros políticos, na economia, na opinião pública, um novo debate: saber se, quando uma empresa é privatizada, o que deve ser privilegiado é o encaixe financeiro ou, pelo contrário, se deve procurar manter no país os centros de decisão. Esta última hipótese vem colocar uma nova questão, pois quando se privatiza entrando no jogo da bolsa está-se a trabalhar numa pura lógica capitalista. E assim a discussão sobre manter, ou não, os centros de decisão no país de origem é um problema que não interessa aos cultores da pura lógica capitalista. P. - Na Alemanha, em França ou Espanha - talvez a única excepção seja mesmo a Grã-Bretanha - o problema é actual. R. - Vou citar gente de qualidade como o António Borges, para quem o problema não se coloca, pois o que está em causa é saber se uma empresa é bem gerida. E se é bem gerida então fica salvaguardado o interesse nacional, independentemente da origem do capital. Não é essa a minha visão. Mas reconheço que está implícita na decisão de privatizar em bolsa. P. - Uma empresa pode ser muito bem gerida, mas se o seu centro de decisão estiver fora do país de origem, fica ao sabor das estratégias da casa-mãe, que pode, em qualquer momento, optar pelo desinvestimento. Os exemplos são frequentes. R. - A discussão existe porque vivemos em economia de mercado, mas não em sociedade de mercado, pelo que se verificam restrições e limitações ao livre curso da lógica de mercado. Uma dessas limitações prende-se com a propriedade de actividades, sectores ou empresas. O problema não se resolve nem pelas nacionalizações nem pelo mercado puro e simples. Resolve-se, sim, pelo mercado, mas com regulamentação adequada. É este o debate que está por fazer. Uma fábrica de batatas fritas não tem interesse geral. O mesmo já não acontece quando são empresas de sectores de interesse nacional; energia, telecomunicações-comunicações ou financeiro. P. - Na Alemanha o sector financeiro é dominado por bancos públicos ou ligados aos "Landers" [estados federais] alemães. R. - É verdade que na Alemanha os "Landers" têm forte influência no mercado financeiro, isto para não falar de outros sectores. Mas aí verifica-se a coexistência de empresas com lógicas diferentes: de pura valorização capitalista; empresas mutualistas; ou outras mais voltadas para a economia social. No futuro, a solução pode estar aí. Outra questão que está na ordem do dia é saber se em certos sectores deve haver ou não regulação. Diz-se que esta é essencial, mas que o regulador deve ser independente do Estado. Ora, se se confia ao regulador a defesa do interesse público e se, ao mesmo tempo, se entende que este não pode ser tutelado pelo Estado... ficamos perante um novo dilema. P. - É o que se passa nas telecomunicações? R. - Nomeadamente. Quando se diz que o regulador deve ser independente do Estado, então há que saber quem o constitui e tutela. Os regulados? Alguns dos regulados? O governo? E perante quem é que responde? Perante os regulados? Como se constitui o regulador? Quem o julga? São questões que parecem de resposta evidente e não são, pois não tem sentido falar no abstracto de um regulador independente. De quem? De tudo e de todos, que é a melhor forma de ter um regulador dependente de alguém. P. - Como é que se resolve então esse dilema? R. - Hoje, independentemente da questão da propriedade ser pública ou privada, sectores como as comunicações, a energia, os transportes ou até o saneamento das águas produzem serviços de interesse geral que devem ser regulados na óptica do interesse de cada utilizador e do interesse colectivo. Portanto, só o poder político pode dar legitimidade democrática à independência do regulador. P. - Que papel desempenham as "golden-shares" neste debate? R. - São de futuro incerto. Por isso, entendo que existe uma última alternativa: se o Estado achar que uma empresa desempenha uma função de interesse público relevante e pretender assegurar que esta se mantenha sob controlo democrático - e não sob controlo de mercado -, então a solução é ficar com uma posição accionista na quantidade e na qualidade necessárias que lhe permitam ter poder de decisão em matérias essenciais. P. - É uma solução sem riscos, mas discutível. R. - Não vejo outra solução. P. - Esteve no último Governo de António Guterres e é um dirigente do PS. Já percebeu que modelo económico defende o seu partido? R. - Supondo que quer clarificar a questão, pelo menos em relação a alguns sectores. Por exemplo, financeiro, energia, transportes, telecomunicações. Vamos ao sector financeiro, onde nos resta o Grupo CGD. Qual deve ser a sua estratégia? Manter-se como o maior grupo nacional em território nacional? Deve tomar posição em grupos privados portugueses? Devemos perguntar ainda: que papel desejamos que grupos mutualistas, como o Montepio, venham a desempenhar no futuro? Em síntese: há que desenhar uma estratégia para a Caixa e para o Montepio, de acordo com o que queremos que seja, a prazo, o sistema financeiro português. P. - O Governo e o PS já fizeram esse debate? R. - Não completamente. P. - Do seu ponto de vista, qual deve ser? R. - Os grandes grupos bancários portugueses necessitam de ter a seu lado uma Caixa Geral de Depósitos forte. Por exemplo: acho que não faz mal nenhum ao BCP que a CGD esteja presente no seu capital [com cerca de oito por cento] - reforça-o e ajuda-o a blindar a sua estrutura financeira. Portanto, a CGD deve continuar a ser um grupo de propriedade pública, podendo fortalecer o sistema financeiro nacional. Segundo: energia. Deve-se olhar para este sector como para outro qualquer? Ou deve-se manter algum nível de controlo democrático - aqui reside sempre o problema -, por via de uma posição de bloqueio ou através de uma participação que permita intervir em decisões fundamentais? Sou por esta última solução. Terceiro: transportes. Por decreto-lei, está previsto que o Estado não venha a abdicar da maioria do capital da TAP. Se o Estado quiser seguir outro caminho, terá que elaborar novo diploma a ratificar pela Assembleia da República. Nos caminhos-de-ferro, onde se vão jogar problemas muito importantes, há que diferenciar a propriedade da gestão. A solução pode passar pela concessão da gestão, mantendo o Estado a propriedade. Por fim, temos as telecomunicações-comunicações, o sector mais complicado. Parece-me difícil que o Estado venha a manter uma posição relevante, dado que o sector é tocado por um fenómeno de concentração à escala global a que Portugal não vai ficar imune. P. - Em sectores globais, verifica-se um movimento generalizado de concentração seguido de outro de desconcentração. R. - Existe na realidade uma oscilação notória. Primeiro disse-se: agora é tudo global. Depois, as coisas não correram bem e entendeu-se que o global e o local se deviam combinar e reordenar. Na energia, a Iberdrola e a Endesa anunciaram a sua fusão, pouco depois desistiram. O mesmo aconteceu na banca com o Deutsche Bank e o Dresdner. O mundo da aviação é também paradigmático. Em 1997/98, houve uma primeira vaga de alianças, mas quando se chegou ao Verão de 1999, na sequência da minicrise financeira de 1998, as companhias reposicionaram-se. A KLM fez uma aliança com a Alitalia e rompeu. Depois a KLM fez uma aliança com a British Airways, mas não teve efeito. Num ano, a companhia holandesa rompeu duas alianças. E Portugal ressente-se destas ondas de choque. P. - Quer comentar a ruptura da aliança TAP-Swissair? R. - Aos que perguntam: como foi possível que a TAP tivesse feito uma aliança que ruiu?, respondo: mas Portugal está imune a estas mudanças? O que se verificou aconteceu por "bestealidade" de alguns? O problema é que continuamos a ter uma certa insularidade mental em relação aos sistemas em que estamos metidos. O caso mais flagrante é o debate que existe sobre as relações Portugal-Espanha num mesmo mercado. É evidente que se terá que dar uma interpenetração entre as duas economias, e está-se no começo. P. - Como se consegue o equilíbrio? R. - Houve uma primeira fase, no final dos anos 80, puramente comercial. Os espanhóis fizeram grandes investimentos comerciais em Portugal, na área da distribuição, e os portugueses viam os produtos no mercado, mas não ligavam. Agora é que começam a sentir a interferência espanhola. P. - Sendo inevitável na área da distribuição, também o é em sectores mais estruturantes? R. - O que está em causa é uma grande luta pelos centros de decisão, na banca, nas telecomunicações, na energia. Portanto, ao fim de 15 anos o jogo chegou aos centros de decisão. Quem me diz onde chega amanhã? P. - O Governo português deve promover a entrada de grupos espanhóis em sectores estratégicos nacionais, como tem feito, ou deve optar por um jogo defensivo, evitando a passagem dos centros estratégicos para fora, mas propondo alianças pontuais? R. - Há que viver com as consequências das nossas decisões. No momento em que entrámos na UE e nos empenhámos a fundo em chegar ao cume mais elevado da integração económica, que é a monetária, passámos a ter que respeitar as regras de jogo que aceitámos, mesmo sacrificando outras decisões. E, no meio de tudo isto, temos ainda que contar com o comportamento de "actores" que consideram que os mercados não são construções abstractas, mas sobretudo sociais e com História. E dentro dessas construções sociais, a prudência, o interesse de cada país, manda que se olhe à volta para se perceber como é que uma determinada construção social de mercado pode, ou não, comportar-se em relação aos cidadãos. P. - Numa entrevista à SIC, o primeiro-ministro espanhol deixou claro o que já se sabe: que o poder económico espanhol é muito superior ao português. A tendência é de domínio. R. - Mas haverá sempre quem pense ser aconselhável não entrar aqui como elefantes a pisar formigas, ignorando uma outra realidade, neste caso, a nossa. Ou seja, não esquecendo que o mercado é uma construção social e com História. Porquê? Não é do seu interesse. E, no caso espanhol, os madrilenos, face aos catalães e aos bascos, sabem bem quais são os limites socialmente aceitáveis e não ignoram os que prejudicam os seus negócios Nenhum Governo pode ignorar, e certamente não ignora, os problemas que a História e as tensões sociais colocam ao mercado, e que poderão destruir ou limitar os interesses dos jogadores nesse mercado. O plano jurídico sustenta o poder e normaliza-o. Todavia, o poder existe para além desta rede, o que significa que existe sempre alguma margem de manobra. Mas é bom não esquecer que boa parte do capital não tem pátria. P. - Como é que se assegura a manutenção dos centros de decisão em Portugal, garantindo que estes se mantêm em sede nacional? R. - Quer um bom exemplo de certas ilusões? A Telecel ganhou a sua licença com uma presença portuguesa fortíssima, e que era maioritária. Passados anos, o grupo nacional vendeu e desapareceu. P. - O caso da Galp foi distinto, já que o Governo sugeriu aos privados portugueses que vendessem aos italianos. R. - A Galp é outro caso. Mesmo assim, os privados venderam. É verdade que colectivamente não se sobrevive sem estratégia, e os governos devem ter uma visão sobre o futuro do país. P. - Como é que explica que os grupos nacionais se tenham desinteressado do sector industrial? R. - Em Portugal, à excepção dos grupos Jorge de Mello, Sonae e Amorim, todos os grandes grupos portugueses estão desligados do sector industrial. As suas fontes por excelência estão na extracção da velha renda fundiária, o imobiliário e a intermediação financeira. Jorge de Mello foi o único das antigos grandes empreendedores que a seguir ao 25 de Abril recuperou com êxito a sua vocação industrial, voltando ao sector alimentar. E o grupo Sonae, sendo dos verdadeiramente novos, até é um caso curioso: começou por manter uma ligação simbólica com o seu sector de origem, a madeira, cresceu pela distribuição e pelo imobiliário, e está a regressar à indústria da madeira. P. - Há cerca de nove anos, Belmiro de Azevedo disse que o sector da distribuição iria servir para alavancar a indústria da madeira. Ninguém acreditou na sinceridade desta estratégia... R. - Mas foi o que fez. Só que, entre os novos, é o exemplar único em Portugal. Os grupos, em especial os financeiros, afastaram-se da indústria. Porquê? Porque a indústria, ou se baseia na tecnologia e na qualidade, e então pode ter boas margens, ou sofre forte concorrência pelo preço, mesmo no mercado interno. Portugal cresceu muito na segunda metade do século XX, num modelo onde a qualidade surgiu como subproduto da quantidade. Hoje temos que inverter este modelo. A transformação que Portugal deve fazer é esta: que a quantidade seja alavancada pela qualidade. E temos até 2006, quando os fundos comunitários deixarem de chegar em quantidades industriais, para fazer as mudanças que se exigem. OUTROS TÍTULOS EM ECONOMIA NACIONAL

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